quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Do ver, do ouvir, do falar e do tocar

Igreja do Bonfim, festa de Santa Clara. Barracas, fanfarra, animação.
A razão da nossa presença - minha e da Sónia - naquele lugar? O facto de uma amiga ter, subitamente, falecido e de, naquele sábado, se celebrar a missa de sétimo dia.
Mal nos deparámos com aquele arraial, pensámos - Não é aqui. Estamos, com certeza, enganadas.
No entanto, não seria provável que a informação dada pelo José Almeida estivesse incorrecta. Como a alegria de uns pode ser a tristeza de outros! Festa, foguetes, euforia contrastando com a mágoa, a saudade e as lágrimas daquele ritual fúnebre.
Ainda que receosas, entrámos. A presença do Zé e da família serenou as nossas dúvidas. Era aquela a igreja, era aquela a missa. Já sentadas, algo chamou, de imediato, a nossa atenção. O padre tinha uma pronúncia assaz… curiosa. Atordoadas, tentámos concentrar-nos na missa em memória da nossa amiga. De repente, a voz do pregador elevou-se e, entre espanto e espanto, ouvimos – “… porque Moijés era gago… “.
Moisés era gago??? – perguntou-me, perplexa, mal contendo o riso, a Sónia.
Reprimindo uma sonora gargalhada, respondi – Nunca li nem ouvi tal coisa. Se sofria de gaguez, o tempo que o profeta demoraria a ler os dez mandamentos…
A divertida Sónia evitava olhar para mim. Eu, receando não poder conter o riso, esfregava o rosto com as mãos. Um cavalheiro sentado perto de mim, dando uma dolorosa interpretação à minha tentativa de ocultar o rosto, interpelou-me, condoído - É da família do defunto?
Do defunto?! Não, balbuciei, enquanto, pela centésima vez, olhava para a biqueira dos sapatos e pedia perdão à amiga que, tão cedo, nos deixara. Afinal, compreendi, havia, ali, várias famílias a rezar pelos entes queridos.
O sermão continuava. A pronúncia, os gestos eloquentes - se estivéssemos na véspera do Apocalipse, os braços não se elevariam tão desesperadamente ao céu - tudo parecia conjugar-se a favor da nossa desatenção.
“… por isso, meuz irmãoss, olhos para vere, ouvidoss para escutare, boca para falare e mãoss para tocare…” – apregoou o santo homem.
Era preciso ser de ferro. Não ver, muito menos ouvir tão hilariante oratória.
A Sónia ajoelhara-se, procurando disfarçar sorrisos desapropriados. De tanto morder os lábios, eu, para reprimir o riso, tinha os olhos humedecidos de lágrimas. No entretanto, o senhor do lado pousara-me a mão no ombro - num gesto cheio de piedade cristã. Senti-me pecadora entre santos.
E o bom do cura continuava a lançar pérolas a ingratas…
“ Não quero masçar-vos, irmãosss, masz volto a repetire - olhoss para vere, ouvidoss para escutare, boca para falare e mãoss para tocare…”
A verdade é que, quais fariseus a serem expulsos do templo, não conseguíamos já esconder uns esgares mais ou menos burlescos. A nossa amiga não merecia um tal desrespeito. Porém, consolava-nos a ideia de que ela, divertida com o bizarro da situação, estaria a pensar - Aquelas duas não têm emenda!
Quase no final da missa, e para terminar em glória, o servo do senhor anunciou - Avijo oss paroquianoss de que vão abrire as inscrixões para a catequeje. Amanhã, dia de Santa Clara, continuarão as festividadess. Actuará a banda dos bombeiros de Campanhã, haverá comess e bebess com sumoss e águass gajeificadass, masz as bebidass alcoólicas estão proibidass.
Não havia pia alma que resistisse. Saímos, apressadamente, da igreja, sob o olhar protector do meu santo vizinho.
Pouco depois, no adro, dados os pêsames - sentidos - à família da nossa amiga, aguardámos a chegada do poeta. Seria impossível não lhe narrar o nosso - pouco correcto - comportamento. Face à narrativa da Sónia, o Zé Almeida sorriu - quem não ficaria contagiado com a fala da minha amiga copiando a pronúncia do cura? - e acrescentou: O que vocês ouviram foi o sermão um; amanhã, será o sermão dois. Aliás, só existem esses.
Que dizer?!
Guardo, desde aquela missa, as palavras sapientes - Olhos para ver; ouvidos para ouvir; boca para falar e mãos para tocar!
Meu Deus, eu vejo. Eu ouço. Eu falo. Nem sempre toco...

AMS