Sopros
Sempre receou abrir os olhos e nada ver. Assim, ajusta-se a um espaço de limitado horizonte, a uma ausência de voo, a emoções garantidas, débeis, distraídas.
Ajusta-se, não desistindo de avançar. E enquanto acende gestos quotidianos, pressente ventos. Adivinha marés. Rasga limites.
A vida pode acomodar-se ao quase nada. Ao semi-adormecido. A noites dilatadas de exílio. A manhãs imóveis.
A alma, porém, exige mastros. Bebedeiras de azul. Respiração da luz.
Não ousa estremecer a paisagem que a circula. Mas enquanto se apaga na monotonia do repetido, diz a si mesma que, para lá da fachada cinzenta que a suspende, deve existir uma primavera sem taipais.
Bom, é já um começo.
AMS
"cada dia um outro somos" - Armando Pinheiro
percorro o passado de olhos fechados
ateando lembranças
folheando emoções
como se tudo o que passou me pertencesse
e de novo vivesse os dias que vivi
mas o abismo do tempo faz-me sentir
que o que vejo é apenas a sombra
do que a minha saudade projecta
e assim regresso do longe e do ausente
com a vontade louca de leiloar a vida
AMS
Se Tanto me doi
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
Sophia de Mello Breyner
P A I
envio-te num raminho de vento
o mais macio de todos os beijos
em troca recebo palavras prontas de amor
gestos que nunca arrefecem
a grandeza da mais pura dádiva
P rotectora
A bnegada
I mensurável
AMS
Até breve, Sónia!
Não vou escrever palavras que arranhem a alma. Da minha tristeza sei eu e sabes tu. A verdade é que a vida tem destas coisas e há que encontrar receitas para sararmos da ausência e da saudade. Contas feitas, minha amiga, Paris é já ali, mesmo ao virar da esquina...
Claro que nada substituirá as nossas - pequenas - discussões, os nossos amuos - mais meus - e as tardes de lamentos, mas que acabavam sempre numa boa dose de gargalhadas.
Vais fazer-me muita falta. A quem contar as minhas "desventuras", a minha tendência para declinar, em todas as pessoas, a expressão "não sou capaz", os meus "ódios" de estimação, o desconsolo de certos dias enfadonhos, a angústia de ter de frequentar espaços que travam a espontaneidade e a imperiosa necessidade que todos temos de comunicar e partilhar?! Espaços vazios. Tão vazios que assustam.
É, contudo, forçoso que partas. Que as noites de nevoeiro dêem lugar a manhãs radiosas e que um futuro risonho esteja cada vez mais perto de ser um hoje.
Assim, Sónia, nunca desistas de tentar transformar a vida e de a controlar, na medida do possível, a teu favor. Eu estou contigo. Com vocês - é óbvio que o Makram também tem tempo de antena, neste textito.
Boa sorte para os dois, mas... cuidado com os "pigeons". Se há decisões redentoras, a vossa, creio, foi uma delas. Sim, que essa história de ficar em fila indiana, resignados e suspensos do que pode não vir, não combina com a coragem e determinação dos meus aventureiros amigos.
Vá lá, não percas tempo. Corre para não perderes o avião.
Um beijinho e um sentido - já saudoso - abraço da amiga
Ana
Mulher
só tu
és enseada-abrigo
no cansaço das tormentas
só tu
preenches o coração
soltando, no tempo certo,
brisas de luz
- metáforas da vida -
que escorrem, mansamente,
até ao ventre fértil da raiz
só tu,
Mulher,
soletras ternura em cada gesto.
AMS
A propósito de uma corrida...
A conversa estava animada, divertida - como sempre, aliás. O tema tinha a ver com a Corrida da Mulher de 2007. É certo que, mal começa a aproximar-se o bom tempo, o país, no feminino, começa, de uma forma obsessiva-compulsiva, a preocupar-se com a forma, tentando desabrochar, alisar e muscular o que, durante o Inverno, secou, plissou, amanteigou. Neste caso, porém, os motivos da corrida distanciavam-se do tonto - mas sempre eterno - desejo de copiar as beldades dos anúncios publicitários. Solidariedade e incentivo à prática desportiva eram a base de sustentação daquela generosa iniciativa.
