sexta-feira, março 31, 2006

Os três "D"

A vida é sub-reptícia e, raramente, mostra, às claras, as suas razões. Há pessoas assim. Estão, às ocultas, ao jeito de uma penitência perpétua, a recordar-nos, subtilmente, o seu travo amargo, o seu sabor desagradável e azedo. Dirigem-se aos outros como se todos nós tivéssemos de agradecer a Deus a bênção de as conhecer. Como se, sem elas, o mundo ficasse suspenso e meio perdido. Como são as coisas! Aquilo que as guia? Um nada. Soberba - mais infinita do que os caminhos do senhor; orgulho - bem tratado e cheio de brilhantina; cobardia - respeitavelmente camuflada por uma lógica sem sentido. Aliás, costuma ser esse o seu compromisso com a vida - a falta de sentido dela.
E o mais engraçado é que a estas almas, roídas pelo caruncho ou coladas com fita adesiva, só falta mesmo um letreiro com as seguintes palavras - ma per seguir virtute e conoscenza.
Pergunto-me, frequentemente, entre curiosa e irresistivelmente divertida, quais serão as suas virtudes? Qual o grau superior do seu conhecimento para debitarem tretas e outras lérias que tais como se fossem fonte cristalina das mais profundas verdades? Que metáforas - gastas e balofas - as mantém naquele estado de hipnose pura, convencendo-as de que são alheias a qualquer responsabilidade, porque são únicas e especiais. Logo, alvo da cobiça alheia. Portanto, fonte inspiradora dos demais mortais.
Sempre que me deparo com uma destas "órbitas" irrepetíveis, penso - vai explodir a qualquer momento. Tanta vaidade, tanto egotismo comprimidos… só podem dar origem a uma explosão que, por sua vez, dará origem a… uma nova estrela no universo? Qual quê! A um balão, a um humílimo balão que, ao mínimo furo ocasional, desaparecerá para sempre. Um nada feito de nada.
A vida é um jogo. Até aí estamos de acordo. Mas os jogos do ser, como sabemos, podem acabar num fatídico e lamentável desastre. Três… emendo. Descrédito. Dor. Demência.
Que sentido tem viver assim?!


AMS

quinta-feira, março 30, 2006

...até uma palavra que não digo

Gosto de ti. Gosto dessas palavras absolutas insinuando-se no teu olhar.
As pessoas perguntam-me - Que tens? Tu não perguntas. Olhas. Sorris. Matas o instante que me atormenta. E creio em ti. E creio em mim. Assumindo-me por inteiro na grandeza maior de ser feliz.
Contigo não tenho medo, porque os olhos dos outros não param na tua boca. Na tua alma. Contigo, que nunca perguntas - Que tens? - não experimento o vazio do som. E, assim, as palavras não fazem doer a vida. E, assim, partilhamos a impressão acesa de que tudo passa por nós numa solidão a-duo. Somos maiores do que o destino que devia cumprir-nos. Numa tranquilidade que a cumplicidade não perturba, porque o tempo ainda a não maculou.
Gosto muito de ti. Quanto?! És capaz de imaginar um espaço aberto feito à medida da solidão que me cabia? Pesa dessa maneira o meu gostar. Gosto de ti do tamanho dos caudais dos rios maiores do silêncio que me povoaram. Mede dessa maneira o meu gostar. Gosto de ti até uma palavra que não digo. Guarda-a e sente o meu gostar.

AMS

terça-feira, março 28, 2006

Coreografia

Momentos há
Quando tocamos o longe
Estando perto
E a nossa vida
Como um navio
Anda de cais em cais
Sem encontrar respostas
Nem sinais

Que nos sentimos como uma onda do mar
Que se ergue em crista e espuma
Vendo os navios chegar
Vendo os navios partir

Mas acabando sempre por quebrar.

