Um ovo de chocolate
A atitude dele comoveu-a. Achou piada e, ao mesmo tempo, não percebeu aquela perturbação quando, meio constrangido, ele lhe entregou o saco - Isto é para si. Não abra. É só uma lembrança.Tinham uma ligação de forte amizade há uns largos meses. Ele sempre fora um colega doce e amável com ela. Riam com a mesma facilidade. Ajudavam-se mutuamente. Respeitavam o espaço um do outro. E, acima de tudo, nunca houvera jogos de cabra-cega entre os dois. Nem tensões, ansiedades, medos de perda. Folclore sentimental do que seria, à partida - ambos teriam essa percepção - uma desvantagem, um erro. O caminho mais rápido para a banalização do habitual "nem contigo… nem sem ti". Gostavam-se sem irresponsabilidades. Como dois amigos unidos por um afecto leal e sincero. Sem arrebatamentos, sem exaustão, sem uma comum e terrível sensação de desamparo, consequência de uma amálgama de sentimentos e posse. Ela gostava do colega, do homem, culto e cheio de humor, do amigo. Tinha a certeza que a amizade era recíproca. Ele era uma pessoa fiável, consciente e compreensiva. Sabia ouvir, ensinar, passar por cima das coisas. Sabia, algo raro, perceber que ela não era só aquilo que a timidez – ou outro qualquer defeito – a deixava mostrar aos outros. Pouco ou quase nada, aliás.
Talvez sejam encontros simbólicos que a vida nos dá. Desses encontros que duram uma vida – ainda que separada – e deixam marcas que são a prova incondicional da generosidade de que o Homem pode ser portador. Da sua entrega. Do seu despojamento. Da sua fiabilidade.
És parva, amiga – diziam-lhe. Não existe esse tipo de relacionamento entre um homem e uma mulher. Mais dia menos dia, apanhas uma decepção. Não há acasos exemplares. E, se os há, acabam por se manifestar cínicos e batoteiros. Não sabemos o que o outro pensa. Limitamo-nos a imaginar. Não está nas nossas mãos alterar as variantes infinitas do ser humano.
Vocês são peritas em exacerbar o sentimento do desconforto e da inadequação - defendia-se. Somos apenas dois seres com algumas afinidades. Não somos dois imbecis dispostos a representar a comédia do costume, a farsa da sedução e das promessas que nunca serão mantidas. O que, e atendendo às circunstâncias, além de inútil em si mesmo, denotaria uma terrível falta de senso. É assim tão desconcertante a amizade entre um homem e uma mulher? Hã... mentes poluídas!
Não tens escapatória, linda. Amizades com esse brilho especial, afinidades intelectuais e o calor de afecto e ajuda mútua costumam acabar... na cama – contrapunham as amigas em sábio e experiente conluio.
Isto é para si. Não abra. É só uma lembrança. Não abriu. Nem sequer teve tempo de agradecer convenientemente. Ele já estava sentado, cumprindo o que lhe prometera – ajudá-la a trabalhar com aquele maldito programa que, minuto sim… minuto sim, dava erro e causava o desespero dela e a ira dos restantes colegas.
Boas férias. Boa Páscoa – desejara-lhe. Sem truques. De olhar simples, alegre, sem equívocos.
Boas férias. Ah… obrigada. Pelo apoio e pelo… presente.
Quando chegou a casa, abriu o embrulho que estava dentro do saco. Sorriu. Nada ali se parecia com uma miragem embusteira e disparatada. Diante de si, tinha um gigantesco ovo de chocolate.
Mesmo dando rédea solta ao pensamento mais acutilante – que diriam as amigas? – quem poderia descortinar uma insinuante e complicada estratégia sentimental… num inocente ovo de chocolate?!
AMS