sábado, fevereiro 10, 2007

Do Inferno ao Paraíso... ou quase...

Ao longo de vários anos de ensino, tenho vivido situações de extremo dramatismo e, simultaneamente, da mais bizarra comicidade.
É evidente que a experiência vai ajudando. Contudo, há sempre algo que nos escapa e, creio, faz da nossa vida um filme especial.
Habituada a dar aulas a adultos, resolvi, por motivos pessoais, mudar de escola e optar por um horário diurno. Não contava, porém, que a “taluda” me ofertasse aquele “brinde”. Quando recebo o horário, reparo, entre incrédula e horrorizada, que tinha sido contemplada com uma turma do oitavo ano. Impossível - pensei! Há anos que não lido com alunos desta faixa etária. Além disso, todo o docente que se preze sabe que os oitavos anos são, habitualmente, fonte energética de problemas, stress e depressões.
Debalde tentei que o conselho executivo - na época, conselho directivo - me retirasse aquela bomba.
Até vais gostar! É uma experiência diferente! Tu aprecias desafios… - diziam os colegas mais próximos num tom pouco convincente e, de certa forma, soando a velório. Era fácil, naquele caso, adivinhar quem seria a vítima.
Obrigada, contrariada, furiosa… acabei por me render ao inevitável. Assim, e não querendo ser surpreendida pelo inimigo, resolvi consultar o dossier do director de turma. Eis a sentença - " Vinte alunos. Todos repetentes. Idades compreendidas entre os quinze e dezassete anos. Quatro deficientes auditivos. A maioria não vive com a família. Alunos problemáticos e com antecedentes comportamentais mais ou menos graves" .
Entrei em pânico. Apeteceu-me desistir, ou seja, meter um atestado de longa duração. Afinal, a minha fidelidade àqueles alunos podia ser ad libitum. Acabou por vencer o meu lado masoquista. Como escreveu Miguel Esteves Cardoso, os portugueses têm o culto do sofrimento. Ali estava eu… belo exemplar da sua tese!
Como caracterizar o meu “tête-à-tête” com a turma? Indescritível. O filme “Sementes da Violência” comparado ao que nós - sim, o calvário era comum a todos os professores da turma! - sofremos, não passava de uma comédia ligeira e frívola.
De nada adiantava chamar os funcionários, a presidente do conselho directivo ou o professor de religião - aquele bando de rebeldes tinha decidido exterminar o corpo docente da escola. Quantas vezes dei comigo atónita, gelada de raiva contida, pensando - Isto não está a acontecer. É demasiado tenebroso. Estou a ter um pesadelo!
O pesadelo era, infelizmente, real, persistia, e o meu equilíbrio corria o risco de ficar mais instável do que a torre de Piza.
Uma das cenas mais hilariantes - confesso que, na altura, o meu sentido de humor não me permitiu apreciar devidamente aquele torneio medieval - teve a sua origem a partir deste desastrado sumário - Exercícios de aplicação da Língua. Era óbvio que me referia à Língua Portuguesa! Bem, não foi tão óbvio, pelos vistos… Abstenho-me, por pudor, de relatar os comentários vernáculos que o dito sumário suscitou.
Findas as observações, insinuações e outras adendas afins - tentei fazer-lhes ver os erros mais comuns que os alunos - e não só - cometem ao escrever. Desde o célebre e habitual “concerteza” - já agora, e para os mais esquecidos, deve escrever-se com certeza - até à confusão do “demais” ou “de mais”, passando pelo “porque” e pelo “por que”, nada tinha sido deixado ao acaso - pensava eu…
A parte mais “indigesta” da aula - para mim, claro - teve, todavia, como “protagonista” uma intervenção de um dos alunos. Perante os dois exemplos escritos no quadro - Não sei por que razão o Pedro é tão presunçoso. Talvez, quem sabe, porque pensa que é o maior e... - o João - era o nome do chefe da guerrilha - levantou-se, soltou uma risada e, apontando para o primeiro exemplo, proferiu:
- Mas onde é que bocê foi imbentar isso?! Fogo, nunca bi ninguém escrever porque separado, caraças!
Meus amigos, o que pensei, o que me apeteceu fazer, naquele momento, só pode ser descrito com um expressivo Piiiiiiiiiiiiii e com a famigerada bolinha = O !

Nota: Como alguém disse - e muito bem - a resolução de um problema passa, frequentemente, por saber encará-lo segundo várias perspectivas. Neste caso, do ponto de vista do "adversário". Um belo dia - ainda há finais felizes! - aquela" santa cruzada" acabou. Passei a ir armada como o exterminador implacável? Não foi preciso chegar a tanto. Bastou ter tido a coragem, astúcia (sensibilidade?) de, ao ouvir uma das alunas da turma queixar-se - Num percebo porque ninguém nos leba a bisitas de estudo. Até parece que metemos medo a alguém… - eu , de imediato, ter respondido:
- Levo-os eu. Levo-os eu! Vamos ao teatro!
Foi como se aqueles adolescentes tivessem sido catapultados para uma outra dimensão. Tudo mudou. Claro que as aulas nem sempre eram o paraíso. Visitámos, algumas vezes, o purgatório. O inferno, contudo, acabara!

AMS