terça-feira, abril 25, 2006

Direito de resposta... à letra

Caro Manuel Ribeiro,

Li, entre atónita e indignada, o seu artigozinho - o diminutivo, acredite, não é um mimo. Li, reli e só não decorei porque esse tipo de escrita é indigesta e corrompe a credibilidade jornalística.
Assim, querido Manuel Ribeiro - amor com amor se paga - senti-me na urgente necessidade de responder à sua croniqueta com piropos semelhantes àqueles com que, jocosamente - senilmente ? - resolveu mimosear as docentes - no seu vocabulário deve apenas existir a palavra (in)decentes - deste país.

Para ser absolutamente sincera, o meu primeiro impulso foi votá-lo ao desprezo. Os seus escritos, e não apenas este, revelam a sua principal característica - o senhor é - ou julga ser - um marialva provocador, engraçadinho e digno de figurar, como herói topo de gama, nas revistas aos quadradinhos. Rara é a crónica em que não desabafa e deixa sair esse complexo de Édipo tão exacerbado que até mete dó. Raro é o texto onde não se constata que a suprema felicidade para si - e a solução para os muitos problemas que a sua personalidade apresenta - passa pela abolição dos direitos das mulheres - todinhos - e por uma carência doentia de acolher o maior número possível de “escravas” - moças desvalidas é como costuma apelidá-las, certo? - no seu “abrigo” ao qual, liricamente, chama de paraíso. Se eu não tivesse a certeza de que o meu amigo é um refinado idiota, seria tentada a crer que seria uma nova versão da madre Teresa ou, no mínimo, convertido ao poder de sedução das palavras do psicólogo Eduardo Sá, passara a ter como lema - chega-te a mim e deixa-te estar.

Num ponto estamos de acordo, amigo Manel: na profunda indignação que, ao que parece, ambos evidenciamos. A sua, pelo que li, resultante de um qualquer recalcamento tido na infância ou na adolescência - Freud explicar-lhe-ia melhor; a minha… provocada pelo seu impudor, má formação, falta de nível , falta de carácter e, sobretudo, por um ego balofo, repugnante e anémico. Refiro-me ao seu, claro.
Sinto-o uma espécie de intelectual naftalinado a necessitar urgentemente de ser reconhecido pelo notário, acredita? Um beija aqui, beija acolá, pegajoso e incompreendido, predestinado à glória do… esquecimento. Ah… a só-literária vulgaridade!

Por outro lado, o desconforto que me causou o seu black-out à minha profissão assenta num terrível receio que, em abono da verdade, me está a provocar náuseas e tonturas. Muito mal vai o país cujos jornais mais conceituados permitem que um qualquer aprendiz de aprendiz a jornalista se outorgue o direito de insultar, caluniar - a título de provocação? Não me faça rir… - com toques virulentos de sordidez e pouca vergonha, profissionais que, ao que tudo indica, não estiveram presentes no seu longo e penoso processo de aprendizagem… à distância. Tão à distância, amigo Manel, que nem uma gotícula de educação transparece no seu sebáceo discurso.
Dar-se-á o caso de esse complexo, essa raiva desmedida contra as professoras deste país ter a sua origem em algum caso mal resolvido com alguma delas? A minha curiosidade aguça-me o espírito e a maledicência. Teria sido com uma
dessas a que, carinhosamente, cataloga de camafeus ? Seria com uma, segundo as suas vernáculas palavras, com prazo fora de validade? Ou, pelo contrário, com uma, seraficamente, apelidada de bem dotada? Assim a modos que mente sã em… corpo são, não? Creio que me faço entender… Não adianto mais este meu interessante périplo porque, pelo que li, cowboys que gerem de um modo diferenciado os seus afectos não fazem parte da sua lista… Honni soit qui mal y pense!

Ó Manuel Ribeiro, então o meu amigo pensa que os professores deste país andam por aí a jogar à lerpa? Está muito enganado. Logo o senhor que se diz um exímio conhecedor de almas e de... professoras e professores. Citando Saramago - o do prémio Nobel… não sei se conhece... - “ O professor, hoje, é um herói. Precisa de ser corajoso, por vezes até a nível físico”. E como o grande escritor está coberto de razão! Ser professor, nos dias que correm, é uma verdadeira missão. Sem estímulos adequados, sem remunerações compatíveis e muitas vezes sem condições nenhumas, os bons professores são todos aqueles que não desistem de ensinar. E de aprender. Que é uma coisa que um aprendizeco a jornalista não pode compreender, porque lhe falta inteligência. E muita sensibilidade. E carradas de polimento. E montanhas de originalidade e de talento.
Por outro lado, orgias e outros bacanais afins estão mais indicados a serem praticados em pasquins e, de preferência, tendo como jogadores economistas maníaco-depressivos e com um trauma compulsivo contra… mulheres.
Quer um conselho de amiga? Se fosse a si, não vá uma dessas queridas professoras dar-lhe um pontapé igual ao que escolheu como marca prestigiosa dos seus artigos - o que demonstra que o meu amigo além de asno, é um asno violento - fazia como o Dâmaso Salcede. À cautela, ia-me raspando para o Iraque! Acredite, as queridas professoras, reconhecidas, agradeciam!

