castelo de areia
Construí um castelo de areia,
Confiante
Na calmaria do mar.
Descuidada,
Não protegi o meu sonho,
Rendida ao poder do sono,
Presa ao suave ondular.
E o meu castelo no ar,
De repente, eu vi sumir,
Nas águas imergir,
Levando consigo o sonho
Ingénuo, desprevenido.
Erguido
Num desafio à maré cheia.
Esquecido
Que o mar arrasta sempre a areia.
AMS
roteiro
em cada passo desenho nova viagem
onde o desejo se perde de infinito
mas na carícia acesa da miragem
em ti me fico
navego assombros de mim a mim
nos mares mistério em que me fito
mas na ânsia voo que me adivinho
em ti me fico
quebro os limites que me rodeiam
mato o silêncio em livre grito
mas no verde gesto da partida
em ti me fico
AMS
Mãos Dadas
O tempo é a minha matéria, o tempo presente,os homens presentes,a vida presente.Carlos Drummond de Andrade(do poema "Mãos dadas")
(Ir)realidades
O silêncio da sala era apenas quebrado pelo bater compassado do relógio de parede. Um relógio austero que assinalava, há muitas gerações, o deslizar do tempo. Vários cadeirões e sofás de veludo, reposteiros de uma verticalidade severa, quadros a óleo, estantes carregadas de livros e uma escrivaninha eram presenças que, ao longo dos anos, tinham adquirido a paciência de quem dispõe de todo o tempo do mundo. Sobre a escrivaninha repousavam fotografias e uma esguia jarra com uma rosa. Uma pequena moldura, no entanto, parecia ser o centro da sala. Era o rosto luminoso de uma mulher jovem, olhar intenso reclamando vida, sorriso aberto e feliz. Um rosto, detentor da imortalidade, desafiando o silêncio espesso e duro da morte.
As pancadas cansadas de uma bengala amorteceram, por momentos, o pêndulo enclausurado do velho relógio. Mas, de imediato, o tempo, esquivo e flutuante, recuperou o seu poder. Um vulto carregado de memórias curvou-se sobre as fotografias, transportando, delicadamente, para perto de uns olhos plissados de rugas a moldura com o rosto da mulher de sorriso ingastável. Encontro com a solidão e saudade deixadas pela morte? Fusão de sentires perpetuados no deslumbramento do desejo do que nunca mais poderá ser? Talvez o eco do passado emergindo real no presente. O ontem e o hoje entrelaçados.
Uma mão trémula e comovida colocou, de novo, a fotografia, no centro do crepúsculo da sala, arrastando-se, de seguida, para um dos sofás. O silêncio e uma luz cada vez mais débil coavam-se numa semi-obscuridade. Aos poucos, as mãos abandonaram-se à inércia do sono enquanto os olhos, embalados pelo movimento transitório do pêndulo e pelas nostalgias da memória - as recordações adormecidas não doem - se deixavam conduzir até um lugar sem tempo e sem idade.
O sorriso da mulher da fotografia velava.
AMS
Carnaval
No carnaval da vida,
Há máscaras, folguedos, alegria,
Fantasias que se arrastam pelo chão,
Tentando esquecer a solidão.
Há festejos da mais pura amargura,
Disfarces, que se colocam na rua,
Repletos de folia, salpicados de ironia,
Cintilando no cortejo triste
Que em nós se esconde,
Que em nós existe.
No carnaval da vida,
Tentamos enganar o coração,
Ocultando a capa da verdade
Numa máscara grotesca de ilusão
Que dança, rodopia, não desiste,
E gira, gira, tonta e estouvada,
Sem limites nos caprichos que tem,
Lembrando o malogrado Pedro Sem
Que teve o mundo inteiro,
Teve... já não tem.
AMS
Se é Carnaval, ninguém leva a mal
Eu, no fundo, sou muito romântico.
Gosto das mulheres por todas as razões e não apenas pelos
seus seios, pelo seu rabo...
Gosto muito de mulheres.
Está-me no sangue.
As mulheres não entendem isso.
Complicam as coisas.
Mas estão sempre a perguntar:
- Mas tu não me amas, pois não?
É claro que não.
Mas não lhes podemos dizer.
Se o disséssemos, elas deixavam logo de nos amar. Era imediato.
