(IN)decisão
És antiquada, careta e… não falo mais contigo!Foi esta fulminante sentença , sem o mínimo sentido de gratidão, que a minha filha fez rolar sobre o meu indeciso coração. Sempre me vi como uma sofredora diletante, mas estas palavras arrasaram-me! Senão vejamos: a arguida – eu – apenas cometeu o pequeno delito – imenso aos olhos da queixosa – de responder com um clássico não ao seu pedido. Foi razão suficiente para, injusta e cruelmente, logo me condenar a uma pena equivalente a cem anos de solidão. A minha sorte é que a pena será suspensa antes desse tempo, já que ainda não inventaram um elixir de longa vida.
Mas… tudo isto, afinal, porquê? Linearmente simples ou odiosamente complicado. O motivo deve-se a que esta mãe, careta, retrógrada, quase fossilizada, ousou negar-lhe a autorização para a inscrição na viagem de finalistas da escola.
A miúda tem razão… Essas atitudes de déspota iluminada já não se usam… É por essas e por outras que os jovens ficam traumatizados, inadaptados, especializados em incompreensão… - dirão os mais decididos nestas coisas de educação. Nada disso… ou tudo isso! O ponto da discórdia não tem propriamente a ver com a viagem de oito dias ao sul de Espanha. O cerne da questão, o que faz da minha mente um acessório falível, é apenas um detalhe : a viagem é organizada pela Associação de Estudantes e nenhum adulto, nenhum professor acompanhará aquele grupo de cinquenta jovens ávidos de liberdade. E, na minha bolorenta opinião, cinquenta adolescentes, sem controlo de espécie alguma, durante oito dias, será uma espécie de ponto de interrogação a passear, perigosamente, pelo fio da navalha.
Resultado de toda esta embrulhada – uma filha que nos olha como se a tivéssemos condenado à guilhotina e que, a cada minuto da nossa existência, não perde um detalhe que seja para demonstrar que está mais sofrida que a Pietà. Compreendo as razões dela. Melhor do que ela pensa. Contudo, e a não ser que algum decreto-lei me obrigue a assinar a tal autorização, é com infinita tristeza que continuo a dizer não.
Aliás, este atrito de gerações, fez-me recordar um igual choque de opiniões que, por acaso, originou um final bastante “animado”.
Véspera de Ano Novo. Radiante, preparava-me para acompanhar irmãos e primos a uma festa no Orfeão Universitário. Era a primeira vez que “os mais velhos” aceitavam a minha companhia e o meu ego sentia-se deslumbrado com a palavra – u n i v e r s i t á r i o. Aperaltei-me o melhor que sabia e… podia. Tentei, ao longo da tarde, não dar muito nas vistas. Suponho que não deve ter resultado. A evidente boa vontade com que acedia a todos os pedidos e exigências, seria, no mínimo, sinal de alarme para os mais atentos.
Depois do jantar, qual Inês confiante no seu engano de alma, fui, seraficamente, pedir ao meu pai o visto de saída. Ainda hoje recordo a cara dele. A minha, essa, não recordo… mas imagino-a ao ouvir estas palavras – “ Não acho que tenhas idade para ir para esses bailaricos universitários. As tuas notas, como sabes, também não foram famosas… Ficas em casa… connosco!
Ó pai tirano, se tu soubesses o que me fizeste sofrer! Como a injustiça das tuas palavras caiu sobre a minha cabeça, desceu até ao coração e o desfez em mil caquinhos…!!!
Aparentemente, conformei-me. Passei a meia-noite, cara hermética, metade raiva, metade mais raiva, com os meus pais e, logo que pude, refugiei-me na minha “cela”.
Aí, dei largas ao meu inconformismo e… à minha vingança. A alegria que sentia na rua, as buzinas que enegreciam o meu já enlutado coração, tudo atiçava ainda mais a minha revolta. Mitiguei-a como soube. Pé ante pé, dirigi-me à sala, surripiando a primeira garrafa que vi. Coube-me na rifa uma garrafa de vinho espumante, o tal “champagne” dos portugueses. Está pouco nítido na lembrança se a bebi em dois, quatro, seis ou mais “goles”. Não recordo, também, se o efeito do dito espumante se manifestou de imediato… Revejo, isso sim, a cara dos meus pais. A minha mãe benzendo-se vezes sem conta; o meu pai, furioso, acertando, com mestria, na minha “doença” – “Ela está embriagada! Se não vomitar, vamos ter de ir até ao hospital…
Foi uma passagem de ano “inolvidável”! Abstenho-me de contar mais pormenores e… respectivas consequências.
Inflexibilidade. Protecção excessiva. Falta de confiança. Nos filhos? Em nós? É certo que, por precaução, poderia esconder as garrafas todas cá de casa. Não creio, todavia, que a raiva te dê para “afogar” os desgostos. O extraordinário é que, enquanto escrevia este “desabafo”, mudei de ideias. O que começou com um enérgico não, vai acabar num – ainda receoso – sim. Nunca conseguirei ser razoavelmente coerente, eis a prova.
Amanhã, vou dar-te a boa nova. Mas, de uma coisa não vais conseguir livrar-te. Durante esses oito dias do teu contentamento – e do meu desconforto – irás receber montanhas de mensagens e chamadas. Não para te controlar. Só para saber se levaste a escova dos dentes… se levaste o blusão mais quente… se tens tomado o pequeno-almoço…e, sobretudo, mesmo que finjas não perceber, sintas que estou aqui. Estarei sempre... para o que der e vier. Ainda que careta, antiquada e em vias de virar dinossauro.
AMS