AMS

segunda-feira, março 27, 2006

Novo Palco

Não quero justificar-me. Logo, é inevitável que me justifique.
Queria virar a página. Contudo, as raízes não estão ainda cortadas. Toco-me e estou viva. Mas vejo a morte respirar num círculo de silêncio. Vejo todos aqueles que já partiram. Sombra e distância. Palavras estranguladas na garganta. E a saudade. E o pó que se entranha aceso de mágoas. E este absurdo desejo de sentir real tudo o que está ausente de mim. Mas tão em mim.
Não quero justificar-me. Exijo que me justifiquem este incontrolável pânico de me descobrir tão frágil perante a vida. Perante mim. Perante os outros. E tão dependente de memórias sem fundo. Já inábeis para sonhar.
Queria virar a página. Esta. Vazia de luz. Aturdida de perguntas sem respostas. Desenhada a medo. A decepção. A uma incompreensão que chega a queimar a alma. Pobre alma, debatendo-se entre o desejo de um breve acorde e o de um grito que sorve o desejo.
A caneta desliza sobre a folha calcinada de sentimentos sempre inacabados. Pé ante pé. Tentando chegar ao fim. Negando o fim. Esforçando-se por verter palavras sem atalhos. Sem cicatrizes. Apagando cores que sangram. Esboçando um céu azul, muito azul, que afogue a morte, que estrangule o silêncio, a culpa, o medo, a fuga, a saudade. Que (me) recupere a vida. Que vire a página.


AMS

domingo, março 26, 2006

Canto secreto

Eu sabia - sempre soube - que só o céu me chegava para me sentir em casa. Não um céu de silêncios. Não um céu de um Deus que parece ter caído num sono gelado. Não um céu que parece permanentemente lembrar-nos – sobrevive para saberes o que podes sobreviver.
A altivez perante a vida é antiquada – dizem-me. Que seja! Resta-me, pelo menos, a aresta das palavras para escoar a noite e as imensas feridas, muito iguais, muito secas, provocadas por sentimentos desumanos disfarçados de humanos. Ainda acredito, neste universo de coisas raras, que podemos e devemos gostar de ser gostados, de fazer por isso, sem termos de prescindir de manter a coluna vertical.
Se eu digo que sou triste, minto. Chamemos as coisas pelos nomes. Não somos donos de nada. O que mais importa é o que só passa e nem se deixa tocar com os dedos. É preciso ter cuidado. De repente, à luz da noite, percebemos que não vamos a lado nenhum. Que só tem valor o que não se pode comprar. Que o que nos espera… não espera por nós.
Se eu te digo que sou triste, minto. Indiferença é aquilo que eu sinto. Se por aqui passaste, se tocaste ou mesmo entraste… não sei. Já não importa. Fica-me a certeza de me saber exacta. Toda a tranquilidade exige dor. Nenhuma lei é a mais justa. Agora sei que só os náufragos do sonho entendem o canto das sereias.

AMS

sexta-feira, março 24, 2006

O espaço do amor

Por que motivo demoraste tanto a bater à porta do meu coração? Já não contávamos contigo. Mas o amor faz questão de não entregar cartão de visita. É absolutamente desconcertante no tempo e no espaço que frequenta.
Como não esperava visitas, abri, apenas, uma pequena fresta. Ao princípio, não te - o - reconheci e receei-te. Fora apanhada de surpresa. Ainda tive a tentação de fechar a porta e ignorar o toque suave de uma coloração quente de sede. Além disso, não estava adequadamente vestida - pensava eu - para receber tão ilustre e intempestivo visitante. Nem sequer tinha retocado o sorriso triste e o meu vestido, salpicado de lembranças e olhos molhados de nostalgia, não me parecia muito apropriado. Os meus gestos eram desajeitados, lentos e a surpresa povoava-me a alma de inquietação e de não sei que inexplicável alegria. Suponho que a interrogação que transparecia no meu olhar fosse o motivo do teu sorriso tentando atravessar a luz hesitante das palavras.
Mas não foram necessárias palavras. A atenção estava centrada no ritmo do silêncio que nos permitia conhecer o íntimo um do outro. Era como se, por estranho feitiço, tivéssemos chegado a terra amante, coberta de beleza, sem que o encanto se quebrasse.
O receio desapareceu. Era o acaso feliz. Gestos de pureza inicial. Totalidade. Recordação que fica guardada para sempre. Assim se toca o amor com a chegada de alguém que nos bate, docemente, ao coração. Podemos abrir a porta ou espreitar, temerosamente, através da janela mais próxima, tentando adivinhar, na claridade ou na escuridão, que horas serão na nossa vida.
Optei por não ligar ao tempo. Optei por te dar o espaço do amor, e abri o meu coração, de par em par, com a ingenuidade que o amor transporta, tornando os nossos gestos incontroláveis, loucos, loucos...
Até que espaço de magia? Até que horizontes de delírio? Que importa?! Serão sempre os únicos que merecem ser alcançados. Num despojamento total, numa entrega completa.
Dei-te o espaço do amor. Tu deste-me o desejo, o fogo, a loucura e a perenidade do que é fugaz.