Se uma me pedir:
- Quero que subas até ao 10º andar pelas escadas e de lá do alto quero que grites que me amas; se uma mulher me pedir isso é claro que eu não vou subir a lado nenhum, nem gritar nada – que não sou de gritos – mas de certeza que lhe vou dar um beijo.
E elas não resistem a isto.
Sou romântico, mas não sou palerma.
Subir até ao 10º andar por causa de uma mulher?
Nem pensar.
O amor é lixado.
Quando começamos a apanhar-lhe o ritmo, ele muda de ritmo.
É 1 palerma, o amor!
Ou é muito lento, ou é todo apressadinho.
E nós sempre com os mesmos pés.
O amor é um palerma!
Gonçalo M. Tavares
O homem ou é tonto ou é mulher
- Tu és parva ou quê? Onde se viu tamanho disparate?!
- Mas…
- Não há mas nem meio mas… Já te conheço. Conheço-vos a todas…
- Mas…
- Não digas mais nada! Só dizes parvoíces. O que te vale é eu ser um homem dialogante, caso contrário a coisa piava fino…
- Mas…
- Já disseste tudo o que tinhas a dizer. Que falta de senso. A mim não me enganam. Aprendem todas pela mesma cartilha. A da mãezinha, a da avozinha, a da amiguinha… Irra!
- Mas…
- Mas… agora falo eu! Não digas mais uma palavra! O que se te meteu na cabeça para inventares que eu – um escravo do dever e do respeito – tinha um caso com a minha secretária? Eu sou lá homem para reparar nas saias curtas que ela usa?! E queres saber mais? Se me perguntares a cor dos olhos, sei lá se são castanhos e que têm umas pintinhas, muito atraentes, cor de mel… Sou um homem respeitador e, acima de tudo, ín-te-gro!
- Mas…
- Não digas mais asneiras! Cala-te! Porque cheguei mais tarde e esqueci a gravata no escritório foi preciso armar todo esta feira?! Já imaginaste o que é estar debruçado… quero dizer… sentado... naquela secretária, estudando montanhas de dossiers, horas e horas a fio? O calor, o suor, a energia gasta… Ingrata! Ingrata e estúpida!
- Mas…
- Acabou-se o diálogo! Para neuróticas deprimidas – e deprimentes - tirano com chicote, já dizia o meu pai. Não ouço mais os teus argumentos, as tuas palavras mesquinhas e cimentadas de desconfiança. Sem razão! Sem razão! Vou-me deitar. Estou esgotado. Ouviste? Es- go- ta- do!
- Mas…
- Deixei de te ouvir. Desliguei. Quem semeia ventos, colhe tempestades. A questão essencial é: ou tens confiança ou não tens. Não tens! Pensas que sou parvo?! Não tens. Está bem, esqueci a gravata, que prova isso? O teu problema é não pensares, não exercitares essa pouca inteligência, arduamente, entre pilhas e pilhas de processos amontoados sobre uma secretária… Barafustas, reclamas, desconfias por dá cá aquela palha, sem qualquer fundamento. Mas...
- Mas o quê?! Hã… mas o quê, meu Casanova de pantufas e… com sintomas graves de Alzheimer…? !Quero lá saber da gravata. Quero lá saber das pintinhas cor de mel da tua secretária. Quero… o divórcio!
- Mas…
- Agora falo eu, meu imitador barato do último moicano. Pensaste, e será que tanta energia física despendida com ou sobre os dossiers… te deixam perceber que eu não estou preocupada com a gravata que deixaste no escritório? Parvo! Sabes quantas gravatas já esqueceste, nestes últimos meses, no escritório?
- Mas…
- Nem imaginas, não é? Dúzias! Às bolinhas, às risquinhas, aos quadradinhos… Dúzias! E de cada vez que uma dessas decadentes gravatas ficava esquecida, por excesso de trabalho, sobre a tua secretária, imaginas, por acaso, o que eu, a mosquinha morta, sofria com a tua promiscuidade laboral?
- Mas…
- Cala-te. Vais dizer que me amas, já sei. Certamente mais do que há vinte minutos, ou seja, desde que chegaste a casa - calado que nem uma múmia - te dirigiste ao roupeiro e tiveste a grande lata de dizer – “ Onde estão as minhas gravatas? Parece que alguém as fez desaparecer... Um gajo farta-se de trabalhar e a madame nem consegue ter a roupa do criado minimamente apresentável… porra! Estou farto!”. Estás farto?! Tu?!
