O Estranho Caso do Corvo Desaparecido
Como estamos em época de Carnaval e ninguém leva a mal - digo eu… - resolvi vestir-me de Agatha Christie. Que me perdoem os admiradores da grande escritora. Pelo menos, segui uma das suas grandes regras: o narrador - neste caso narradora - não é o assassino.Por que motivo escolhi o grande, o empedernido - e vaidoso - Hercule Poirot em vez de dar protagonismo a Miss Marple, a perspicaz e mexeriqueira velhinha? Elementar, caros leitores, elementar … Porque sou contra as cotas. Refiro-me às leis das cotas, claro.
Monsieur Poirot detestava ser interrompido às refeições. Monsieur Poirot tinha tanto de arguto, inteligente e intuitivo… como de amante da boa mesa. A sua gula era quase proporcional à sua inteligência.
Enquanto se deleitava com um “frugal” pequeno-almoço, ia deixando as suas preciosas células cinzentas analisarem o insólito facto ocorrido, na noite anterior.
O caso era realmente bizarro. O corvo da Senhora Vicente - um animal raríssimo, atendendo à sua cor azul - esfumara-se misteriosamente. A dona, uma excêntrica milionária, estava desolada, quase em estado de choque. A ave era a sua coqueluche, uma espécie de petit-ami e o seu desaparecimento tornara-se um verdadeiro enigma, uma catástrofe semelhante ao naufrágio do Titanic.
M. Poirot tinha interrogado os criados, o motorista e, finalmente, o cônjuge - um homem tímido, baixo, lacónico como um espartano - e, aparentemente, nada concluira. O mordomo escapara à investigação, dado que a narradora decidiu mandá-lo de férias para uma colónia do Inatel a fim de evitar que os leigos leitores de literatura policial tropeçassem, logo após as primeiras linhas, na habitual e errónea premissa - o mordomo é sempre o criminoso! Excluída a hipótese de rapto ou roubo - não é normal os ladrões/raptores “apaixonarem-se” por necrófagos - restava-lhe deduzir que se tratara de um crime violento... quiçá passional. Aliás, o seu instinto apurado de “caçador”, dava-lhe a quase certeza de que o corvídeo fora alvo de um ódio feroz.
Quem cometera o crime?
Hercule Poirot ia analisando os factos enquanto se deliciava com uma tarte de queijo e ananás cujo molho, de quando em vez, vinha acariciar o seu famoso bigode.
1 – Segundo o depoimento dos criados, o corvo grasnava toda a noite, e o que soava a maviosa sinfonia aos ouvidos da dona, começava a tornar-se um verdadeiro suplício de Tântalo para os restantes habitantes da casa.
2 – Era intrigante o facto de ter encontrado, no escritório do marido, tanto material relacionado com corvos. A citar: o filme “The Births” de Hitchcok; o filme “The Crow” de Edward R. Pressmam; a obra “The Raven” de Edgar A. Poe e o livro “Livre-se dos Corvos” do professor Marins.
3 – A dona da casa tinha recebido, nos últimos tempos, vários e-mails. Todos continham a seguinte mensagem: “Cuidado! O vingador está perto! As bruxas como tu perpetuam a sua imagem com um corvo. O teu está, estrategicamente, colocado para tudo espiar, tudo observar, mas Satanás não vencerá”.
4 – O senhor Vicente adquirira o hábito de passar horas e horas ligado à net. Fuga ao grasnar do corvo? Fuga ao grasnar da mulher?
5 – As respostas reservadas do marido tinham, no entanto, levado o grande Hercule a mais duas eventuais culpadas. De acordo com as declarações do senhor Vicente, as horas gastas no pc - nada de política, certo? O Jerónimo de Sousa não entra nesta história! - eram motivadas pela sua paixão recente por línguas. Assim, andava a aprender chinês com uma lisboeta e já ia arranhando um pouco de russo graças aos ensinamentos de uma nativa do norte.
6 – O macabro achado encontrado num livro de poesia, na biblioteca - uma pena de um negro azulado - marcando esta citação - “ Estão todos mortos, só ainda não sabem!”.
Hercule Poirot levantou-se da mesa (não sem antes ter refrescado e retocado o inestimável bigode), pegou no chapéu e dirigiu-se à mansão dos Vicente. Enquanto subia a escadaria de mármore, as suas células faiscavam. Desvendara o mistério. Já sabia quem era o assassino. A sua argúcia, a sua acutilante inteligência tinham encontrado a solução para o caso do corvo desaparecido.
A verdade estivera sempre à sua frente. O instinto nunca o enganava. O que é, afinal, o instinto? - dissertava o mestre do crime, maldizendo os cem degraus da escadaria e a sua proeminente barriga. O Instinto era, tão-somente, a inteligência natural e inata que nele brotava de nascente fértil. Quando o alarme tocou pela primeira vez, no seu cérebro, a dúvida instalara-se. Mas monsieur Poirot sabia que era um erro capital teorizar antes da obtenção de dados (aqui a narradora está a meter água, pois parece que quem pensava deste modo era Sherlock Holmes. Adiante...). Na noite anterior, quando percorria a casa onde habitara o malogrado corvo, reparara, ao entrar, por engano, na cozinha, que havia restos de ossos de ave na baixela de prata. A cozinheira tentara, imediatamente, ocultar as sobras do jantar, mas o seu olhar vivo e penetrante de águia - águia no sentido generalizado, caro leitor. Não sonhe… Até podia ser um olhar de leão, mas a narradora, mais uma vez, demonstra ser outra nulidade em questões de aves e felinos … - não deixara escapar aquela indício.
Quem matara o corvo? Linearmente simples. Elementar. Elementar ( lá volta a narradora a dar prova de uma ignorância total sobre detectives). A cozinheira! Sim, a cozinheira! Farta de preparar, três vezes ao dia, ovos, caracóis e cereais para o bicho; receosa - atendendo à fama de trapaceiro e fofoqueiro - do grasnar vigilante e soturno do animal; temerosa, tendo em conta a má reputação da ave, que esta, por artes demoníacas, contasse à patroa as suas visitas frequentes à garrafeira, resolvera, num acto de desespero e sobrevivência, imolar o corvo. Para evitar suspeitas e fazer desaparecer o mínimo vestígio do desgraçado, depenara-o, temperara-o e fizera um assado divinal que todos elogiaram e deglutiram ( talvez o verbo “deglutir” não seja o mais apropriado. Contudo, mais uma vez se constata a incompetência da narradora que não encontrou outro mais apropriado para “rimar” com baixela de prata e escadaria em mármore).
É o que se chama - pensou Hercule Poirot, no cimo da majestosa escadaria - comer corvo à frango na púcara!
Nota: A autora dedica este primeiro - e último - conto policial a todos os corvos do mundo, em especial aos azuis, mais raros e valiosos.
Agradece, também, ao professor Marins os preciosos conhecimentos adquiridos na sua famosíssima obra “ Livre-se dos Corvos”.
A todos - pausa para verter uma lagrimita - um abraço do tamanho do tempo que demorou a escrever esta “pérola” da literatura universal.
AMS