domingo, abril 02, 2006

A diferença nunca poderá ser um álibi

Não sei se aquilo que vou escrever irá “chocar” alguém. Não é essa a minha intenção. De qualquer modo, e porque se trata de um tema polémico, resolvi hipotecar a minha “boa” reputação e, sem falsos pudores, sem complexos, sem medo de ser mal interpretada, “falar” de um filme que, pelo que sei, tem causado controvérsia e até aflitiva curiosidade - O segredo de Brokeback Mountain.
Devo dizer-lhes que, inicialmente, nem a temática nem o facto de ser um filme candidato a vários óscares foram factores que me impelissem a ir ver, claramente visto, o tal “segredo”. Depois, e como nada acontece por acaso, tive a oportunidade de assistir à apresentação do mesmo. Não fechei parêntesis. Aliás, bastaram-me poucas cenas para, de imediato, perceber a história. É um dado adquirido que não sou uma intelectual. Contudo, tenho por lema que ninguém deve ser obrigado a optar pelas ideias dos outros. Gosto de tirar as minhas próprias conclusões. Gosto de mergulhar fundo e de apre(e)nder tudo a que tenho direito. Gosto de dizer gosto ou não gosto… por mim. Gosto de pensar. Não gosto de armazenar. Não gosto de ser clone. Muito menos de reduzir os meus gostos, juízos ou críticas a meros interesses ou regras “tribais”.
Portanto, e perante “opiniões” mais ou menos radicais, resolvi-me. Em abono da verdade, maior o número de opiniões desfavoráveis, maior a vontade de “opinar” por mim mesma - passe o pleonasmo. E fui. Ponto final.
Se pensam que vou debruçar-me sobre o problema da homossexualidade, estão completamente enganados. A orientação sexual é uma característica do indivíduo. Não é o indivíduo. Assim, desde que essa mesma orientação não interfira com a minha sensibilidade, não me sinto eticamente capaz de exprimir juízos ou críticas. É evidente que não gosto de “circos”. Nem alinho em lobbies mais ou menos à la page que, na minha opinião, não passam de expressões grotescas e ridículas de quem, à falta de grandes adjectivações, se outorga o direito de espalhar as suas contradições e a sua definitiva estupidez. O universo dos afectos é de tal forma sublime e íntimo, que não concebo leilões, feiras - e outras iniciativas que tais - liricamente hasteadas por puro exibicionismo ou mera questão de moda. Refiro-me, por exemplo, a programas do tipo “Senhora Dona Lady” ou “Esquadrão G”, como é óbvio. Mas não só. Sei que poderão argumentar - e bem - que só vê esses programas quem a tal se dispõe. Contra-argumento explicando que só sei distinguir qualidade e lixo se tiver estado em contacto com os dois pesos e medidas. Além disso, não consta que programas cheios de coisa nenhuma possam contribuir para uma morte trágica. Quando muito - e só - são absolutamente maçadores, fictícios e anémicos.
Todavia, o filme não me interessou nessa perspectiva. Muito menos o vi centrada nessa vertente. Foste ver rebanhos, querem ver? - poderá ironizar algum dos leitores que tenha chegado a este ponto do texto. Não, não fui ver rebanhos. Nem vou falar de cowboys. Muito menos de índios - e alguns (cowboys e índios, que não sou racista) encontravam-se entre o público assistente. Vou falar de afectos. Simplesmente de afectos. O afecto - a paixão - que uniu Jack e Ennis. Conseguindo abstrair-me do sexo das personagens, vi uma bonita história de amor. Que acabou mal. Quase todas acabam.
Senti a solidão, o isolamento, o desespero e a dúvida das personagens. Senti o drama de alguém que descobre e se confronta com uma situação inesperada e que foge à regra estabelecida. Não vi um universo masculino. Vi uma realidade dura, difícil de compreender e de aceitar - daí o facto de tanto Jack como Ennis a negarem. Vi ternura. Vi infidelidade. Vi ciúmes. Vi um amor vivido às escondidas, durante anos. Vi, sobretudo, dois seres desajustados, solitários entregarem-se um ao outro com a morte no coração.
O “segredo” ultrapassa a questão da homossexualidade. Tem, principalmente, a ver com a nossa capacidade de conseguirmos entrar na intimidade do amor e de não o estilhaçarmos com a sordidez ou o grotesco das nossas reacções falsamente pudicas e éticas. Tem a ver com a capacidade que temos - ou não - de nos consciencializarmos das coisas sem tumultos ou mácula. Tem a ver com respeito. Percebendo - ou não, mas sem amarfanhar - determinados comportamentos. Porque é difícil, às vezes. Mas aceitanto sempre os outros com a dignidade a que todos temos direito. Ainda que na verdade infinita das coisas sem sentido, porque o homem se escreve em papéis doridos de identidade.
A diferença nunca poderá ser um álibi!


AMS