- Mas..
- Mas, meu querido, eu estou mais: M.A.I.S - Mulher Aturando Infidelidade Secular! Alguma vez reparaste se eu tinha sinaizinhos cor de mel em alguma parte do corpo? Hem? Faz as malas, sai, desaparece. Ah… em caso de desespero, escravo do dever, enforca-te com a gravata que deixaste no escritório… em cima da secretária, certamente... de P.V.C.!
- …???... ???
- Para Verdadeiros Canalhas!
AMS
Carta Aberta ao Primeiro-Ministro ( ou como as "antiguidades" continuam actuais)
Porto, 5 de Junho de 2005
Excelentíssimo Senhor Primeiro-Ministro,
Devo adverti-lo de que não sou sua fã. Fui daquelas eleitoras que, na véspera das eleições, pensou: entre dois males, escolho o menor. Não gostei, confesso, que tivesse ganho com tão expressiva maioria de votos. Receio as maiorias. A experiência e a História já me ensinaram que a democracia é uma coisa muito democrática - o pleonasmo é propositado - mas que depende da relatividade das circunstâncias, e que as minorias - como o mexilhão - acabam sempre por ser esmagadas. Ainda pensei escrever "lixadas", mas contive-me. E até acho que nem devia. Desde que ouvi o Dr. Alberto João Jardim, perante um país inteiro, apelidar de “filhos da pu…” - há que dar estilo às verdades - os bastardos - cito - que anunciaram, publicamente, a sua condição de reformado da função pública ( 62 anos de idade) a acumular com o exercício do cargo para que foi eleito, já estou por tudo, confesso. Assim, se algum dos meus alunos se lembrar de escrever ou proferir, nas aulas, tão vernácula expressão, suponho que serei obrigada a ver o caso da seguinte forma - cultura geral! Mudam-se os tempos…
Já agora, Sr. Engenheiro Sócrates, e continuando no tema ambíguo das reformas, queria deixar expressa a minha “solidariedade” a dois membros do seu governo. Claro, o Ministro das Finanças, Campos e Cunha - o tal que não abdica de nada, porque o direito à reforma é sagrado - e o Ministro das Obras Públicas, Mário Lino, que acumula duas reformas com o salário de membro do governo. O chamado 3 em 1. É de homens assim que o país precisa. Homens de ética e de moral… duvidosa - atenta no que digo, não repitas o que faço.
No período grave que o país atravessa - devo dizer-lhe que ainda me custa a engolir essa treta de que os senhores desconheciam o real estado do país - seria bom que não só os portugueses, a chamada arraia-miúda, tivessem consciência de que é preciso apertar o cinto para reequilibrar as contas que, desculpe a ignorância, ainda não percebi quem desequilibrou. A culpa, neste país, morre, habitualmente, solteira, coitada… Seria bom, Engº Sócrates, que o seu governo tivesse a coragem de deixar de proteger lobbies, jogos politiqueiros e outras artes e acrobacias que tais. Receio que não o faça. Temo que o velho lema de que todos somos iguais, mas que há uns mais iguais do que outros… já tenha virado dogma.
Senhor Primeiro-Ministro - e agora vou mesmo ao cerne da questão - gostaria que lesse com sentido de humor, mas atentamente, o que me vai na alma. Sou uma das portuguesas que já está a contribuir para o seu Programa de Estabilidade e Crescimento (?); pertenço ao número dos heróis/heróinas que mudaria de escalão e que, a bem da tal estabilidade e crescimento, fico a ver a minha progressão na carreira congelada. Isto, Senhor Primeiro-Ministro, depois de ter frequentado as ditas acções que permitiriam obter os tais créditos que, supostamente, fariam com que me aproximasse um pouco mais do topo. É caso para dizer - e tudo este governo levou! Não me queixo. Ou antes, queixo-me, mas aceito. Agora o que me custa a engolir, aquilo que me tem tirado o sono e o apetite é o facto da idade da reforma ir mudar para os 65 anos. V. Exª tem consciência do que vai desencadear com essa medida? Não creio. Vamos viajar até ao futuro? Que vê, Sr. Engº? Se não sofre de miopia, deve ver o mesmo que eu estou a ver: escolas que mais parecem lares da terceira idade; professores de bengala, decrépitos, esclerosados, deprimidos, a serem levados, até às salas de aula, por funcionários não menos fossilizados. Eu sei que as relíquias são valiosas, mas não acha que essa medida é caso para estudo mais aprofundado? Os nossos alunos precisam de gente nova, vitalidade, ideias ousadas, inovadoras, genica, precisam, sobretudo, de não ter medo do futuro. Se alguns desses jovens, por pura loucura, quiser seguir a carreira docente, quando - de preferência diga-me em que século - poderão ver as portas do ensino abrir-se-lhes? Acredite, as escolas vão passar a ser uma agência funerária. As aulas - se o não são já em alguns casos - um autêntico velório. Pobres professores. Pobres alunos. Pobres portugueses.