De uma fervorosa admiradora,

AMS

Nota: Concordo quando afirma que, no ensino, predomina o sexo feminino. Às mulheres sempre coube a graça de dar à luz e de ser fonte de luz. Espero que, de igual modo, concorde com o meu atento reparo - economistas, em Portugal, é carreira onde predomina o chamado sexo forte. Será que com tanta crise - basta ver-se a nossa economia - os tais jogos de sedução que nos aconselha não se aplicarão mais a quem - habituado a números que nada dizem - usa as palavras como o prelúdio de uma grande façanha amorosa que, invariavelmente, se resume a… nada vezes nada?!

segunda-feira, abril 24, 2006

As nossas queridas professoras

Não posso deixar de vir aqui publicamente expressar a minha profunda indignação pelo ataque que está a ser infligido às nossas queridas professoras, no sentido de as obrigar a cumprir o horário de trabalho. Trata-se de enorme violência para as próprias, para os alunos, suas famílias e população em geral.

Sim, porque não são só as professoras que sofrem com esta despudorada medida, que lhes coarcta o legítimo direito a dar umas voltinhas pelo shopping para espairecer de terem de aturar a cambada de energúmenos que se sentam nas carteiras das salas de aula e lhes limitam fortemente a possibilidade de desenvolver acções de formação permanente mediante o visionamento na televisão de vários programas instrutivos e outros que espelham bem o sentir da sociedade em que nos inserimos, como é o caso das telenovelas e dos concursos onde os docentes iam actualizando os seus conhecimentos.

Aos alunos a medida também não agrada, já que o grau de irritação dos professores tende a aumentar exponencialmente, diminuindo o nível de tolerância às graçolas e aumentando a repressão que sobre eles se abate.

A população em geral tem também vindo a sofrer as consequências, já que não há família em Portugal que não tenha no seu seio uma prima ou uma tia pertencente à prestimosa classe docente que lhes seringa constantemente os ouvidos com a injustiça que sobre eles recaiu. Toda a gente sabe que a grande motivação para passar uma vida a aturar miúdos malcriados era a possibilidade de ter umas férias decentes e de não gastar mais do que meio dia nas aulas ficando com o resto do tempo por conta. Se querem agora obrigar os desgraçados a picar o ponto de sol a sol lá se vai o interesse da função. Uma das grandes preocupações das professoras em relação a este novo regime que as obriga a ficarem na escola para além das aulas é não saberem muito bem como é que poderão ocupar aquelas horas, já que, como é óbvio, ninguém está interessado em usá-las a trabalhar, quanto mais não seja por pirraça e para chatear o ministério.

Para minorar a sua dor, posso dar aqui algumas sugestões para o melhor uso do tempo disponível. A actividade mais apropriada é a de curtirem com outros professores do sexo oposto, que também andam por ali sem saber o que fazer. As escolas são em geral pródigas em recantos escuros e salas vazias que propiciam o desenvolvimento da prática. O único óbice resulta do reduzido número de homens, pelo que a coisa só pode ser feita em regime rotativo ou fica reservada só para as mais dotadas, com exclusão dos camafeus e das que esgotaram o prazo de validade. Uma outra actividade a que se podem dedicar é ao jogo da lerpa. Para além de ser de fácil aprendizagem, propícia um grau de excitação próximo da sugestão anterior com a vantagem de o sexo dos jogadores ser irrelevante. Para os que não são capazes de uma coisa nem de outra posso alvitrar umas sessões de espiritismo com uma roda de professoras efectivas à volta de uma mesa pé-de-galo, a estabelecerem comunicação com almas penadas vindas do além.

Manuel Ribeiro
Economista
in notícias magazine

quarta-feira, abril 19, 2006

FIM

Não consigo viver a meio gás. E, no entanto, estou segura da minha fragilidade. Das minhas imperfeições. Gostaria que me ensinassem a fórmula mágica que faz das pessoas poços de bom senso e de certezas. Assumo - não sou perfeita e o meu bom senso deixa muito a desejar. Vivo num estado mitológico puro - fé ou descrença. Contudo, o muito de que sou feita - exageros, contrastes, caracteres que, frequentemente, se antagonizam - não dá o direito à efabulação de juízos simplistas e erróneos.
Talvez tenha - admirável o dom de clarividência de alguns! - a alma enrugada, cheia de cicatrizes. Quem sou eu para desmistificar a imagem que os outros vêem, julgam ver... ou eu mesma criei?! Porém, neste jogo de encenações e malabarismos que é a vida, nesta viagem de inquietantes perguntas, nas linhas, ora direitas ora tortas, com que nos sentenciam e sentenciamos os outros, há sempre um halo de grandeza ainda que acoberto de clandestinidade.
Dizem que as palavras podem estar na origem de situações complicadas se as empregarmos levianamente. Mas serão apenas as palavras fonte de situações dúbias, lamentáveis e dolorosas?E quem, ao empregá-las - ou mesmo não as empregando - atiça venenos quase sempre mortais? Não me doem as palavras. Doem-me as bofetadas que elas arrastam consigo. Dói-me esse sentimento que estilhaça o coração de tal forma que, dificilmente, a melhor da boa vontade o voltará a colocar inteiro. Dói-me a leveza com que, subtilmente, se insinua aquilo que não se tem a coragem de lançar frontalmente. Há momentos, dominados por fortíssimas emoções, em que chegamos a apreciar os nossos inimigos. Com esses estamos precavidos. Com esses sabemos que, a qualquer momento, poderá haver um ajuste de contas. Um vencedor e um vencido.
Há momentos em que nos sentimos tão desoladamente incompreendidos, injustiçados - jocosamente agredidos no que somos, porque somos - que, por mais que elevemos, ao céu, o coração, ele acaba por constatar que Deus está muito longe. E a bondade dos homens… ainda mais.


