Silêncios
As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Sentia-se maltratada, agoniada, cheia de resíduos corrosivos na alma. Não conseguia raciocinar claramente. Depois dos pontapés e golpes secos que recebera, quem conseguiria? Ouvia a voz da mãe - “É assim, filha. Uma pessoa habitua-se. Temos de levar a nossa cruz até ao fim. O que conta é sermos mulheres dignas, boas mães, obedecendo sempre aos nossos maridos”.Não! Acabara! Tinha direito a viver, a ser acarinhada, respeitada. O corpo cheio de nódoas era a marca do que até ali fora o seu mundo: vergado, desfeito, destruído. Por quem? Pelo único homem que amara. Pelo marido. Pelo seu amor. Pelo seu dono! Primeiro, fora o abandono a que a enterrara. Depois, as mentiras, os enganos, a solidão com que ia tecendo a amargurada vida que não desejara. Em silêncio, foi-se acostumando a uma vida sem futuro. Até que, um dia, surgiu a primeira bofetada, a primeira agressão física, o início do inferno. Estava farta. Farta do silêncio com que escondia a sua vergonha - não seria a dele?! Farta de ter medo. Farta de ocultar aos olhos do mundo a farsa que era o seu casamento. Farta dos pedidos de desculpa e das frases já habituais: “Juro-te, nunca mais. Não me deixes. Que queres? Perdi a cabeça... Nunca mais. Sabes que gosto muito de ti...".
O sabor das lágrimas e do sangue misturando-se na boca. E, de novo, parecia ouvir a voz da mãe: - “Tem paciência. É a nossa sina e só nos resta aguentar. Há homens que só nascem para fazer a nossa desgraça. Mas é homem...”.
Sentia-se roubada. Sim, roubada. Onde estava a fatia de felicidade a que todos temos direito? Como pôde o amor tornar-se tão sórdido? Não, não podia ser isso. Algumas pessoas é que conseguem tornar o amor sórdido e aviltante. Ele é que fora vil, mentiroso, desonesto. Ela? Ela fora educada para a aceitação passiva da vontade do homem. Nunca ninguém se atrevia a censurá-lo. A sociedade aceitava determinados comportamentos, chegava a incitá-los. Que interessava que ele fosse um alcoólico, um violentador, um cobarde?! Era homem. E, como a mãe lhe ensinara, aos homens nada ficava mal.
Iria embora. Alguém, à face da terra, ajudá-la-ia, por certo. Iria embora. Ele que se desenrascasse sozinho. Que insultasse o silêncio. Que agredisse as paredes. Os vizinhos que falassem, a sociedade hipócrita que acusasse o que fingiu sempre ignorar.
A dor parece esmagar-lhe a cabeça. Dor física e dor que sai da alma. Uma dor que vai e vem. Não é como das outras vezes. Começa a fechar os olhos. A dor é cada vez mais forte. Sente-se agoniada, a visão começa a faltar-lhe. Só mais um minuto e tudo ficará bem. Será como das outras vezes. Com a diferença, claro, que ela já não estará em casa quando ele voltar para lhe pedir perdão, chorando como um menino desamparado. A sala parece girar. Esbater-se. O medo, a vergonha, as humilhações pertencem já ao passado. Sente uma enorme vertigem... mas a dor começa a enfraquecer, a recuar, dando lugar a uma certa inconsciência. Respira devagar. O peso na cabeça já não a incomoda, é como se já não tivesse a ver com o corpo. Tenta, num derradeiro alento, arrastar-se até à porta, mas não consegue. Um último pensamento lhe ocorre - quando ele regressar, ela já não estará, como sempre, à sua espera. Nunca mais!
AMS