Imagine esta cena, Sr. Engº, digna de um filme de ficção ou terror: uma professora entra na sala, depois de se ter enganado quatro vezes no andar e na turma, senta-se, demora 15 minutos a recordar o que está ali a fazer, abre o livro de ponto, pára, porque, no entretanto, teve um ataque de reumático, hesita, e acaba por dizer:
- Mariana, filha, vai tu ao quadro escrever o sumário, porque não consigo mexer a mão. Maldito reumatismo.
Gargalhada geral. Um espertalhão levanta-se e diz:
- Prof., está a apontar para mim? Não sou a Mariana. Sou o Ricardo.
E a professora pensa:
- Malditas cataratas. Preciso mesmo de ser operada. O pior é que sou a 6044 na lista de espera...
Sabe que mais, Senhor Primeiro-Ministro, se não fosse pelo respeito que os colegas e leitores me merecem, apetecia-me pegar nas eruditas palavras do Dr. Alberto João Jardim e escrever - Bastardos! Filhos da… santa e (ir)responsável ignorância. Mas não escrevo. Só penso.
Senhor, dá-nos paciência, porque eles não sabem o que fazem. Ou sabem?!
Muito atentamente,
AMS
Acrobacias
De palavra em palavra,
de oportunismo em oportunismo
salta com a agilidade felina
de um acrobata circense
que, numa exibição montanhosa
de vaidade, simétricas redundâncias,
astuciosamente desencanta piruetas,
jogos de cabra-cega,
num voltear de bem pensâncias,
soberbo no seu triunfo,
como quem julga dominar o mundo.
Mas o não previsto,
o nunca visto, acontece!
O herói lança-se,
numa apoteose derradeira,
estonteando quem o rodeia,
sobre a rede que não alcança,
caindo, directamente,
no vácuo da desconfiança.
Deliciosamente ridículo,
deliciosamente acompanhado
de ais banzados, olhos esgalhados,
de pirueta em pirueta,
de acrobacia em acrobacia,
deixando o público suspenso
num silêncio imenso
de quem acaba de ver, constatar
que o artista, afinal,
num show impossível de igualar,
dera o salto imprevisto, genial,
sublime e... mortal.
AMS
Loucura
A luz veste a realidade
Erguida pelos ventos da loucura.
Ódio resvalando pelos poros,
Corpos mutilados,
Sangue misturado com
lágrimas, raiva,
Espanto, desolação.
E o homem, embevecido,
contempla a sua obra-prima.
AMS
Do ver, do ouvir, do falar e do tocar
Igreja do Bonfim, festa de Santa Clara. Barracas, fanfarra, animação.
A razão da nossa presença - minha e da Sónia - naquele lugar? O facto de uma amiga ter, subitamente, falecido e de, naquele sábado, se celebrar a missa de sétimo dia.
Mal nos deparámos com aquele arraial, pensámos - Não é aqui. Estamos, com certeza, enganadas.
No entanto, não seria provável que a informação dada pelo José Almeida estivesse incorrecta. Como a alegria de uns pode ser a tristeza de outros! Festa, foguetes, euforia contrastando com a mágoa, a saudade e as lágrimas daquele ritual fúnebre.
Ainda que receosas, entrámos. A presença do Zé e da família serenou as nossas dúvidas. Era aquela a igreja, era aquela a missa. Já sentadas, algo chamou, de imediato, a nossa atenção. O padre tinha uma pronúncia assaz… curiosa. Atordoadas, tentámos concentrar-nos na missa em memória da nossa amiga. De repente, a voz do pregador elevou-se e, entre espanto e espanto, ouvimos – “… porque Moijés era gago… “.