AMS

terça-feira, abril 18, 2006

lucida(mente)

Começo a queimar palavras
para não deixar nada atrás de mim.
O meu passado
não serve ao meu presente,
muito menos a um futuro incerto
que está em relação a mim
como o longe e o perto.

Assim, hoje, decidi queimar,
com lúcida vontade,
o que outros, amanhã, queimarão
com indiferença.

E vejo o fogo destruir
os pedaços escritos do que eu fui...

Cansaço ou tédio?
Prefiro ignorar.
Talvez desperta ânsia
de ser saudade,
ser distância.

AMS

segunda-feira, abril 17, 2006

Verde de esperança. Vermelho de paixão.

Embrulhada nesta manta vastíssima de patriotismo verde e vermelho - o mundial está perto - dou por mim a olhar, embevecida, para a bandeira do meu país e a sentir um orgulho imenso em ser portuguesa (pelo menos até não experimentar o sabor amargo da derrota e da desilusão). Não que fosse partidária do slogan - o que é estrangeiro é que é bom. Não compre produtos nacionais! Longe disso. Mas esta (até agora) passividade de carneiros, este deixar andar... que amanhã logo se vê, este não te rales... que até podia ser bem pior, este conformismo... como se tivéssemos sido condenados a arrastar, eternamente, pesada cruz, este fatalismo hereditário com que somos fadados à nascença, tudo isto faz de nós um povo cinzento, cinzentinho, cinzentão. E revoltados. E sofridos. E irritantemente submissos. E descoradamente humilhados. E pacientemente ofendidos. Mas sem genica, sem resposta, sempre à espera de mais uma visita da Senhora de Fátima, de um milagre, desses que são apenas para uso doméstico. Melhor entrar no reino do maravilhoso - pensam alguns temerosos - do que levar um abanão que faça o país tremer de uma ponta a outra. Será? Eu, pelo sim pelo não, sou apologista do tal abanão que nos faça retornar às origens e que nos retire este fatal estatuto de bonzinhos, mas de uma inércia tão doentia, tão contagiosa, que fará, mais dia menos dia, levantar da tumba a padeira de Aljubarrota.
Messiânica? Defensora do mito sebastianista? Não tenciono seguir os passos do Bandarra, acreditem. Mas este entorpecimento, este jazer adormecidos, esta vontade de ir - mas sempre ficando - começa a parecer-me irreversível.
Porém, o ser humano é deliciosamente imprevisível, loucamente mutante. Assim, basta ouvir os jogadores da selecção e o seu treinador para, de imediato, ter vontade de gritar - sou portuguesa! Vivo neste jardim à beira-mar plantado e, embora torcendo o nariz à mediocridade balofa de certos homens da política, à mentalidade tacanha - as revistas de coração chamam-lhe "in" - de alguns (muitos) senhorecos e senhorecas, assumo, de viva voz, o meu estatuto de portuguesa, não orgulhosamente só, mas orgulhosamente convencida de que, para que a obra nasça, é preciso muito mais do que acampar nas fronteiras voluptuosas do sonho, do imaginário, do faz-de-conta. É preciso querer, suar, lutar, não desanimar, insistir, investir e, sobretudo, é preciso que nos assumamos como uma vontade colectiva.
Assim nascem os heróis. Assim nascem os mitos. A verde e a vermelho. Verde de esperança. Vermelho de paixão. A paixão com que devemos impregnar tudo o que fazemos, ainda que seja a assistir, nervosos mas confiantes, a um simples jogo de futebol.
Estamos na era dos novos heróis. Não somente porque marcam golos e nos fazem acreditar em vitória - e como a palavra soa bem a quem se habituou a andar de olhos no chão - mas, essencialmente, porque são capazes de dar um novo alento a todo um povo viciado, há tanto tempo, em ver o vento calar as desgraças...
Isto não pode nem deve, contudo, fazer-nos esquecer os outros, os não menos heróis, os que lutam desesperada, estoicamente contra a incompetência e as falhas a vários níveis - saúde, educação, justiça... A lista é demasiado longa, e a tarefa destes heróis anónimos é árdua e, quase sempre, inglória.
Desejo, ardentemente, que estes heróis - os tais filhos de um deus menor - não baixem os braços. Não desistam. Não calem a desgraça do vento que passa. Pelo contrário. É tempo de gritarem bem alto - a quem de direito - que as desgraças, frequentemente, têm a sua origem na incompetência dos que se julgam deuses maiores.
Sejamos todos portugueses - aqui e agora - mas de cabeça erguida, unidas as mãos, sabendo escrever a nossa história, o nosso futuro, as nossas vidas... a verde e a vermelho. Verde de esperança! Vermelho de paixão!


