quarta-feira, outubro 18, 2006

algodão doce

Saiu. Estremeceu ao imaginar, mais do que sentir, a porta fechar-se. Hesitou por breves segundos. Atrás dela ficaram anos, vivências, amigos, afectos, meros conhecidos – poucos, muito poucos nunca ultrapassaram o degrau de um relacionamento assinalado com a etiqueta “polidamente correcto”. Dirigiu-se ao elevador. Enquanto esperava, pensava que nada daquilo que damos como certo… o é. Tudo é emprestado. Até a vida. Que pena que alguns a atravessem como se de propriedade privada se tratasse. Tão cheios de certezas, tão cheios de contradições, incapazes, muitas vezes, de tentar solucionar uma miopia elevada e crescente.A porta do elevador abriu-se. Entrou. Um gesto quase mecânico dado o hábito de anos e anos. Ainda olhou para a outra porta fechada, e um novo pensamento a assaltou - às vezes, perder é uma libertação. Viva a falência, então! Sorriu, carregando no botão que dava acesso ao átrio da entrada. Enquanto o elevador descia, reparou no espelho. Observou-se. Voltou a sorrir. Só agora, ao fim de tantos anos, reparava, verdadeiramente, naquele bocado de vidro. Honestamente, só agora reparava bem nela. Não gostou do que viu. Um rosto publicitando niilismo em segunda mão. Porra! Estava mesmo com cara de sofredora diletante. Ensaiou novo sorriso. Queria sentir-se de bem com o mundo, sobretudo, de bem com ela. Ponto final a essa treta do “é tarde de mais”! Nunca é tarde para recomeçar. Que sabem os outros de nós? Nada. Imaginam, petulantemente, saber. Provavelmente, todos jogamos com essa variante, ou seja, todos acreditamos conhecer os outros como a nós mesmos. O problema está aí! Sabemos identificar perfeitamente os defeitos dos outros, as suas fraquezas, os seus erros. Saberemos identificar os nossos? Duvidava. Apontar defeitos a terceiros funciona no ser humano, salvo raras excepções, como uma válvula de escape, uma projecção. Uma espécie de analgésico para consciências. A porta do elevador abriu-se novamente. Chegara ao fim da viagem, daquela viagem . Mas não era o fim. É importante vencermos os nossos medos, sem bluff, sem obsessões, sem amarras. Saiu. Já não havia vestígios de hesitação nos passos decididos rumo à porta da rua. O barulho dos carros, as pessoas apressadas nos passeios, a vida, enfim, estava ali. Nós - novamente a filosofia a fluir - sim, nós é que temos o condão de exacerbar o sentimento, dito hostil, da “mudança”. Temos, forçosamente, de lhe dar o sinónimo de “perda”. Ela não sentia que o estava a acontecer fosse uma perda. Fora apenas nova mudança de rumo. E se a alma aponta a hora certa, os pés têm asas. Assim, num rebuliço mental, juntou as vivências , os amigos, os afectos, em dezenas e dezenas de balões. Olhou , sem nostalgia patética, os balões multicolores, transportando-se até eles, transportando-os até ela. Soltou o cordel que os unia e libertou-os rumo ao espaço. Não são necessários laços quando as almas estão em sintonia plena. Nada incomodada com os olhares espantados dos transeuntes, olhou para o céu, acenou e mandou um beijo. Não um beijo amarrotado, artificial, amargo. Um beijo a saber a algodão doce.

AMS