segunda-feira, outubro 16, 2006

filhos de um deus menor

Embora ainda um pouco contrariada, começo a constatar que o facto de, actualmente, exercer a minha actividade apenas em horário diurno é algo que também traz as suas vantagens. Uma delas, ainda que pareça pueril, é poder ver o jornal da noite e, deste modo, sentir-me um pouco mais a par do que se passa no país e no mundo. Assim, hoje, deu-me para acompanhar a informação da TVI, já que, por hábito, "passo" mais tempo noutros canais. Sei, como todos sabem, que a chantagem emocional que certo tipo de informação exerce sobre o público é inquestionável e vergonhosa, mas não vou debruçar-me sobre isso. Chocou-me, profundamente, uma reportagem sobre crianças deficientes, aguardando que a burocracia, a desresponsabilidade, a incompetência, ou outra qualquer razão, lhes permitam frequentar, de novo, a escola. Não basta o drama de ter um filho “diferente”, ainda é necessário, parece, agravar essa cruz. Ninguém sabe de quem é a culpa. O normal, em Portugal, é a culpa não ser de ninguém…
Até sou capaz, senhora ministra da Educação, de lhe perdoar as aventuras e desventuras de um célebre e agitado concurso de professores. A minha flexibilidade vai ao ponto de não dar uma sonora gargalhada quando a ouço dizer desconhecer o número de alunos que ainda se encontram sem aulas. O que não posso perceber, o que me custa a aceitar é que, tanto da parte do Ministério da Educação, do governo e da própria oposição, estes casos pareçam não existir, como se sofressem todos de cegueira colectiva, de insanidade e de um enorme desprezo pela dignidade humana.
Começo a não distinguir quem são os verdadeiros "limitados" e, pese embora o que alguns possam pensar, começo a assimilar que, se uns são filhos de um deus menor, os outros são uns filhos... Adiante! Para bom entendedor...

EPOPEIA

Jardineiro. Trinta anos. Sorriso escancarado. Respirando vitalidade e alegria por todos os poros. Surdo profundo.
Que lição de vida! Quão mesquinha e pequena me sinto face a este homem. Devo-lhe estas palavras. Devo-lhe um pedido de desculpa que ele nunca lerá. Que nunca entenderá. Nem ele imagina o porquê de eu me sentir na obrigação de escrever este texto. E, também, porque duvido que no seu vocabulário exista a palavra "mesquinha". O seu “dicionário” limita-se a uns quantos vocábulos relacionados, sobretudo, com flores e jardinagem. Mas a culpa não é dele... E a minha fica, aqui, registada. Ainda mais, porque ele não acusa, aceitando a limitação, que não pediu, com a ingenuidade - ou sabedoria? - de quem está de bem com a vida e o mundo.
É verdade, "João", fiquei irritada quando soube que iriam "adornar" o meu horário com uma aula de apoio a um surdo profundo. Não bastava a "comodidade" da minha vida ter sido alterada pela mudança para uma nova escola, como, ainda por cima, ter de "aturar" alguém que nem a linguagem gestual tinha aprendido. Grande seca! "Ontem", entrei contrariada na sala. Contrariada, em mim, é sinónimo de antipatia. Antipatia, sinónimo de pouco cordial. Só não contava com o seu sorriso. A sua simplicidade. A sua naturalidade face à minha apreensão e má vontade, invertendo, desse modo, os papéis professora/aluno. Fiquei desarmada.
Ainda assim, continuei renitente. Olhava para o guia que assinalava textos da obra "Os Lusíadas" e pensava - "Porra (que me desculpem os puristas da língua)! Como se explica o significado de Lusíadas a um deficiente auditivo profundo? Como se fala da estrutura interna, estrutura externa, sílabas métricas, epopeia...?!"
Não vou dizer que foi fácil, porque não o foi, realmente. Não estava em causa a deficiência do “João”. Esteve quase sempre em causa a minha má preparação – praticamente nula – para lidar com um aluno deficiente auditivo. E é aqui que se coloca um problema de suma importância – o da formação de professores. Infelizmente, contra mim falo, quase todos nos lembramos das acções de formação quando está em causa a necessidade de créditos para mudança de escalão. Por outro lado, essa história da formação também tem muito que se lhe diga. Culpa do sistema. Culpa dos professores.
Mas, e voltando ao “João”, conseguimos! Os dois. Ele, com uma força de vontade que me deixava atónita, “lendo” as palavras na minha boca, tentando perceber aquilo que, quantas vezes, eu nem sabia transmitir. Eu... bem, gesticulando, desenhando - valha-me Deus! - escrevendo, tentando simplificar, clarificar… Sobretudo, e para ser completamente honesta, aquilo que mais influenciou a minha postura foi um certo sentimento de vergonha. Ali estava aquele homem – que me lembre nunca faltou – sorridente, pronto a receber aquilo que eu tinha para lhe dar, nada exigindo, agradecendo o que era uma obrigação da minha parte. Felizmente, a obrigação virou prazer e a vergonha virou amizade.
No final da unidade, o "João" sabia que Luís de Camões nos deixou uma história em verso – a palavra verso, constatei mais tarde, só foi apreendida quando, no terceiro período, me confessou que o que mais lhe agradava eram as aulas de “puésia” - que conta a viagem do povo português à Índia.
Só isso? – perguntarão. Só isso! Porém, isso implicava que ele tivesse a noção das vitórias de um povo, a noção de epopeia… sem empregar a palavra. Mérito meu? Claro que não. Todo o mérito é de um homem, jardineiro de profissão, trinta anos, surdo profundo, que me deu uma das maiores lições da minha vida ao dizer - " Olha, obrigado, professora. Percebi tudo. Gosto muito d'Os Lusíadas".
Um sorriso aberto, uma vontade enorme de aprender fizeram com que a minha definição de epopeia se alterasse completamente.
Epopeia, "João", é a sua vida!

AMS