AMS

sábado, abril 15, 2006

Instintos Fatais

Decididamente, os meus gostos cinematográficos não vão de encontro aos dos meus amigos. Numa quase batalha naval, usando argumentos, contra-argumentos e um peremptório “ou este ou nenhum", lá consegui arrastar três almas - muito pouco convencidas, diga-se - a irem ver o filme “Instinto Fatal 2”.
No final, e contrariando, de novo, a opinião dos três “sofredores”, saí com a certeza de que o filme, ainda que defraudando um pouco as minhas expectativas, tinha merecido um satisfaz.
- És mesmo básica! O primeiro ainda tinha aquele famoso cruzar de pernas e uma Sharon Stone estimulante -
vociferava o matemático do grupo. Neste, não há cenas de sexo convincentes, a Stone, em determinados planos, aparece envelhecida - ainda que bastante sensual - e a história é, no mínimo, insípida e circular.
- Porra, mas só vieste ver as pernas - e mais qualquer coisita - da Sharon Stone? Esqueceste-te, aliás, de um outro pormenor - neste filme, o picador foi pouco focado. Pouca sorte, não?
- Tretas! O filme, exceptuando as cenas iniciais, não teve acção e a história é o habitual lugar-comum das mentes perversas, psicopatas. Já agora, espertinha, que
viste tu que nos escapasse a todos?
- Para sacana… sacana e meio. Vi o David Morrissey… pelado! Estás contente?

Risos e comentários que decidi omitir.
- A sério, que tinha o filme de espectacular? Estou curioso. Aprender até morrer. Começa a desbobinar…
- Vi aquilo que todos nos recusamos aceitar - que os nossos instintos primários não têm limites e podem arrastar-nos a um abismo negro e sem saída. Catherine Tramell não é uma personagem criada para demonstrar que de um lado estão os maus e do outro os bons - sempre nós, claro. Todos temos um lado perverso, manipulador, narcísico. Todos nós, de uma forma ou de outra, já experimentámos o prazer de calcar o risco. Ou, pelo menos, já imaginámos fazê-lo. Todos nós, ocultamos - melhor ou pior - a escuridão e uma certa urdidura que nos enleia. O que nos distingue tem a ver com um menor ou maior controlo sobre nós
próprios.
- Que disparate! Então tu defendes que qualquer um de nós poderia matar só pelo prazer de tirar a vida a alguém? A tal omnipotência…
- Em casos extremos, acredito que sim. Evidentemente que não me refiro ao que tu apelidas de "prazer de matar". Mas acredito que, em circunstâncias de uma extrema pressão, todos nós somos capazes, quanto mais não seja pelo instinto de sobrevivência, de tirar a vida a alguém A vida é um jogo, meu caro. Uns seguem as regras; outros… fingem segui-las; outros, coleccionadores de vícios e metamorfoses, sentem-se altamente estimulados em infringi-las, distorcê-las… Beatitude e maldade! Esta dualidade faz parte do ser humano. Como se em nós existisse um duplo que levita e confunde os conceitos. Por outro lado, quem te garante que, amanhã, és a mesma pessoa que, hoje, está aqui sentada? Temos, creio, uma identidade para uso comum. E onde ficam as outras? As que a sociedade, a educação, os nossos próprios valores reprimem? A percepção que cada um tem da mesma coisa varia. Por que razão o que é ilusão para uns não poderá ser a verdade de outros?
- Começo a ficar inquieto e intrigado com este discurso. Tens picador?

Novamente omissão de algumas passagens do diálogo.
- Está a fazer-se tarde, mas gostava de saber quem foi, afinal, o assassino? A escritora? O psicólogo? O polícia? Fiquei confuso… O final ficou demasiado em aberto…
- A questão do assassino é irrelevante. A problemática está no conflito com a própria identidade… Há entre as personagens uma estranha relação de troca - a profundeza, a amoralidade dos instintos, o vácuo, o vazio onde eles os transportam. Como escreveu Proust - "(...) Uma pessoa não está... nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projectos, as suas intenções para connosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento directo, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de actos, palavras e actos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verosimilhança, que brilham o ódio e o amor."
- Proust? A esta hora da noite? Piedade! Então, para ti, tudo se resume a uma combinação de Harry Jekyll e Mr. Hyde. Por um lado, a pessoa “certinha”, com valores, estimada por todos; por outro, o monstro, o psicopata que realiza as fantasias, nunca confessadas, da sua metade - Jekyll.
- Mais ou menos isso. Resta saber, como já disse, a capacidade de controlo que o indivíduo tem sobre os dois. Carência de sentimentos de culpa e de consciência social são a via que conduzem mais depressa a Mr. Hyde. Frustrações e recalques, distúrbios de identificação, um ódio imenso pelo outro… incitam à destruição e a uma não consciência da própria mesquinhez. Quando a humilhação, a desgraça ou a tortura são fonte de prazer, quando se perde completamente a sensibilidade ao sofrimento humano, estamos perante uma quadro doentio, mas sem que o sujeito tenha a mínima percepção da dimensão da sua enfermidade. Daí que Catherine Tramell seja perita em mentir e seduzir, confundindo o limite entre o consciente e o subconsciente. Quando mente, fá-lo para testar um forte sentimento de autovalorização, ocultando a sua impossibilidade de se apegar ou vincular aos outros. Aliás, mesmo quando aparenta intenções de proteger alguém, é fria, calculista e falsa. E o ponto máximo é quando consegue reverter o jogo e passa de culpada a vítima.
- Sabes que mais? Convenceste-me. Amanhã, vou ver um filme da Disney.