AMS

quarta-feira, março 22, 2006

temporalidade

entre o desencanto
moldado a barro
e o desejo perdido
de abandono

o amor lentamente agonizou

AMS

segunda-feira, março 20, 2006

Fingimento

Aprendi a dizer adeus
soletrando desapego,
olhos secos, dor surda,
firme, altiva na sede angustiada
de esperar o que nunca regressa.
Aprendi a ver-te partir,
a ficar só dentro de mim,
varrendo as emoções,
sacudindo as lembranças
para o jogo do faz-de-conta.

Assim, tudo é mais fácil!

AMS

domingo, março 19, 2006

palavra exacta

Com a poalha ténue do entardecer, as palavras nascem cristalinas. Sem tumulto. Sem mácula.
Não consigo, porém, encontrar a palavra exacta que defina o que sinto por ti.
Mas do nada surge o clarão fascinante que eterniza momentos, porque tudo fica suspenso quando escrevo o teu nome, pai.
AMS

sexta-feira, março 17, 2006

Era uma vez...

Ocorre-me esta história que nos pertence e nem notamos.
Mas a história acontece.

Um homem, uma mulher procurando o caminho do amor
que os levasse para longe de errância amarga, árido abismo,
sedimentado torpor.

Era uma vez...

Duas almas à deriva no mar revolto da vida que, por segundos,
breves momentos, sufocaram o medo, a amargura e, envoltos
na emoção mais pura, deram as mãos, partiram a moldura
da resignação, sem remorso, sem pesar, gravando a fogo
a decisão de nunca mais abdicar do direito absoluto de desbravar
o caminho venturoso do amor nas arestas de todos os começos.

Era uma vez...
E a história repete-se no íntimo pudor de quem vive uma história de amor.

AMS

quinta-feira, março 16, 2006

Tatuagem

Gravo a flor dos lugares onde sonhamos estar.
Gravo o esplendor do espaço onde se acalenta o sonho.
Gravo, na textura da palavra, a imaterialidade de uma impressão.
Gravo a região vulcânica dos encontros e perco-me na suavidade das marcas, antevendo a poesia dos traços e linhas a desenhar.
Neste jardim da memória tatuada, nesta vontade de viagem corpo a corpo, alma a alma com a vida, a beleza e o amor, navego o oceano das sensações, o pulsar dos sentidos, cedendo às ondas íntimas do desejo
gravado em filtros de silêncio e sede luminosa, subtil aspiração ao momento perfeito.

AMS

quarta-feira, março 15, 2006

dilema


Se incendeio a noite, corro o risco da cinza enegrecer o dia.

AMS

terça-feira, março 14, 2006

da alma para a boca

Não uses o silêncio.
Qualquer silêncio que me dês
Há-de ferir como cristal estilhaçado,
Fogo frio de não aquecer.
Dá-me hesitações, a textura imprecisa dos gestos,
Até mesmo mentiras e imensidão de descrença,
Palavras escondidas nas palavras trocadas,
Coisas que se temem,
Porque nos tornam vulneráveis
À própria vida.
Mas não me dês silêncios.
Eles transportam consigo
O rumor de um imenso vazio
Mastreado na memória
Do que, hoje, passa por nós,
Entardecendo de agonia.

Não uses o silêncio.
Da alma para a boca
Ele é pretexto adiado.

AMS

segunda-feira, março 13, 2006

Asfixia

É às portas do nada que se posta a mais nutrida guarda.
Talvez porque a condição do vazio seja demasiado vergonhosa para ser divulgada.

