domingo, janeiro 14, 2007

"navego em centro aberto, o olhar e o sonho" - Ramos Rosa

Não conseguia distinguir-se dos outros. Bênção? Maldição? Tal estado de não-identidade começara a corroê-la. Acabaria por destroçá-la - estava certa. Sentia-se monocórdica. Vazia. Incapaz de exprimir dor ou mágoa, alegria ou qualquer outro sentimento. Apenas uma tristeza abjecta que a levava a não acreditar na vida. Em si mesma. Forçando-a a reconhecer que não podia chamar de vida àquele estado de letargia, de indiferença, de absoluta renúncia. Primeiro vieram os medos. Depois, o choro que tentava reprimir para não ter de ouvir verdades. Não receava as mentiras, mas temia as verdades. De seguida, a ansiedade infiltrara-se, não a deixando dormir. Noite após noite. Arrastando-a até à exaustão, à incapacidade de suportar o mínimo ruído. Impedindo-a de se agarrar às pequenas coisas que lhe suportavam o escuro onde se deixara cair. A leitura e a escrita deixaram de ser o prazer que, supostamente, deveriam ser. Uma espécie de âncora que alicerçava um pouco o seu constante à deriva. Era estranho pensar que até os amigos tinham deixado de fazer sentido. Ou seria que já não conseguia aperceber-se dos sorrisos e dos (a)braços que a norteavam?!
Ia caindo, lentamente, no fundo. Vivia em função de um único desejo - dormir. Esquecer. Esquecer-se. A vida resumia-se a uma fuga incontrolável ao sentir. Quando a família ou os amigos lhe perguntavam o porquê daquele deserto, a resposta era, invariavelmente, a mesma - só quero dormir. Estar acordada era lembrar. Lembrar, como escrevera Baudelaire, era apenas uma nova forma de sofrer. Mas até o sono, ironicamente, fugia ao seu controlo.
E os dias eram passados numa sonolência que lhe afunilava o real. Que lhe roubava as palavras. Até a vontade de pedir ajuda. As noites, essas, eram de uma lucidez cruel, como se fosse invadida por centenas de objectos cortantes que lhe laceravam o corpo e a alma. Quanto tempo seria possível sobreviver, já que a vida parecia negar-se? - perguntava-se.
Não sabia explicar o como nem o porquê, mas o certo é que se decidira, finalmente, a escrever o tal cartaz com letras garrafais - Preciso de ajuda! Preciso de luz e de espaço. É urgente fugir dos silêncios onde me refugio, voltar a entoar a canção mansa, pacificadora do ser que me habita.
Não tinha sido fácil. Às vezes, ainda tropeçava nas pedras que, inconscientemente, colocava no seu percurso. As conversas com o médico - uma espécie de peregrinação interior que lhe permitira, pouco a pouco, sem truques, descortinar-se no vago e no impreciso; a medicação - tão forte, inicialmente, que ela chegara a rejeitá-la, a receá-la; o apoio permanente da família e dos amigos, mas, sobretudo, a vontade de se definir como pessoa sem o terror constante da perda e do vazio, tudo tinha contribuído para que, milímetro a milímetro, a sua existência se preenchesse, novamente, de sentido. Sem atenuantes . Sem acusações. Sem desculpas retorcidas. Sem virar, cobardemente, as costas. Sem marcha-atrás.
Não, não tinha sido um passe de magia. Experimentara o horror de andar em círculos, não vislumbrando saída daquele enorme labirinto; sentira o torpor que a impedia de agir depois de ter encontrado o que procurava - o regresso a si; quase se desmorenara de tanto selar a alma.
A ideia de que passara pelo inferno, mas não ficara lá - enchia-a de orgulho. Talvez fosse essa a razão que a levava a não omitir a palavra d e p r e s s ã o. Interessava-lhe pouco que os outros se inteirassem da sua fraqueza. Da sua doença - não havia razão para escamotear os factos. O preconceito era prova irrefutável do engano cego e da pequenez de alguns. Era bom voltar a enfrentar-se com a sua vulnerabilidade. A sua força. Vencera. A prova estava ali: enquanto se arranjava ia cantarolando. Há meses - anos? - que perdera esse hábito. Essa confiança descontraída que era, simultaneamente, um desafio. Sabia, agora, que há milhares de ratoeiras ao longo do caminho que ousarmos percorrer. Já não a afligia a ideia de que o equilíbrio pode desajustar-se a qualquer momento - ainda mais se descurámos os seus alicerces. Passara a aceitar, sem desassossego, a certeza de que a segurança nunca é absoluta, mesmo que nos escudemos com todas as precauções. Percebia, finalmente, que desistir é sempre pior do que morrer. É espaço fechado de nada. É olhar-se ao espelho e não se ver. É passar ao lado de lado nenhum.
Ela, porém, ainda não esgotara o sonho de chegar ao lugar que lhe cabia por direito.

AMS