AMS

quinta-feira, abril 13, 2006

Encontro-me nas palavras

Encontro-me nas palavras que escrevo.
Palavras vulgares, anónimas, rastos do quotidiano. Palavras divididas entre o coração e a razão. Soletrando tristeza e alegria .Cruzando-se no semáforo da vida. Palavras envoltas em ternura. Em desapego. Cada abraço, um laço solto.


Encontro-me nas palavras que escrevo.
Descobrindo-me, descobrindo, como farol do acaso, emoções por desvendar, fomes por acalmar. Palavras que respiram memória, cansadas de distância e da sede de ir sempre mais longe. Palavras fugindo da derrota mais sentida de todos os dias da vida.
Na noite, deslizando, devoradoras, plenas de tudo até ao nada da ausência. De dia, atravessando os muros da rotina, instalando-se no fogo da coragem que queima a angústia de ter sem ter.
Palavras a que me agarro, em que me invento real.
Palavras mágoa de escuro habitadas. Palavras sonho de fogo ateado. Palavras vivas de rotas infindas.

Mas quem as lê? Quem as ouve? Quem as sente? Quem traduz a verdade inventada que delas escorre?
Encontro-me nas palavras que escrevo. Não posso voltar atrás.


AMS

quarta-feira, abril 12, 2006

nem disto nem daquilo

Eugénio de Andrade disse um dia: "Às vezes sinto-me tão desesperado que me sento a escrever como quem chora."

Não sou uma super-mulher. Não tenho luzes decorativas a iluminar o meu percurso. Nunca fui, seguramente, um perigo público para ninguém, visto não possuir nenhum dote especial que me saliente do comum dos mortais. Quando estou infeliz, não consigo mascarar-me de fénix renascida. Quando consigo perceber que a bondade tem mais aceitação do que o cinismo, que ninguém passa sem deixar rasto - por mais pequenino que seja - que somos sempre o centro da vida de alguém, que os patinhos feios, afinal, podem virar cisnes, enfim, quando me dou conta de que os que me amam me amariam de todas as formas, mesmo que eu não tivesse acertado uma que fosse – sou feliz.
A minha parte narcisista faz-me cometer erros. Demasiados. Muitas vezes não sei se o que me basta… me basta. E a vida desenha-se num cansaço - “nem disto nem daquilo”. Cinzento. Confuso. Alicerçado em fragilidades. Na não aceitação de ser quem sou. Passando mais tempo a proteger-me do que a aproveitar-me.
Por cobardia, quantos momentos felizes desperdiçados só por pensar no que os outros iriam (poderiam) dizer?! Quantas vezes deixei de ser espontânea, verdadeira... com medo de parecer ridícula?! Quantas histórias de fadas deixei de inventar - de contar-me - demitindo-me do meu direito ao sonho?! Penso que, às vezes, sou como um barco à deriva. Aliviando dores com paliativos que uniformizam a luz da vida num halo de névoa. Com olhares para fora de mim, receando olhar-me para dentro. Esquecendo que é pela minha relação comigo que passam os outros. Que ultrapasso barreiras. Que me ultrapasso.
Contudo, nesta revisitação dos sentires que me identificam, acariciando nostalgias e desconfortos que os povoam, sei que a única pessoa que pode “ligar a luz”, afastando uma escuridão, aparentemente, terrífica, sou eu. Porque, como diz Christian Bobin - "Há um tempo em que o dia acaba, e ainda não é noite... É só a esta hora que se pode começar a olhar as coisas, ou a vida. Acontece que precisamos de um pouco de escuridão para ver bem, sendo nós próprios compostos por claridade e por escuridão."
Claro que, frequentemente, imersos na convicção da nossa superioridade e da nossa perfeição, a vida nunca é aquilo que queremos. Que achamos merecer. E, subitamente, sem qualquer motivo dramaticamente grave, damos connosco a pensar – Por que é que está tudo mal? E, estupidamente, numa tensão constante, vamos perdendo “bocados” que nos fazem falta. E, em alternativas contínuas de avanços e recuos, esperando que um milagre nos traga o que nós próprios mutilámos, vamos justificando o nosso distanciamento da tal parcela de felicidade a que todos sentimos ter direito, com a superficialidade de eloquências baratas, fáceis. Em caminhadas encharcadas de egotismo. Azedume de palavras e actos. Vaidades comezinhas. Ilusões que vamos debitando aos outros como se fossem eles os culpados do nosso mundo estar virado do avesso. Mentiras tão toscamente antiderrapantes que, de tão bizarras, chegam a ter graça.
E se tentássemos viver de bem com o que temos? E se déssemos menos valor ao significante das coisas e mais valor ao significado dos gestos? Sim, nem sempre será possível caminhar neste rumo à perfeição. Umas vezes conseguiremos. Outras não. No fundo, talvez tudo passe por uma questão de prioridades. Cedências. Humildade. Nada impede que o meu caminho possa ser também o caminho dos outros. E vice-versa. Deste modo, penso, a felicidade será muito mais “barata” do que aquilo que imaginávamos. Muito mais acessível. E o seu canto deixará de estar trancado numa qualquer gaveta da nossa alma. Passará a habitá-la. A habitar-nos. Se não permanentemente, pelo menos sem silêncios duros como pedras. Sem desilusões que acordam revoltas. Raivas. Sonhos encalhados em lágrimas. Palavras cortadas ao meio.
Porque, independentemente da nossa vontade, independentemente de crermos, piamente, que o sol gira à nossa volta, o Inverno acaba sempre por dar lugar à Primavera.