Moisés era gago??? – perguntou-me, perplexa, mal contendo o riso, a Sónia.
Reprimindo uma sonora gargalhada, respondi – Nunca li nem ouvi tal coisa. Se sofria de gaguez, o tempo que o profeta demoraria a ler os dez mandamentos…
A divertida Sónia evitava olhar para mim. Eu, receando não poder conter o riso, esfregava o rosto com as mãos. Um cavalheiro sentado perto de mim, dando uma dolorosa interpretação à minha tentativa de ocultar o rosto, interpelou-me, condoído - É da família do defunto?
Do defunto?! Não, balbuciei, enquanto, pela centésima vez, olhava para a biqueira dos sapatos e pedia perdão à amiga que, tão cedo, nos deixara. Afinal, compreendi, havia, ali, várias famílias a rezar pelos entes queridos.
O sermão continuava. A pronúncia, os gestos eloquentes - se estivéssemos na véspera do Apocalipse, os braços não se elevariam tão desesperadamente ao céu - tudo parecia conjugar-se a favor da nossa desatenção.
“… por isso, meuz irmãoss, olhos para vere, ouvidoss para escutare, boca para falare e mãoss para tocare…” – apregoou o santo homem.
Era preciso ser de ferro. Não ver, muito menos ouvir tão hilariante oratória.
A Sónia ajoelhara-se, procurando disfarçar sorrisos desapropriados. De tanto morder os lábios, eu, para reprimir o riso, tinha os olhos humedecidos de lágrimas. No entretanto, o senhor do lado pousara-me a mão no ombro - num gesto cheio de piedade cristã. Senti-me pecadora entre santos.
E o bom do cura continuava a lançar pérolas a ingratas…
“ Não quero masçar-vos, irmãosss, masz volto a repetire - olhoss para vere, ouvidoss para escutare, boca para falare e mãoss para tocare…”
A verdade é que, quais fariseus a serem expulsos do templo, não conseguíamos já esconder uns esgares mais ou menos burlescos. A nossa amiga não merecia um tal desrespeito. Porém, consolava-nos a ideia de que ela, divertida com o bizarro da situação, estaria a pensar - Aquelas duas não têm emenda!
Quase no final da missa, e para terminar em glória, o servo do senhor anunciou - Avijo oss paroquianoss de que vão abrire as inscrixões para a catequeje. Amanhã, dia de Santa Clara, continuarão as festividadess. Actuará a banda dos bombeiros de Campanhã, haverá comess e bebess com sumoss e águass gajeificadass, masz as bebidass alcoólicas estão proibidass.
Não havia pia alma que resistisse. Saímos, apressadamente, da igreja, sob o olhar protector do meu santo vizinho.
Pouco depois, no adro, dados os pêsames - sentidos - à família da nossa amiga, aguardámos a chegada do poeta. Seria impossível não lhe narrar o nosso - pouco correcto - comportamento. Face à narrativa da Sónia, o Zé Almeida sorriu - quem não ficaria contagiado com a fala da minha amiga copiando a pronúncia do cura? - e acrescentou: O que vocês ouviram foi o sermão um; amanhã, será o sermão dois. Aliás, só existem esses.
Que dizer?!
Guardo, desde aquela missa, as palavras sapientes - Olhos para ver; ouvidos para ouvir; boca para falar e mãos para tocar!
Meu Deus, eu vejo. Eu ouço. Eu falo. Nem sempre toco...
AMS
Silêncios
As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Sentia-se maltratada, agoniada, cheia de resíduos corrosivos na alma. Não conseguia raciocinar claramente. Depois dos pontapés e golpes secos que recebera, quem conseguiria? Ouvia a voz da mãe - “É assim, filha. Uma pessoa habitua-se. Temos de levar a nossa cruz até ao fim. O que conta é sermos mulheres dignas, boas mães, obedecendo sempre aos nossos maridos”.