Francis Scott Fritzgerald

Não chega. Nunca chega. A história nunca acaba. É tão simples quanto isso. As perguntas rasteiam-me. Sobram pormenores. Faltam pormenores. São demasiadas dúvidas. É demasiado o preço que pago para que a vida faça por mim o que nunca fiz por ela. Por isso hesito com frequência. Cada um conta o que tem. Ou não tem. Tenho de ser justa: eu conto aquilo de que me pretendo libertar.
Quando começo a escrever, é já o final. E eu ando à procura do princípio. Daí, os nós que se sobrepõem e me confundem.
Talvez tenha de ser assim. Talvez eu deva aceitar que as histórias só se podem contar subindo a corrente da vida. Atravessando milhares de outras histórias. Milhares de acasos. Até chegar a mim. À minha história.
Sempre esta lógica impenetrável das coisas! Esta sensação de nunca acabar e, simultaneamente, de nunca ter começado.
Estás enclausurada em cepticismo! Cansa-te a vida! - dizem.
Têm razão. Estou em guerra comigo. Para que serve perder tempo a escrever as mentiras que me contaram? As meias verdades que ocultei? As verdades que aprendi? O fim é sempre o mesmo. Somos quem nos contam que somos. A minha história teria um bom final se fosse verdade. Assim, como não sobrevive ao real, cresce a desmesura do afastamento a uma vida que não reconhece. Nem me reconhece.
Ninguém estanca a dor à minha escrita, porque não digo que me dói.

AMS

domingo, março 12, 2006

Enigma

Entre mim e o meu passado
há uma ponte de rostos pressentidos,
desbotados, mal vividos,
como um enigma a decifrar.

Percorrem-me em ilhas tocadas
de morte espessa,
entram na minha mente
com a linguagem muda da distância,
tudo remexendo,
no fogo disperso das sombras,
expondo, na curva das recordações,
uma saudade difusa,
quase mórbida,
mas que me prende
e comove.

Do outro lado da ponte,
há fantasmas que urge esquecer,
imagens deformadas
circulando na nervura da ilusão,
tristezas gravadas
na imensidão do nada,
sonhos traídos
que fazem parte de mim,
dos meus sentidos.

Do outro lado da ponte
há alguém.
Sinto-o.
Só não sei quem.

AMS

sexta-feira, março 10, 2006

Mesmo fugaz

Não pode a vida ser-me triste e fria,
Num Inverno sem fim e céus calados,
Que eu quero a taça do amor erguida,
Desenhando estrelas nesses céus gelados.

Quero uma vida feita de mil cores
Na volúpia sem fim dos teus abraços.
Quero perder-me na teia dos amores
Com persistentes, inquebráveis laços.

E nem que seja, vê tu, refúgio breve,
- Ou fugaz momento de beleza
Que, como tudo, nasce e logo esquece -
Quero queimar-me na chama desse ardor
E sentir, por fim, essa certeza
De viver em ti um grande amor.

AMS

quarta-feira, março 08, 2006

Sobre as mulheres

Ignoram-nas. Tratam-nas mal. Não as amam. Desprezam-nas. Violentam-nas. Só não compreendo por que estranho desígnio se calam as mulheres?! Ou porque têm marés de mágoa no coração?! É como se transportassem uma culpa, uma mancha para além do selo de serem mulheres. E despromovem-se. E desistem. Porque são quase nada. Porque nem passam pelo “nada essencial” de que falava Heidegger
Quando deixaremos de ser o maravilhoso "instrumentum diabolicum" a que se referia Nietzsche? Quando deixaremos de ser acusadas pelos bocadinhos de paraíso que conquistámos? Quando deixaremos de ser o pecado da sedução, a vertigem de objectos efémeros, o lugar precário da paixão? Quando seremos, finalmente, aceites, em verdade e transparência, como pessoas livres e lúcidas? Com vontade. Com desejo. Com sonhos. Com um corpo e uma alma.
Tem havido um desequilíbrio cultural entre a força e a sensibilidade, entre o som ríspido e o o som fluido, entre o olhar cheio de mundo e o olhar que se revê num ventre cheio de luas, e a mulher tem, aparentemente, perdido na batalha dos sexos. Mas só aparentemente. Estamos inteiras. Conscientes. Verdadeiras. Porque sabemos que a nossa vida – só nós a podemos mudar. Porque sabemos que o nosso valor – só nós o podemos mostrar. Mas, sobretudo, porque começamos a saber

quem somos.
Ambos, homens e mulheres, têm muito a aprender uns com os outros.
Termino, não sem antes aqui deixar uma reflexão de Erica Jong - " Durante séculos e séculos, escreveram-se livros com esperma, jamais com sangue menstrual. Até aos meus vinte e um anos comparei os meus orgasmos com os de Lady Chatterley, interrogando-me sobre o que me faltava. Só depois me veio ao espírito que a Lady Chatterly era na realidade um homem - que na verdade ela se chamava D. H. Lawrence."