AMS

terça-feira, abril 11, 2006

luz do poema

quando o calor do teu sorriso
me acerta na pele
fica inscrito na alma

a tristeza surpreendida
pelo navegar íntimo desse enigma
germina de verde espera
rega o poema de luz

AMS

domingo, abril 09, 2006

perenidade volátil

De tanto buscarmos a felicidade,
de tanto desejarmos essa ausência
que incendeia o pensamento,
ignoramos as estrelas que nos iluminam
o caminho com partículas de chamas invisíveis.
E nessa louca procura
de um astro imediato que derreta
o aço e o cansaço do coração,
pouco a pouco, em charcos de sombra
sem resposta, desatentos ao sufoco
e desolação da alma, vamos anoitecendo a vida.


AMS

sábado, abril 08, 2006

Pena e Alento

Restas-me tu. Mas no tacto das coisas não te encontro. E procuro-te num tempo feito de mil tempos. E vejo o teu reflexo no côvado da minha mão. E espero, em todas as alvoradas, os teus olhos escorrendo o antes e o depois. O sopro da paixão subitamente aceso. Inesperadamente denso de expectativa. E vou sempre desaguar a ti.

O que nos leva a folhear a fragilidade da eternidade? O que nos leva a fechar o círculo, seguindo as coordenadas que o coração indica, afrontando, definitivamente, o destino que perseguimos? Talvez, assumindo a fragilidade que nos habita, o receio de abrir os olhos e nada ver…

Não sei quanto me resta de viagem. Não sei quando o cansaço, preenchido por uma força irreprimível de chegar, me apagará os contornos. Mas não quero chegar ao fim da minha rota sem encarar todas e cada uma das minhas penas. Todos e cada um dos meus alentos. E tu és pena e alento. Silêncio e grito. Demasiadamente luz. Demasiadamente sombra.

Restas-me tu. Ainda que no território da palavra. Ainda que no espaço invisível das nostalgias. Ainda que na irredutível certeza de saber que jamais aportarei aonde a saudade e o desejo conduzem os meus passos.

Ajuda-me a lançar a âncora no interior do destino que devia cumprir-nos. Transforma a minha pena e o meu alento em suave abraço. Oculta-te na sombra. Condensa-te na água. Adensa-te na bruma. Dissolve-te nas ondas. Mas não me deixes partir sem te ouvir dizer – restas-me tu!


AMS

quinta-feira, abril 06, 2006

Um ovo de chocolate

A atitude dele comoveu-a. Achou piada e, ao mesmo tempo, não percebeu aquela perturbação quando, meio constrangido, ele lhe entregou o saco - Isto é para si. Não abra. É só uma lembrança.
Tinham uma ligação de forte amizade há uns largos meses. Ele sempre fora um colega doce e amável com ela. Riam com a mesma facilidade. Ajudavam-se mutuamente. Respeitavam o espaço um do outro. E, acima de tudo, nunca houvera jogos de cabra-cega entre os dois. Nem tensões, ansiedades, medos de perda. Folclore sentimental do que seria, à partida - ambos teriam essa percepção - uma desvantagem, um erro. O caminho mais rápido para a banalização do habitual "nem contigo… nem sem ti". Gostavam-se sem irresponsabilidades. Como dois amigos unidos por um afecto leal e sincero. Sem arrebatamentos, sem exaustão, sem uma comum e terrível sensação de desamparo, consequência de uma amálgama de sentimentos e posse. Ela gostava do colega, do homem, culto e cheio de humor, do amigo. Tinha a certeza que a amizade era recíproca. Ele era uma pessoa fiável, consciente e compreensiva. Sabia ouvir, ensinar, passar por cima das coisas. Sabia, algo raro, perceber que ela não era só aquilo que a timidez – ou outro qualquer defeito – a deixava mostrar aos outros. Pouco ou quase nada, aliás.
Talvez sejam encontros simbólicos que a vida nos dá. Desses encontros que duram uma vida – ainda que separada – e deixam marcas que são a prova incondicional da generosidade de que o Homem pode ser portador. Da sua entrega. Do seu despojamento. Da sua fiabilidade.
És parva, amiga – diziam-lhe. Não existe esse tipo de relacionamento entre um homem e uma mulher. Mais dia menos dia, apanhas uma decepção. Não há acasos exemplares. E, se os há, acabam por se manifestar cínicos e batoteiros. Não sabemos o que o outro pensa. Limitamo-nos a imaginar. Não está nas nossas mãos alterar as variantes infinitas do ser humano.
Vocês são peritas em exacerbar o sentimento do desconforto e da inadequação -
defendia-se. Somos apenas dois seres com algumas afinidades. Não somos dois imbecis dispostos a representar a comédia do costume, a farsa da sedução e das promessas que nunca serão mantidas. O que, e atendendo às circunstâncias, além de inútil em si mesmo, denotaria uma terrível falta de senso. É assim tão desconcertante a amizade entre um homem e uma mulher? Hã... mentes poluídas!
Não tens escapatória, linda. Amizades com esse brilho especial, afinidades intelectuais e o calor de afecto e ajuda mútua costumam acabar... na cama –
contrapunham as amigas em sábio e experiente conluio.
Isto é para si. Não abra. É só uma lembrança
. Não abriu. Nem sequer teve tempo de agradecer convenientemente. Ele já estava sentado, cumprindo o que lhe prometera – ajudá-la a trabalhar com aquele maldito programa que, minuto sim… minuto sim, dava erro e causava o desespero dela e a ira dos restantes colegas.