Não! Acabara! Tinha direito a viver, a ser acarinhada, respeitada. O corpo cheio de nódoas era a marca do que até ali fora o seu mundo: vergado, desfeito, destruído. Por quem? Pelo único homem que amara. Pelo marido. Pelo seu amor. Pelo seu dono! Primeiro, fora o abandono a que a enterrara. Depois, as mentiras, os enganos, a solidão com que ia tecendo a amargurada vida que não desejara. Em silêncio, foi-se acostumando a uma vida sem futuro. Até que, um dia, surgiu a primeira bofetada, a primeira agressão física, o início do inferno. Estava farta. Farta do silêncio com que escondia a sua vergonha - não seria a dele?! Farta de ter medo. Farta de ocultar aos olhos do mundo a farsa que era o seu casamento. Farta dos pedidos de desculpa e das frases já habituais: “Juro-te, nunca mais. Não me deixes. Que queres? Perdi a cabeça... Nunca mais. Sabes que gosto muito de ti...".
O sabor das lágrimas e do sangue misturando-se na boca. E, de novo, parecia ouvir a voz da mãe: - “Tem paciência. É a nossa sina e só nos resta aguentar. Há homens que só nascem para fazer a nossa desgraça. Mas é homem...”.
Sentia-se roubada. Sim, roubada. Onde estava a fatia de felicidade a que todos temos direito? Como pôde o amor tornar-se tão sórdido? Não, não podia ser isso. Algumas pessoas é que conseguem tornar o amor sórdido e aviltante. Ele é que fora vil, mentiroso, desonesto. Ela? Ela fora educada para a aceitação passiva da vontade do homem. Nunca ninguém se atrevia a censurá-lo. A sociedade aceitava determinados comportamentos, chegava a incitá-los. Que interessava que ele fosse um alcoólico, um violentador, um cobarde?! Era homem. E, como a mãe lhe ensinara, aos homens nada ficava mal.
Iria embora. Alguém, à face da terra, ajudá-la-ia, por certo. Iria embora. Ele que se desenrascasse sozinho. Que insultasse o silêncio. Que agredisse as paredes. Os vizinhos que falassem, a sociedade hipócrita que acusasse o que fingiu sempre ignorar.
A dor parece esmagar-lhe a cabeça. Dor física e dor que sai da alma. Uma dor que vai e vem. Não é como das outras vezes. Começa a fechar os olhos. A dor é cada vez mais forte. Sente-se agoniada, a visão começa a faltar-lhe. Só mais um minuto e tudo ficará bem. Será como das outras vezes. Com a diferença, claro, que ela já não estará em casa quando ele voltar para lhe pedir perdão, chorando como um menino desamparado. A sala parece girar. Esbater-se. O medo, a vergonha, as humilhações pertencem já ao passado. Sente uma enorme vertigem... mas a dor começa a enfraquecer, a recuar, dando lugar a uma certa inconsciência. Respira devagar. O peso na cabeça já não a incomoda, é como se já não tivesse a ver com o corpo. Tenta, num derradeiro alento, arrastar-se até à porta, mas não consegue. Um último pensamento lhe ocorre - quando ele regressar, ela já não estará, como sempre, à sua espera. Nunca mais!
AMS
¡QUÉ ME DICES!
Acabaram-se as férias! Resta-nos o consolo de poder pensar que, para o ano, poderá haver mais. Ou não. Resta-nos, ainda, um doce sabor a “bem bom” e uma certa nostalgia situada na lembrança do que foi… mas acabou.
Como tantos outros portugueses - a crise a isso nos obriga - deixei-me de patriotismos, meti no saco das boas intenções o desajustado slogan “faça férias cá dentro” e abalei rumo a terras de Espanha. Vida mais barata. Gasolina mais barata. Bronzeado mais barato. E que invasão de portugueses! Raro, quase surrealista, era ouvir falar espanhol. A nossa língua e as nossas marcas habituais encontravam-se por todo o lado. Colchões de praia multicolores. As habituais raquetes e as partidas à beira-mar. O famigerado tapa-vento. Os pindéricos guarda-sóis do Continente. A tradicional merenda em detrimento dos parcos “barquillos”. E os palavrões! Família portuguesa que se preze não resiste a este tipo de vocabulário vernáculo, ajustado às mais variadas situações: quando as criancinhas vão para a água antes do tempo; perante um punhado de areia atirado por pés incautos; face ao olhar guloso do chefe de família mirando - e remirando - esbeltas sereias que se passeiam, formosas e seguras, pela praia… Enfim, aventuras e (des)venturas de um povo marinheiro e conquistador.