AMS

terça-feira, março 07, 2006

Alma Encoberta

Quando escrevo - que loucura! - pensamento rima quase sempre com vento. Não admira: a minha imaginação rodopia como o vento. Na minha cabeça bailam palavras e música que pretendem dizer o indizível. Carregadas de um sentido oculto - até para mim - e por um sabor a infinito. É a liberdade sem nuvens. Iluminuras de um amanhã desejado. O tempo sem fissuras. Um todo irreal, invulgar, imenso. Um lugar de fuga onde tudo é pleno, luminoso e fluente.
E liberto-me. E imagino-me. E invento-me. E sonho-me. E creio-me.

AMS

segunda-feira, março 06, 2006

claro-escuro

Hoje, disse a alguém – Cresci! Exorcizei alguns dos meus medos. Não foi uma grande vitória, é claro. Mas não fui derrotada ao primeiro round. Venci-me. Assumir as nossas fraquezas não é um drama. Faz parte do percurso da vida. Vergonha é querermos que os outros pensem que a nossa vida é em pleno, uma espécie de filme cor-de-rosa onde a heroína nunca engole lágrimas saudosistas, nunca se depara com derrotas diárias, nunca, mas nunca, se sente só e perdida.
Receio não ter sido compreendida. Olharam-me e pensaram – que original. E eu ri cá por dentro. É óbvio que não havia da minha parte qualquer preocupação de originalidade. A não ser que se passasse a considerar – é bem possível – que ser-se original é não ter como objectivo ser original. No meu caso, porém, procurava apenas, ao dizer o que disse, demonstrar que é louca a ideia de nos podermos ver com o à-vontade de não nos vermos.
Sinto um verdadeiro fascínio por caleidoscópios. Talvez porque representem uma lição de harmonia. Talvez porque sejam a prova de que toda a desordem é dinâmica e portadora de criatividade. Eles mostram uma espécie de caos ordenado: pedaços de vidro colorido, pedrinhas e cristais, contas e missangas, enfim, coisas variadas que se acumulam e se misturam sem se chegarem, aparentemente, a entender. Mas basta um movimento rotativo da mão para que esses fragmentos perdidos se organizem em simetria perfeita, nunca capturada pelo mesmo olhar. Por isso, acho o caleidoscópio uma lição de vida sem manual de aprendizagem. Ao virá-lo para a luz, acende-se a magia da "lanterna mágica". E as imagens nunca se apresentam desfocadas. Tudo é tão simples quanto parece. Colorações e matizes jamais pensados moldam-se conjuntamente, subvertendo o estabelecido, mas preservando o lugar onde os sonhos habitam. Para quê querer mais?
Cada um de nós possui o seu caleidoscópio particular feito de memórias, vivências, desejos por cumprir, um arco-íris quase ilimitado de emoções e tudo o mais que julgamos único. E onde está ele guardado? Na nossa cabeça? No coração? Suponho que precise de ambos para se poder espraiar. Umas vezes encontra-se em ordem e harmonia; outras, convida-nos a uma temporada no caos, onde tudo é disperso e fragmentado - por isso, assustador. Cabe-nos a tarefa de estabelecer o equilíbrio. De transfigurar e regenerar. De nos reconciliarmos com o que somos… sem medo de sermos julgados pelo que, na verdade, não existe em nós.
Assim, volto a dizer, hoje, cresci. Não senti necessidade de me desculpar pelo que devia ter sido. Pelo que fui. Pelo que talvez seja. Frágil. Vulnerável. Complicada. Mas, seguramente, desenhando com determinação o destino que me cabe.