Boas férias. Boa Páscoa – desejara-lhe. Sem truques. De olhar simples, alegre, sem equívocos.
Boas férias. Ah… obrigada. Pelo apoio e pelo… presente
.

Quando chegou a casa, abriu o embrulho que estava dentro do saco. Sorriu. Nada ali se parecia com uma miragem embusteira e disparatada. Diante de si, tinha um gigantesco ovo de chocolate.
Mesmo dando rédea solta ao pensamento mais acutilante –
que diriam as amigas? – quem poderia descortinar uma insinuante e complicada estratégia sentimental… num inocente ovo de chocolate?!

AMS

Fuga

Olhas-me com o esboço frio de um vento rasteiro. Mas não tremo. Com a leveza das mãos livres, fechei o livro das culpas. Definitivamente.
Olhas-me com o desejo surdo dos vagabundos. E dizes – Esta noite não acaba. Vendei os olhos à luz.
E eu respondo – A noite não acaba? Mas eu já parti rumo à madrugada pelo espaço da janela fechada.

AMS

terça-feira, abril 04, 2006

SOS

Pela loucura corrosiva do mundo,
pela indiferença à solidão magoada
dos que esperam em silêncio
- entre promessas amputadas,
consciências em ruína -
o pão nosso de cada dia,

há um Deus perplexo ou esquecido.

E homens que se devolvem a um sono sem fim,
morrendo lentamente de surdo respirar,
quais estátuas encalhadas na exaustão do tempo,
sem esperança, sem amanhã, sem vida.

AMS

segunda-feira, abril 03, 2006

palavra ausente

escrevi a palavra ausente
dividi-a sílaba a sílaba
bebi o seu travo amargo
despi-a de contexto
retirei-lhe a saudade
o espectro horrendo do tempo
e sem razão aparente
sem forma e sem tema
surgiu o poema

