sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Do ver, do ouvir, do sentir

Não vi nada, não ouvi nada! - fora assim, de forma inesperada, que lhe chegara a afirmação. Carregada de rancores. Prenhe de subtilezas. Se descontextualizada, simulava uma frase inocente, inócua, amiga. Inserida num determinado contexto, ocultava atalhos, insinuações, maldade. O branco oferecendo-se transparente? Não. O obscuro que se apresentava branco. E, subitamente, a raiva deflagrando, o pudor desaparecendo, o fruto apodrecendo.
Afinal, que poderia ter visto ou ouvido aquela alma amarga e ressequida? - interrogava-se, incrédula. Entre as várias epidemias que corroem o ser humano, a falta de respeito pelos outros é, sem dúvida, mentor. Com que impune liberdade algumas pessoas, tontas de arrogância e de cegueira, proclamam ambíguas "verdades" veiculadas por palavras que fluem raivas, prepotências, insensatez e um sabor acre pela vida? Que válida razão lhes permite reivindicar o direito de atear mistificações, vexames, juízos trespassados de arrevesadas intenções? Contudo, começava a estar vacinada contra a vocação histérica de alguns. Deixa que formiguem, não é grave - dizia-lhe, sabiamente, uma amiga. Não, não era grave. Era apenas lamentável. Parecia-lhe ouvir as palavras do médico - A escolha é sua: esconder-se num subterrâneo de medos ou desvendar a cor da vida; fechar-se numa teia de cepticismo ou abrir caminho ao desafio. Se algo ou alguém , num crudelíssimo jogo de massacre, tenta empuurrá-la para a quietude negra do nada, resista, lute.
Resistira. Lutara. Apesar das fragilidades inerentes ao ser humano, apesar dos erros - ou por causa deles - optara por cuidar da vida, por merecê-la. Tudo o mais deixara de a magoar, de fazer sentido. Tudo o mais era ruído. Não ver, não ouvir - sobretudo quando não se é cego ou surdo - deve ser uma terrível fatalidade, um enorme vazio - pensava. Não ver a beleza de um sorriso, não ouvir o som de uma palavra impregnada de mil matizes era não pertencer a ninguém, não estar em lugar nenhum. Pobre da autora da frase que não conseguia entender que, frequentemente, o mal que provocamos é bem menor do que aquele que sofremos.
Ainda bem que - compreendendo que também se morre de indecisão e de inércia - ela se propusera sacudir a poeira dos olhos e da alma.
E via. E ouvia. E sentia.

AMS