terça-feira, outubro 17, 2006

Tudo é uma questão de perspectiva...



Levanta-se. A noite parece ainda dormir. Lava-se. Veste-se. Quase irracionalmente. Não precisa de espelho. Aliás, há quanto tempo deixou de olhar para ele?! Sai para a frio hibernal de mais um dia que vai começar. Dá de comer aos animais. Apanha a roupa fria com as mãos ainda mais frias. Agarra na enxada, deixando o seu suor na terra alheia. Entra, de novo, na realidade, sempre igual, da casa. Prepara a lancheira do homem. Dá de mamar ao filho mais novo com a doçura que ainda lhe sobra. Acorda a mais velhinha que ainda não pressente o fardo injusto que vai herdar. Que ainda sonha com tudo aquilo a que dizem ter direito - tempo para crescer. Um futuro. Penteia-a com a doçura - embora as mãos sejam duras e calejadas - ditada pelo amor que não sabe exprimir de outra maneira.
Vai até à porta. Agasalha, cuidadosamente, a filha para a dura e longa caminhada até à escola. Olha para a imagem de Cristo, pousada sobre a cómoda, e agradece, com a simplicidade dos que nada têm, o pão nosso de cada dia.


O despertador toca. Espreguiça-se, languidamente, no conforto morno e aconchegante do quarto. Dirige-se, ainda ensonada, até ao banheiro. Sais. Espuma. Cremes. Uma imagem moderna, sofisticada, reflecte-se nos vários espelhos. Pinta-se. Escova o cabelo. Dá um último retoque. Ensaia o sorriso. Abre o roupeiro. Hesita, pouco convencida, entre um tailleur “Chanel” ou um fato “Gaultier”. Perfuma-se, levemente, com a segurança de quem sabe agradar.
Na cozinha, a empregada já preparara o frugal e light pequeno almoço. Enquanto mordisca uma bolacha – igualmente light – lê o bilhete do marido: “ Levo os miúdos ao colégio.Vou buscar a Marta ao ballet; passa pelo ginásio e traz o João. Até logo. Vemo-nos ao jantar.”Que maçada! Logo hoje que tinha sessão de sauna e combinara ir tomar chá com a Tita para combinarem os últimos detalhes relativos ao safari à Namíbia!...
Pega na mala. Nas chaves do carro. Caminha até ao elevador, deixando atrás de si um rasto a “Dolce Vita”. Enquanto aguarda, pensa – Que belo dia! Sempre a mesma chatice!


Céu negro.Gritos. Corpos mutilados. Homens bons armados. Homens maus armados. Quem são os bons? Quem são os maus? O horror é provocado pelos bons ou pelos maus? A chacina e o luto são trazidos pelos bons ou pelos maus? Terra banhada de sangue. Inocente. Ela, rosto tapado, esfíngica, olhos pousados num céu indiferente – não bastava a indiferença dos homens – enlouquecida de dor, agarra, com perplexo desespero, o corpito franzino, ensanguentado e sem vida do filho. Os homens não respondem. O céu permanece mudo. Só a morte parece querer explicar que não veio de livre vontade. Chamaram-na. Em nome da paz. Da justiça. Da liberdade. O Homem ainda não percebeu que a morte, às vezes, não custa tanto como a vida.
E aquela mãe, devastada pela dor, pela incompreensão, aquela mulher que não existe, porque jamais lhe deram esse direito, interpela, num primeiro gesto de raiva e denúncia, os homens e o céu – Porquê?! Em nome de quê?! Em nome de quem?!


Neste momento, em vários pontos do globo, comemora-se - para aliviar consciências? - o Dia Internacional da Mulher! Falaciosa comemoração. Por que motivo havemos de valorizar a hipocrisia e a superficialidade de um só dia?
Permaneçamos atentos ao que nos rodeia. Assumamos a responsabilidade que os actos requerem. Não basta oferecer uma flor mistificada de mil mentiras. Sintamos o que a verdade reclama. E não digamos – lavo daí as minhas mãos!

AMS