Voltemos, contudo, à hilariante palestra. Os “a favor” eram unânimes. As mulheres inscritas, uma mistura de Jeanne d’Arc e Marie Antoinette, aplaudidas com admiração e entusiamo. A certa altura, um dos intervenientes - dono de um acutilante espírito crítico e de uma simpatia imbatível, perguntou-me: - Já estás inscrita? Um acontecimento destes requer uma participação em massa… Tartamudeando, tentei desculpar-me com os clichés habituais - Sim, alguém me tinha inscrito… No entanto, a ausência de uma rotina de exercício físico… o não possuir, no momento, fato de treino - ocultando que uma amiga já me tinha emprestado dois - uma pertinaz alergia à chuva e o receio de o meu coração - tão frequentamente sujeito a "hiperventilações" - não aguentar uma maratona de cinco extensíssimos quilómetros eram razões de sobra para, muito dificilmente, poder participar na corrida.
O meu interlocutor não desarmou. A minha fonte de lamúrias mais parecia uma bola ricocheteando. Senti-me miseravelmente mesquinha ao ouvir - Ajudar na luta contra o cancro é um dever de todos nós. Eu, quando houver uma corrida dos homens com próstata, participarei sem dúbios pretextos.
Uma corrida dos homens com próstata???!!! – repeti, incrédula e divertida.
Caríssimo amigo - que muito aprecio - sei que o que disse não correspondia ao que pretendia dizer. Mas tenha cuidado. Com toda essa boa vontade, não será difícil imaginá-lo a participar numa corridas dos homens/mulheres… que perderam a cabeça. E há tantos/as…
AMSNota: Como o amigo/colega “exigiu”, remeti-me ao silêncio no que respeita à sua identidade. Tarefa árdua, convenhamos.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida... - Sophia de Mello Breyner
Cada dia que chega é uma ilusão e uma promessa. E é essa a força motriz que nos faz viver, que nos faz subir a escada toda, degrau a degrau, até ao cimo, sem olhar para baixo, apenas para desfrutar a vertigem da liberdade plena, o êxtase da comunhão - homem, universo.
O nosso mal - o meu e o de todos - é não sabermos olhar para a vida, captá-la, sentir o seu respirar, entregarmo-nos em completa nudez, bebendo todas as pequeninas partículas que amparam o enigma da nossa fragilidade. Pobres de nós. Quase sempre disfarçados de deuses - sempre tão exigentes - caminhando, passo a passso, para o cativeiro indistinto dos escravos. Tão tortuosamente iludidos com a (in)certeza de um tempo (im)prolongável. (Ir)repetível. (Ir)recuperável.
Cada novo dia que nos é lícito viver espraia horizontes para além dos horizontes. Mas não podemos ter pressas se queremos chegar ao justo lugar que nos foi destinado. Tudo é leve, tudo flui pelo espaço que nos submerge. Apenas o homem é poeira repetida.
Estamos aqui porque somos ou somos porque aqui estamos? Talvez nem sequer interesse a resposta. Talvez o importante seja, afinal, ir direito ao coração da vida, sabendo, humildemente, que não se chega lá.
AMS
Pessoas
Escrever sobre o quê? Sobre quem? Por vezes, torna-se tarefa árdua deixar fluir livremente o pensamento, deixar jorrar as palavras numa anarquia simples e concreta, sem grandes apetrechos decorativos.
Instintivamente, a primeira palavra que me ocorre é "pessoas". Pessoas, seres vulgares - mas tão especiais - daqueles que se apresentam com defeitos, debilidades, diferença espezinhada a cada hora. Se me pedissem para definir esta palavra, escreveria: "pessoa" - peregrino sempre em demanda da grandeza fátua de um sonho; rosto anónimo, sofrido ou alegre, teimosamente sobrevivente às imensidões dos abismos que se lhe deparam; ser de fim inadiável, envolvendo a inquietude e a revolta numa esperança obstinada.
