domingo, janeiro 28, 2007

O Ensaio Geral

Não posso ir ao ensaio, esta noite, com o Clube de Teatro - informei,com ar de quem está a dar as últimas, a minha amiga/colega Maria José, responsável pelo grupo dos amantes - poucos - de teatro.
Amiga, se estás doente, não vás! Eu levo os alunos e tudo se resolve - retorquiu a Zé, plagiando a minha tosse e as minhas lamúrias.
Bonito! Está um frio de gelar os ossos… Esta tosse não anuncia uma noite em beleza… Mas não posso deixá-la ir sozinha… - pensei. Bom, também vou... No caso do ensaio não acabar por volta das 22.30, saio. Pode ser? - inquiri, ansiando sobreviver a tão pesado flagelo.
A minha amiga sorriu, tossiu meia dúzia de vezes - estava, sem dúvida, a imitar-me, a safada - e profetizou : vai ser uma noite bem divertida, o analgésico ideal para gripes, tosse e… vontade de ficar em casa.
Espertinha! Que auspiciosa terapia! - retorqui para os meus botões.
Nove horas da noite. Frio capaz de fazer doer o coração e as gargantas mais debilitadas. Uma alma penada, eu, esperando a chegada da chefe e dos alunos. Ei-los!
O ambiente, no interior do “autocarro,” contrastava com o ar gélido do exterior. Alegria. Risos. Calor. A motorista cantarolava e… tossia.
Rua da Alegria - entoou a bem disposta! Rua da Alegria - repeti, condoída da minha fragilidade tússica.
Não, não é aqui. É mais abaixo, logo a seguir à escola Augusto Gil - informou o porteiro, cronometrando o tempo da informação.
E lá fomos nós, calcorreando a rua da Alegria, à procura da desejada sala de ensaios.
É aqui! - gritou o Zé António, espreitando, imediatamente, pela caixa do correio.
Pois é! - confirmei, espreitando, igualmente, através da dita abertura.
Viste alguém? - perguntou a toda sorridente.
Não. Vi uma secretária, sofás e uma porta de elevador. Será o cenário?!
Vozes. Passos. Abre-se a porta. Cumprimentos da praxe. Beijinhos da praxe. Apresentações: professoras, alunos, actores e encenador.
Sentamo-nos aqui? - indagou a bem-humorada, não reparando no meu olhar atónito. Sim, eu estava em estado de choque. Intoxicada. Gazeada por milhares e milhares de pontas de cigarro colocadas num não menos moribundo cinzeiro.
Não. Vamos subir as escadas e visitar as nossas instalações - elucidou um dos actores.
Afinal, aquilo era o hall!
Esta é a nossa sala de estar! - esclareceu, gentilmente, outro dos actores. Sentem-se enquanto preparamos o ensaio.
Era óbvio que se tratava de uma sala de estar. Copos, bebidas, bolachas, pontas de cigarro - tudo contribuía para dar um ar familiar, intelectual, boémio ao compartimento. Agora já consigo imaginar os esconderijos dos grupos terroristas - esclareci-me, atacada por uma nova área de tosse. A estreia - da tosse, obviamente - tinha sido à entrada, mal o meu nariz, garganta e pulmões deram de caras com o cinzeiro poluidor e a montanha de beatas. As beatas, efectivamente, são pouco fiáveis… dizem.
O ensaio, apenas algumas cenas já que duas das actrizes estão com gripe, vai começar - anunciou, triunfal, o encenador, um sujeito com uma carismática armação Armani - tipo Onassis, topam? - blasé, iluminado q.b., espartilhado nuns jeans justíssimos e muito sugestivos. A peça é, também, da minha autoria. Escrevi-a em três dias, num retiro lá para o norte - explicou o talentoso.
O homem é um génio - murmurou a minha amiga. Dramaturgo e encenador! Vamos, então, assistir ao ensaio.
Fomos. Com um cenário daqueles é que a minha tosse não contava. Mal entrei, deparei-me com um… caixão aberto, tetricamente ornamentado com velas e velinhas. Não podia, realmente, ser uma noite mais divertida! Mortos, clones, namoradas, strippers… nada faltava naquele enredo surrealista e nortenho.
Enquanto os actores representavam - e bem - o senhor encenador dava sonoras gargalhadas, acariciando, lentamente, o peito. O seu alter-ego funcionava às mil maravilhas. Sentia-se, por contágio, o delírio supremo: o criador gozando a sua obra. O escritor escutando, embevecido e maravilhado, as suas próprias palavras nascidas de uma gestação de três gloriosos dias.
No final, e perante o mutismo dos alunos, o criador, quero dizer, o encenador perguntou - que sensações experimentaram perante estas poucas cenas, meus amigos?! Compreenderam que há uma espécie de desdobramento autor/personagens? A vossa opinião é muito importante para todos nós. Claro que o mais apoteótico é o final. Não vou contar-lhes, mas a peça termina com uma espécie de bacanal. Orgia.
Bacanal?! Orgia?! Se o senhor prodígio acreditava na nossa insensibilidade ou estupidez perante a sua obra-prima, enganou-se redondamente. A abelha-mestra falou sabiamente; o Filipe, o João e o Zé mostraram não estar habituados a deixar os seus créditos por mãos alheias e até eu, a vítima lânguida de uma virose desconhecida, ensaiei uns quantos clichés, que pairaram no ar daquele macabro cenário, mas que foram, violentamente, amordaçados por novo ataque de tosse.
Já na rua, críticas e comentários. A palavra “orgia” tinha agradado aos rapazes. A Luísa, que durante o ensaio se mantivera queda e muda, parecia uma borboleta a quem o ar fresco da noite - o eufemismo e a comparação pretendem dar um toque literário a esta croniqueta - fizera sair do casulo.
Entrada para o “autocarro”. Gargalhadas. Alegria . Patrulhamento policial - por muito pouco a nossa condutora não apanhou uma multa por excesso de carga. Paragens. Acompanhamentos domiciliários. Inversões de marcha. Uma noite irreverente, diferente, repleta de bom-humor.
Tinhas razão, Zé, foi, decididamente, um óptimo bálsamo para rouquidões, tosse, constipações e uma dose elevada de preguicite aguda. Recomenda-se.

AMS