segunda-feira, outubro 16, 2006

O quadro

Sem qualquer razão explicável, parei, subitamente, em frente àquele quadro. Uma paisagem, o mar, um céu muito azul, um barco oscilando, ao longe, um vulto indefinido... Algo, naquela imagem, me atraía e era, simultaneamente, familiar. Fechei os olhos. Encostei o coração à mudez, aparente, da imagem. Tentei decifrar o silêncio do vulto indefinido, mas familiar. Senti o som da água, o grito das gaivotas, o azul liquefeito do firmamento... Só não conseguia identificar aquela figura, como se a intensidade da luz distorcesse a memória ou a quisesse confundir. Sentia-me enclausurada na ondulação límpida das águas. Sentia o apelo de alguém que tentava tocar-me. Via os seus olhos tristes - ou seriam os meus? - porque sabia que nunca chegaria ao gesto, que ficaria, apenas, nessa intenção... Entrei no quadro. Sorvi o salgado do mar, respirei o azul do céu, balancei, suavemente, ao ritmo do pequeno barco, libertei a memória ao compasso do voo das gaivotas e olhei, fixamente, através do vulto de linhas imprecisas, sombreadas de um contacto íntimo, mas já longínquo. A recordação acompanhou a luz frágil do que se dissolvera há muito. Tentei lutar contra a indefinição do esquecimento, o gume dos estilhaços de momentos, aparentemente, já sem ressonância. E vi. Vi-o. Solicitei palavras, um gesto... Olhava-me, sorria levemente, desafiava-me - pedido e oferta. Não sei se era orgulho, ou outro qualquer sentimento, que me impedia de o abraçar, de lhe revelar a solidão de olhos cegos de viver. "O passado é inútil como um trapo" - a beleza terrível destes versos preencheu toda a paisagem. O céu escureceu, o mar revoltava-se em vagas alterosas, a pequena embarcação, exausta, parecia ir entregar-se a cada momento ao sacrifício final. Tentei, num derradeiro esforço, agarrar a mão... inexoravelmente fechada. Porém, o rosto familiar esfumava-se e o vulto era uma amálgama de traços amarrotados de desdém que não viam os meus acenos desesperados nem davam espaço à mais leve tentativa de aproximação. Era o fim... De repente, libertei-me, saí do interior para o exterior. Abri os olhos. Respirei fundo e olhei, receosa, o quadro. Já não ouvi o coração - o meu, o dele. Era apenas um bonito quadro, uma bonita paisagem, numa bonita moldura. Não passara tudo de um sonho? De uma questão de perspectiva? De uma certa forma de olhar? Não sei. A claridade subjacente ao quadro continuava a impressionar-me. A quietude e tranquilidade harmoniosas continuavam a atrair-me. O pequeno bote lá estava, balouçando, indiferente, ao meu olhar ansioso. Só não conseguia descortinar o vulto. Era apenas um ponto que se confundia com o horizonte. Afastei-me. Dei lugar a outros olhares, a outras vidas, a outros sentires. Mas, não sei bem porquê, levava na alma e no rosto um travo a sal e a sensação magoada de ter perdido algo outra vez.

AMS