Pessoas... rostos... pessoas.... gestos... no centro abissal de desertos, procurando a harmonia de um diálogo de solidões na justa medida da entrega e da dádiva. Rostos que procuram um Deus no rosto dos outros.
Os outros? Seres igualmente em busca da chave que abra a porta do efémero, do silêncio, da indiferença de muitos rostos fechados.
Pessoas... rostos... eternos viajantes... todos! Como quem busca, na sina distante, um lugar sem fronteiras, onde as coisas e as pessoas fazem sentido. Pessoas batendo ao compasso de corações febris, tentando esmagar os medos e o vazio mais profundo que ao homem coube em herança.
Pessoas mendigando uma carícia serena e cálida que as afaste do frio cortante da opacidade das outras pessoas.
AMS
Milagres
Em Portugal, há necessidade de milagres. A tarefa hercúlea de levantar a economia e o ego dos portugueses - que já só abanam compassivamente a cabeça e a algibeira - parece que não encontra base de sustentação a não ser num prodigioso gesto divino. É escusado estar a alimentar falsas esperanças, meus amigos: isto só se endireita com preces, rezas, jejuns, penitência - esta nunca é suficiente - e… milagres.
Não é segredo nenhum - basta ver a quantidade de pessoas que têm "aplaudido" tal medida - que o ministro da Saúde resolveu fechar hospitais, maternidades e urgências. É ou não verdade que com toda esta política economicista só não morreremos… por milagre?! Do mesmo modo, com a quantidade de anos-luz necessários para atingir a tão ansiada reforma, chega-se ou não à triste conclusão de que será um milagre atingir essa etapa de lazer, tranquilidade e alívio... sem um encontro prematuro com o popular disfemismo: esticar o pernil?! Isto para não dar como exemplo casos que necessitariam de um milagre com M maiúsculo e de bastantes cunhas no Olimpo: chegar a professor titular sem depressões, fobias e outras psicoses que tais; resistir, estoicamente, a montanhas de reuniões, preparação de reuniões, continuação de reuniões e a tanto faz-que-faz.. sempre com a convicção de que, na verdade, não se faz nada; conseguir um tempinho para preparar aulas - aqui, digo eu, será mais fácil, qual Moisés - o tal que era gago - afastar as águas turvas do rio Douro; exilar do espírito e da cabeça o fantasma de uma avaliação que, neste momento, se resume a 95 pontos que ainda ninguém sabe - excepto, claro, os “videntes", “profetas” e "entendidos" emblemáticos de uma excepcionalidade muito (?) empenhada - como serão obtidos… Enfim, a lista é longa e a vida uma máscara do Carnaval de Viareggio.
Milagres precisam-se! Contudo, como no nosso país vigora a lei do mais forte - fátuo, vaidoso e presunçoso - não faltarão, por certo, milagreiros, aprendizes de feiticeiros e vendedores de banha da cobra que, numa prodigiosa encenação, tudo remediarão. E do caos e da ignorância nascerá, enfim, a luz. Aleluia! Assim, os cegos passarão a ver, os surdos a ouvir, os paralíticos a andar, os pobres de espírito a iluminar e os parasitas - e outros animalejos multifacetados - a produzir. Vai ser - já é - um ver se te avias.
É claro que para os menos dotados nas artes de prestidigitação haverá sempre a possibilidade de frequentarem cursos de formação subordinados ao tema - Aprenda a fazer milagres num piscar de pestana. Não exige trabalho, suor e muito menos poderes miraculosos. Basta ter lata. Muita lata. E, se possível, os dotes beatificadores dos emplastros Leão. Aqueles que tiravam a dor num senão.
AMS
Nenhum caminho é longo demais quando um amigo nos acompanha.(
Autor desconhecido)Conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós, e que embora distante, está perto em espírito, eis o que faz da Terra um jardim habitado.(
Goethe)