sábado, abril 15, 2006

Instintos Fatais

Decididamente, os meus gostos cinematográficos não vão de encontro aos dos meus amigos. Numa quase batalha naval, usando argumentos, contra-argumentos e um peremptório “ou este ou nenhum", lá consegui arrastar três almas - muito pouco convencidas, diga-se - a irem ver o filme “Instinto Fatal 2”.
No final, e contrariando, de novo, a opinião dos três “sofredores”, saí com a certeza de que o filme, ainda que defraudando um pouco as minhas expectativas, tinha merecido um satisfaz.
- És mesmo básica! O primeiro ainda tinha aquele famoso cruzar de pernas e uma Sharon Stone estimulante -
vociferava o matemático do grupo. Neste, não há cenas de sexo convincentes, a Stone, em determinados planos, aparece envelhecida - ainda que bastante sensual - e a história é, no mínimo, insípida e circular.
- Porra, mas só vieste ver as pernas - e mais qualquer coisita - da Sharon Stone? Esqueceste-te, aliás, de um outro pormenor - neste filme, o picador foi pouco focado. Pouca sorte, não?
- Tretas! O filme, exceptuando as cenas iniciais, não teve acção e a história é o habitual lugar-comum das mentes perversas, psicopatas. Já agora, espertinha, que
viste tu que nos escapasse a todos?
- Para sacana… sacana e meio. Vi o David Morrissey… pelado! Estás contente?

Risos e comentários que decidi omitir.
- A sério, que tinha o filme de espectacular? Estou curioso. Aprender até morrer. Começa a desbobinar…
- Vi aquilo que todos nos recusamos aceitar - que os nossos instintos primários não têm limites e podem arrastar-nos a um abismo negro e sem saída. Catherine Tramell não é uma personagem criada para demonstrar que de um lado estão os maus e do outro os bons - sempre nós, claro. Todos temos um lado perverso, manipulador, narcísico. Todos nós, de uma forma ou de outra, já experimentámos o prazer de calcar o risco. Ou, pelo menos, já imaginámos fazê-lo. Todos nós, ocultamos - melhor ou pior - a escuridão e uma certa urdidura que nos enleia. O que nos distingue tem a ver com um menor ou maior controlo sobre nós
próprios.
- Que disparate! Então tu defendes que qualquer um de nós poderia matar só pelo prazer de tirar a vida a alguém? A tal omnipotência…
- Em casos extremos, acredito que sim. Evidentemente que não me refiro ao que tu apelidas de "prazer de matar". Mas acredito que, em circunstâncias de uma extrema pressão, todos nós somos capazes, quanto mais não seja pelo instinto de sobrevivência, de tirar a vida a alguém A vida é um jogo, meu caro. Uns seguem as regras; outros… fingem segui-las; outros, coleccionadores de vícios e metamorfoses, sentem-se altamente estimulados em infringi-las, distorcê-las… Beatitude e maldade! Esta dualidade faz parte do ser humano. Como se em nós existisse um duplo que levita e confunde os conceitos. Por outro lado, quem te garante que, amanhã, és a mesma pessoa que, hoje, está aqui sentada? Temos, creio, uma identidade para uso comum. E onde ficam as outras? As que a sociedade, a educação, os nossos próprios valores reprimem? A percepção que cada um tem da mesma coisa varia. Por que razão o que é ilusão para uns não poderá ser a verdade de outros?
- Começo a ficar inquieto e intrigado com este discurso. Tens picador?

Novamente omissão de algumas passagens do diálogo.
- Está a fazer-se tarde, mas gostava de saber quem foi, afinal, o assassino? A escritora? O psicólogo? O polícia? Fiquei confuso… O final ficou demasiado em aberto…
- A questão do assassino é irrelevante. A problemática está no conflito com a própria identidade… Há entre as personagens uma estranha relação de troca - a profundeza, a amoralidade dos instintos, o vácuo, o vazio onde eles os transportam. Como escreveu Proust - "(...) Uma pessoa não está... nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projectos, as suas intenções para connosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento directo, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de actos, palavras e actos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verosimilhança, que brilham o ódio e o amor."
- Proust? A esta hora da noite? Piedade! Então, para ti, tudo se resume a uma combinação de Harry Jekyll e Mr. Hyde. Por um lado, a pessoa “certinha”, com valores, estimada por todos; por outro, o monstro, o psicopata que realiza as fantasias, nunca confessadas, da sua metade - Jekyll.
- Mais ou menos isso. Resta saber, como já disse, a capacidade de controlo que o indivíduo tem sobre os dois. Carência de sentimentos de culpa e de consciência social são a via que conduzem mais depressa a Mr. Hyde. Frustrações e recalques, distúrbios de identificação, um ódio imenso pelo outro… incitam à destruição e a uma não consciência da própria mesquinhez. Quando a humilhação, a desgraça ou a tortura são fonte de prazer, quando se perde completamente a sensibilidade ao sofrimento humano, estamos perante uma quadro doentio, mas sem que o sujeito tenha a mínima percepção da dimensão da sua enfermidade. Daí que Catherine Tramell seja perita em mentir e seduzir, confundindo o limite entre o consciente e o subconsciente. Quando mente, fá-lo para testar um forte sentimento de autovalorização, ocultando a sua impossibilidade de se apegar ou vincular aos outros. Aliás, mesmo quando aparenta intenções de proteger alguém, é fria, calculista e falsa. E o ponto máximo é quando consegue reverter o jogo e passa de culpada a vítima.
- Sabes que mais? Convenceste-me. Amanhã, vou ver um filme da Disney.


AMS