AMS

domingo, abril 02, 2006

A diferença nunca poderá ser um álibi

Não sei se aquilo que vou escrever irá “chocar” alguém. Não é essa a minha intenção. De qualquer modo, e porque se trata de um tema polémico, resolvi hipotecar a minha “boa” reputação e, sem falsos pudores, sem complexos, sem medo de ser mal interpretada, “falar” de um filme que, pelo que sei, tem causado controvérsia e até aflitiva curiosidade - O segredo de Brokeback Mountain.
Devo dizer-lhes que, inicialmente, nem a temática nem o facto de ser um filme candidato a vários óscares foram factores que me impelissem a ir ver, claramente visto, o tal “segredo”. Depois, e como nada acontece por acaso, tive a oportunidade de assistir à apresentação do mesmo. Não fechei parêntesis. Aliás, bastaram-me poucas cenas para, de imediato, perceber a história. É um dado adquirido que não sou uma intelectual. Contudo, tenho por lema que ninguém deve ser obrigado a optar pelas ideias dos outros. Gosto de tirar as minhas próprias conclusões. Gosto de mergulhar fundo e de apre(e)nder tudo a que tenho direito. Gosto de dizer gosto ou não gosto… por mim. Gosto de pensar. Não gosto de armazenar. Não gosto de ser clone. Muito menos de reduzir os meus gostos, juízos ou críticas a meros interesses ou regras “tribais”.
Portanto, e perante “opiniões” mais ou menos radicais, resolvi-me. Em abono da verdade, maior o número de opiniões desfavoráveis, maior a vontade de “opinar” por mim mesma - passe o pleonasmo. E fui. Ponto final.
Se pensam que vou debruçar-me sobre o problema da homossexualidade, estão completamente enganados. A orientação sexual é uma característica do indivíduo. Não é o indivíduo. Assim, desde que essa mesma orientação não interfira com a minha sensibilidade, não me sinto eticamente capaz de exprimir juízos ou críticas. É evidente que não gosto de “circos”. Nem alinho em lobbies mais ou menos à la page que, na minha opinião, não passam de expressões grotescas e ridículas de quem, à falta de grandes adjectivações, se outorga o direito de espalhar as suas contradições e a sua definitiva estupidez. O universo dos afectos é de tal forma sublime e íntimo, que não concebo leilões, feiras - e outras iniciativas que tais - liricamente hasteadas por puro exibicionismo ou mera questão de moda. Refiro-me, por exemplo, a programas do tipo “Senhora Dona Lady” ou “Esquadrão G”, como é óbvio. Mas não só. Sei que poderão argumentar - e bem - que só vê esses programas quem a tal se dispõe. Contra-argumento explicando que só sei distinguir qualidade e lixo se tiver estado em contacto com os dois pesos e medidas. Além disso, não consta que programas cheios de coisa nenhuma possam contribuir para uma morte trágica. Quando muito - e só - são absolutamente maçadores, fictícios e anémicos.
Todavia, o filme não me interessou nessa perspectiva. Muito menos o vi centrada nessa vertente. Foste ver rebanhos, querem ver? - poderá ironizar algum dos leitores que tenha chegado a este ponto do texto. Não, não fui ver rebanhos. Nem vou falar de cowboys. Muito menos de índios - e alguns (cowboys e índios, que não sou racista) encontravam-se entre o público assistente. Vou falar de afectos. Simplesmente de afectos. O afecto - a paixão - que uniu Jack e Ennis. Conseguindo abstrair-me do sexo das personagens, vi uma bonita história de amor. Que acabou mal. Quase todas acabam.
Senti a solidão, o isolamento, o desespero e a dúvida das personagens. Senti o drama de alguém que descobre e se confronta com uma situação inesperada e que foge à regra estabelecida. Não vi um universo masculino. Vi uma realidade dura, difícil de compreender e de aceitar - daí o facto de tanto Jack como Ennis a negarem. Vi ternura. Vi infidelidade. Vi ciúmes. Vi um amor vivido às escondidas, durante anos. Vi, sobretudo, dois seres desajustados, solitários entregarem-se um ao outro com a morte no coração.
O “segredo” ultrapassa a questão da homossexualidade. Tem, principalmente, a ver com a nossa capacidade de conseguirmos entrar na intimidade do amor e de não o estilhaçarmos com a sordidez ou o grotesco das nossas reacções falsamente pudicas e éticas. Tem a ver com a capacidade que temos - ou não - de nos consciencializarmos das coisas sem tumultos ou mácula. Tem a ver com respeito. Percebendo - ou não, mas sem amarfanhar - determinados comportamentos. Porque é difícil, às vezes. Mas aceitanto sempre os outros com a dignidade a que todos temos direito. Ainda que na verdade infinita das coisas sem sentido, porque o homem se escreve em papéis doridos de identidade.
A diferença nunca poderá ser um álibi!


AMS

sábado, abril 01, 2006

E esta, hem?!

Por tradição, hoje é dia das mentiras! Curioso, pensei que o interessante seria festejar o dia das verdades. Enfim… a tradição ainda é o que era, pelos vistos.
Recordo-me, quando menininha, de delirar com as partidas que, ingenuamente, pensava pregar aos outros. Não resisto a contar uma dessas brincadeiras que, digo eu, ficou para a posteridade e, tipo saga, é descrita, ao pormenor, em festas e datas especiais.
Era eu, nesse tempo, uma miúda de longas tranças louras, olhar seráfico - tipo Branca de Neve sem os sete anões - e com uma vozita capaz de comover os corações mais gélidos. Como cúmplice - todo o criminoso tem um ou mais, não é? - o meu irmão.
A cena é fácil de descrever. Duas crianças, à porta da rua, aflitas, tentando, em vão, chegar à campainha. Que coração empedernido não se prestaria a ajudar aqueles dois querubins? Nenhum. E aí é que estava a piada. Para nós, claro. Mal tocavam, as pessoas saltavam para trás e... soltavam um ou outro palavrão. É que, como já devem ter percebido, a campainha estava mal ligada e dava choque.
Escusado será dizer que se algumas daquelas santas almas ainda nos aconselhavam a não tocar naquela “ratoeira”, outras havia que nos olhavam de soslaio, tentanto descortinar uma ponta de malícia nos nossos rostos angelicais.
E assim continuávamos a nossa missão, até que a minha mãe, preocupada e desconfiada, vinha à janela, assistia àquele ritual-sacrifício, descia as escadas e nos colocava de castigo, durante o resto da tarde. Isso, devo acrescentar, também era um grande choque!
Bons tempos! Actualmente, os adultos tomaram o lugar dos querubins. Os choques passaram a ser mortais… ou quase. E as vítimas ficam à espera - sine die - do castigo dos culpados que, frequentemente, e por artes mágicas, viram vítimas e ainda têm direito a … indemnização.
Que bela palhaçada! Trair, mentir, enganar passou a ter direito a comemorações! E esta, hem?!


AMS