AMS

domingo, março 05, 2006

Palavras à espera

Tenho uma necessidade quase vital de escrever. Talvez porque a minha ânsia de estancar as lembranças seja impossível de satisfazer. É certo que tento manter pontes entre mim e os outros. Entre a consciência de que precisam de mim e esta estranha necessidade de isolamento sob cuja protecção cheguei a sentir-me segura. Como se os outros não existissem. Como se fosse possível afirmar a vida envolvida numa mortalha. No vácuo.
Por isso me assaltam dúvidas. Por isso sinto necessidade de falar de tudo o que calei. De tudo o que calo. Contei esses fantasmas tantas vezes a mim mesma... que já os sei de cor. Só não sei se terá muito sentido contá-los aos outros. Será que eles entenderiam as razões pelas quais optei por não os expor? Que, se calei, não foi para prejudicar ninguém. Foi, e apenas, para me proteger. Ou por pura incapacidade – não sabia como contá-los.
Existe em todos nós, porém, uma terrível necessidade de consolo que não adianta tentar bloquear. Se o fizermos, não é defesa. É morte. Por mais fundo que se tenha ido numa forma de estar objectiva e pragmática, resiste sempre qualquer coisa de outros tempos, de uma infância distante em que a própria dimensão e inerente capacidade de perceber o mundo nos acordava sobressaltos, despertava fantasmas, trazia medos. Essa ânsia de acalmia, essa necessidade de uma presença maior e mais poderosa que mande embora o que nos incomoda, que escorrace o que nos magoa, que expulse de vez o que nos faz medo, que resolva por nós o que não sabemos, permanece.
Todos queremos colo. Mas mesmo havendo essa necessidade de consolo, de facto, não é igual para todos. Para alguns, a sensação de falta, o confronto permanente com perdas e danos, o espectro de um fim anunciado dilui-se - como diria José Rodrigues Miguéis - "sob o signo da esperança, a própria dor se torna um mito". Para outros, no entanto, não é assim. Inscrevem a dor - e o mito da dor - na essência da própria existência. Mesmo quando reconhecem "que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida", isso não lhes serve de suficiente consolo.
Como formiguinhas, mais do que como poderosos Sísifos, carregamos as nossas necessidades e as nossas possibilidades de apaziguamento. Às vezes, tropeçamos no útil, outras no belo, outras no nosso desajustamento. É apenas assim.

AMS

sábado, março 04, 2006

na folha branca

escrevo na folha branca de ternura
o infinito verbal do teu querer
estancando verso a verso
as arestas do medo
e
numa possibilidade que desponta
do concreto real das coisas
abro caminho neste poema
ao amor

AMS

sexta-feira, março 03, 2006

No regaço da noite

No regaço da noite,
ancorando a lembrança
no sonho onde te encontro e me semeio,
quase toco a tua imagem,
repartida entre as margens do desejo.

Mas o quase é apenas névoa
que me acorrenta à distância e solidão
do desencontro.

AMS

quinta-feira, março 02, 2006

Tangível

Revejo-me criança,
sem meandros nem sombras,
numa intensa memória azul,
incendiando o mundo de fantasia
sem competições perversas,
sem olhares endividados
escondendo, dormentes, o cansaço
dos dias sempre iguais aos anteriores,
aos que hão-de vir.

Revejo-me criança,
incólume e pura,
sem raízes a prender-me ao negrume do caos,
impaciente de vida
sobre as asas libertas dos meus olhos,
sem remorsos, sem dúvidas,
como se o tempo brincasse comigo
no voo aberto
do meu deslumbramento.

AMS

quarta-feira, março 01, 2006

Não nego a vida

Nada eu lamento.

Nem o que dei,
O que sonhei,
O que senti,
O que eu amei,
Imaginei,
Julguei viver,
Mas não vivi.

Remorsos, eu?

Joguei. Ganhei.
Perdi.
Não foi em vão
Subir ao céu,
Ver as estrelas,
(Que bom foi tê-las,
Pena perdê-las! )
Sentir o amor
Anoitecer,
Tornar-se sombra,
(Nada é eterno!)
Virar inferno.

Nada eu lamento.

Nem a saudade,
Chama apagada,
Do que era tudo,
Já não é nada.
Negar a vida?
Juro que não.
Não foi tormento
Tanta loucura,
Deslumbramento
Que cega e jura
Não ser lamento
Nem sofrimento
Morrer de amor,
Querer fingir
Que nada muda,
Tudo perdura,
Sempre há paixão,
Doce ilusão.

Não ter vivido,
Não ter sentido
O que passou,
Tudo o que fui,
Mas já não sou?!
Diz, coração,
Foi tudo em vão?

Não!

AMS

Maio-Amor


M urmúrio quente esvoaçando na vereda do coração
A muralhado de sonhos em cada olhar ficado, apartado.
I
nconfessada doçura raiando, em cada ramo, cada haste,
O
nome silencioso, mas presente, da mais sentida bênção. O amor.

AMS