Não julgue, porém, o leitor que esquecíamos o que se passava na nossa querida pátria. Sabíamos que o país ardia; que o nosso primeiro gozava umas mais que merecidas férias no Quénia. E descanso de político - não um qualquer político, claro. Modelo clássico - "salvador de pátrias". Dos que tudo prometem e... depois vê-se... - é sagrado; que bombeiros exaustos e mal equipados combatiam, árdua e dolorosamente, o fogo; que, embora nos tenhamos abastecido de submarinos, não possuíamos um avião de combate às chamas, preferindo alugá-los a privados; que…; que…; que…! Confesso que me vi, algumas vezes, em situações mais ou menos complicadas, tentando explicar aos nuestros hermanos o motivo por que Portugal é o único país do sul da Europa sem frota, investindo, contudo, em material militar pesado.
Decididamente, somos, como escreveu Eça, um povo triste, amarelecido, politiqueiro, contentando-nos com uma azeitona, olhando o céu, que é bonito… Sempre os mesmos rostos. Sempre os mesmos políticos. Sempre os mesmos candidatos. Sempre os mesmos oportunistas.
Estarei a exagerar? Suponho que não. Falta-nos vontade. Garra. Raiva. Ousadia. Mudança. Somos, efectivamente, um povo sofredor. E o pior, meus amigos, é que nos habituámos a uma dose diária de sofrimento e de inércia.
Senão, vejamos o que se passa com os espanhóis. Não é só uma questão de mentalidade, é uma questão de estratégia. Quem se aborrece vendo televisão, em terras de Espanha? Ninguém. Caras e sorrisos para todos os gostos e idades. Desde a família real e a sua recente doña Letízia - só não suporto aquele Jaime de Marichalar que tira do sério qualquer um com o seu mau gosto e bizarria - passando pela duquesa de Alba - pobre matriarca que se perde entre confirmações e desmentidos! Mais agitada do que a sua nobre prole só mesmo a dos Grimaldi... - pela baronesa de Thyssen, Fran Rivera, Rocio Jurado, Belén Esteban, Campanário, Chenoa, Paulina Rúbio, etc., etc., etc., até acabar na espertíssima Eugenia Martínez de Irujo e no guapo Gonzalo Miró, há de tudo e para todos os gostos. Aliás, os programas informativos seguiam, fielmente, este esquema - breves notícias sobre os acontecimentos nacionais e internacionais, algum desporto e - Eugenia deixa Fran; Eugenia vai para Ibiza com Gonzalo; Eugenia viaja para Marrocos com Miró; Miró acompanha Eugenia à Toscânia; Eugenia beija Gonzalo; Gonzalo vai estudar cinema para os States; Fran pede o divórcio; Fran, abatido, é ferido por um touro - que ironia!; Eugenia…; Gonzalo… ; Gonzalo…; Eugenia…
Esta azáfama noticiosa ocorria em quase todos os canais e a todo o momento: de manhã, à tarde e à noite. Quem pode ter um ar cinzentão e aborrecido com estas constantes novidades? Ora… A tal de Eugenia, duquesa de Montoro, é, efectivamente, uma sortuda. Dizem. Aos 37 anos - bem vividos e esculpidos - conquista o solteiro de ouro, o “menino” da moda, o galã deste verão - Gonzalo Miró, 24 anos, sem profissão definida. Emendo, profissão bem definida - famoso! Porquê? E interessa?!
Isto, caros leitores, é Espanha. Sem o nosso D. Duarte, é certo. Mas com um Gonzalo Miró que veio demonstrar-nos que não é preciso ter quase 81 anos e candidatar-se pela terceira vez à presidência para se ser famoso e publicitado em todos os meios de comunicação. Com a agravante do octogenário não deixar a suspirar os corações femininos - refiro-me, obviamente, ao insistente Soares. O tal que é fixe. Ou era. O outro, o Miró, não sei se é fixe. Sei, isso sim, que é muy guay e muy… listo.
¿Qué me dices?
