quinta-feira, janeiro 25, 2007

A casa

Aquela era a sua casa.
Não adiantara partir. O pânico que a invadira, quando percebeu que ninguém está ao abrigo do sofrimento, esfumara-se há muito. Aprendera a conviver com essa certeza, embora, por vezes, ainda estremecesse sempre que a luminosidade do dia passava a dar lugar às sombras misteriosas e densas das horas negras que sempre se avizinham. No fim de cada dia, a noite vem. Com ela traz o sono, um torpor quase involuntário e uma certa febre do passado.
Aquela casa era o seu passado. Paradoxalmente, era, de igual modo, o seu presente.
Quando abriu a porta, receou o silêncio. Tacteou o barulho de vozes, de conversas banais, de risos. Contudo, o silêncio, longe de a reunir ao que a fizera partir, cingia-a à claridade que entrava pelas janelas, rodeando-a de uma estranha sensação de segurança, calor e bem-estar. E ela acreditou - porque queria acreditar - que a casa vibrava, esfusiante de alegria, com o seu regresso.
Houve um dia - ou teria sido uma sucessão de dias, semanas, meses, anos? - em que as paredes da casa lhe sussuraram o vazio da sua existência. Algo chorava há muito dentro de si. Obstinada, tentou esconder essa mágoa, secá-la. Mas o coração da casa estava também, irremediavelmente, ferido. A casa, pouco a pouco, ia perdendo vida e, simultaneamente, ia ficando mais estranha, mais fria, mais anónima. Ela, por seu lado, sentia esse carácter neutro que a casa assumia. Deixara de ser um lugar para viver e compartilhar vida. Deixara de ser a sua casa, o porto seguro. Passara a ser ausência. O confronto de mundos antagónicos.
Partira. Não olhara para trás com medo da penumbra que cercava, avidamente, a casa.
E os dias, as semanas, os meses foram passando. E com eles viajou o melancólico Outono, o duro e agreste Inverno e chegou, finalmente, a força e a vitalidade da Primavera.
Subitamente, sentiu que a casa já não era outrora. Nem receio. Era equilíbrio. Algo que iria sobreviver para além das sombras porque criara raízes.
E resolvera voltar. Sabia que ia tocar no passado. Porém, este, ao invés de a perder, fá-la-ia renascer.
O sol começava a declinar, mas não mais vestiria a pele côncava da fuga.
Abriu a janela, aspirou o ar sereno do entardecer, apoiou o pensamento no visível, interiorizou o não visível e deixou que a realidade, sem trajectórias hesitantes, lhe invadisse a alma.

AMS