quarta-feira, outubro 18, 2006

retrato inacabado

Não cheguei a acabar o teu retrato.
Faltou-me a transparência. Não soube definir
a imagem que de ti sonhei, nem adivinhar o momento
de ela ser verdadeira, ter forma e reflexos,
transformar-se em algo vivo, rasgando os véus
da não-realidade. Os traços saíram hesitantes,
vagos, indefinidos, desenhando contornos de nada,
num espaço vazio, imenso, prisioneiro de cores
cansadas, trespassadas pelas garras do desencanto.
Olho para a tela e para as linhas duras, frias,
que a mancham de solidão inevitável, e não te
reconheço, nem me reconheço. Tentei recriar-te,
dar-te o momento exacto do tempo dos afectos,
traçar a linha que delineasse a tua alma,
o ressurgir da luz. Mas o sonho está gasto.
Olho para o retrato e sei que algo não foi
captado. Há como que uma imagem vestida de
ausência, algo inacabado, reminiscência do
que não conheço, já não me é. Observo o teu
rosto, analisando feição a feição: olhos,
nariz, boca, o todo, numa total abstracção.
Inútil. Esse vazio no olhar, essa expressão
parada num gesto esquecido - não é nada!
O branco do papel gera mais frio, o teu rosto parece
desfocado, imperfeito, e, fatigada, a minha mão
queda em suspenso, petrificada, perante a dura
verdade: não consegui exprimir a claridade da rota
de um amor quase tocável, quase possível. Quase.
Observo o teu retrato e vejo apenas névoa!

AMS