segunda-feira, outubro 16, 2006

A lei do tempo

Levantou-se. Desorientada, deambulou pelo quarto num estado alternado de consciência e inconsciência. Culpa, sem dúvida, dos medicamentos. Quando o efeito passava, sentia-se seca, frágil, alquebrada. De repente, reparou no espelho. Há quanto tempo não se via ao espelho?! Cambaleante, aproximou-se mais. A jovem sorridente que a olhava, obstinadamente, pareceu-lhe, incrivelmente, familiar. O cabelo preso numa longa trança, olhos de um negro profundo, cativantes, o vestido branco que acentuava, subtilmente, o dourado brilhante da pele e a sensualidade das formas, tudo lhe lembrava alguém... Aquele sorriso jovial, vivo, gentil, até isso ela sentia estar ligado, inexplicavelmente, a si.

Que bonita - pensou! E tão atrevidamente jovem, tão escandalosamente fresca! Mas... mas... que tonta! Claro que conhecia a jovem, o sorriso... Era ela! Sim, era ela. A mulher que estava no espelho não era consequência da fantasia dos seus desejos. Era ela! E ria, ria... Levantou a mão e acenou. A jovem fez o mesmo. Jogo engraçado. Como podia ter-se esquecido de si própria? Da sua juventude, da sua beleza... Era bom ser jovem, bonita, saudável. Tonta! Tonta! Estava tudo nítido, agora. Fazia, amanhã, dezoito anos, claro. E havia uma festa, um baile, familiares, amigos… Como a vida é bela!

Girou sobre si mesma - ou seria o tempo a girar sobre ela? - e viu-se, no baile, rodeada de pretendentes. Estouvada, deliciosamente fútil, deliciosamente ingénua. Só reparou no homem que se colocara à sua frente quando ele disse "olá", estendendo-lhe a mão. Um encontro vulgar se tivesse sido um outro qualquer. Porém, quando lhe apertou a mão, soube que era "ele". Dançaram toda a noite. E a "dança" durou trinta maravilhosos anos. Até que, um dia, ele adoeceu e...

- Quem mandou a nossa "menina" sair da cama, sozinha? O senhor doutor vai zangar-se consigo. Não se lembra do que ele disse? Ai, ai... esta avozinha não tem emenda... Vamos já deitar... vá... eu ajudo... Amanhã, como é dia especial, sua marota, vamos ter festa, recorda-se? E tem de estar bonita...
Ela não percebia nada. Sentia as pernas pesadas, trôpegas... Que fazia naquele quarto? Aos dezoito anos, corre-se, livremente, debaixo de céus estrelados... Contudo, as pernas recusavam obedecer-lhe.
- Entao, amanhã, é o grande dia, hem? Oitenta e cinco anos! Bela idade. Olhe, eu não chego lá. Vá, toca a deitar-se e nada de fazer mais asneiras. Já venho, vou buscar o seu chazinho... Esteja sossegadinha, senão faço queixa à senhora directora e ela faz queixa aos seus filhos...

Na cama, um vulto enrugado, trémulo, tentava, ainda, o impossível. Onde estava a jovem do espelho? Volta... volta... – suplicava, inutilmente. Mas tudo lhe aparecia desfocado. Distante. Velho. Espelho cruel!
Quando a empregada voltou, não reparou nas duas lágrimas carregadas de memórias que se abandonavam, aturdidas, à dura lei do tempo e da natureza.

AMS