AMS
Aquele Amor
Para cada um a mesma história? Não, a história dela era diferente. Sorte? Destino? Para o caso tanto dava. Aquele anúncio, no jornal, fizera com que acreditasse em algo, em alguém - "Cavalheiro, eternamente jovem, culto, educado, procura senhora da mesma faixa etária, boa formação, meiga, culta, que saiba apreciar a beleza da vida, a liberdade de ser e de estar, que acredite existir sempre um novo começo, um fim diferente... ". Algo, dentro dela, ao ler aquelas palavras, estabelecera, de imediato, a diferença entre o que era significante e insignificante. Aquele anúncio parecia indicar-lhe um caminho, uma direcção. Respondera.
E, assim, começara uma troca de correspondência que ia, naquele dia, ter o seu ponto culminante: conhecerem-se pessoalmente. Estranhamente, não sentia qualquer receio. Ele demonstrara ser, atestando o atributo de diferente, um homem interessantíssimo, inteligente, culto, espirituoso. Ela, naquela idade em que as mulheres desejam mudar de vida para exorcisarem a velhice, ela, cheia de expectativas, estava em vias de se apaixonar.
Enquanto se dirigia ao café, onde tinham marcado encontrar-se, ia visionando o retrato que ele, subtilmente, tinha esboçado ao longo de não sei quantas cartas e conversas telefónicas. Homem experiente, idade indefinida – só agora reparara que ele nunca mencionara a sua idade concreta. Ela é que, inconscientemente, delineara que tivessem a mesma idade ou a dele fosse um pouco mais avançada - apreciador de música, literatura, cinema, enfim, um homem perfeito... ou quase. Claro que não esperava ir encontrar um Adónis, mas era-lhe suficiente acreditar que, vencendo o arguto jogo da improbabilidade, por um golpe de fortuna, encontrara alguém íntegro, correcto e não um mentiroso profissional com as litanias do costume.
Caminhava apressada e segura, enquanto repetia mentalmente: "Alto, bem constituído, vestido informalmente e - o mais importante - com um livro na mão - Aquele Amor de Yann Andréa". Eram os sinais necessários para o reconhecer. Sorriu, voltando a sentir-se uma adolescente.
Entrou no café quase deserto. Observou, atentamente, as mesas. Não, não devia ter chegado ainda. Chamou o empregado, pedindo um café para entreter o tempo e o coração.
Subitamente, uma voz agressiva captou a sua atenção. Olhou entre curiosa e desinteressada. Claro, um desses cretinos prepotentes, meia-idade - um emproado representando a comédia de homem superior - discutindo com o empregado. Uma cena demasiado vulgar, nos dias que correm. O homem gesticulava, furibundo, enquanto ia gritando: "Não te chamei, rapaz? Se pago, é para ser bem, rapidamente atendido!".
Fulano antipático - pensou. Sem dúvida, daquele tipo de pessoas cujo dia a dia está empanturrado de insignificâncias. Daquele tipo de gentinha habituada a estipular o preço dos outros através do seu horizonte egocêntrico e limitado. Pessoas que se aceitam tão mal que só lhes resta infernizar a vida dos outros para se sentirem vivas. Pessoas cujo único prazer é a adulação do seu ego mesquinho. Daquelas que até pagam aos outros para engolirem as suas patranhas e fanfarronices. Pessoas que estão habituadas a pagar sempre tudo… até a sua fastidiosa existência. Ainda bem que o seu amigo era um homem completamente diferente daquele que tinha diante de si. Detestava pessoas que utilizavam rótulos para classificar os seus semelhantes... sem se darem ao trabalho de conhecer o seu conteúdo. Não suportava que alguns - os ditos eleitos, tal o caso do homenzinho sentado à sua frente - tentassem adornar o seu pequeníssimo universo através de atitudes impregnadas de arrogância e narcisismo. Pobre homem! A idade, a experiência - até o puro instinto de sobrevivência - não tinham sido suficientes para que aprendesse que não tem sabor nenhum viver só, isolado dos outros.
A discussão continuava. A grosseria e o evidente desejo de protagonismo eram cada vez mais visíveis. Sua excelência paga, consequentemente exige. Sua excelência existe, por isso pode espezinhar quem lhe der na real gana. Sua excelên... não! Não! Não podia ser. Algo na mão nervosa e pedante do homem atraiu, dolorosamente, a sua atenção. Um livro. Não um livro qualquer... Um livro cujo título leu, incrédula - Aquele Amor de Yann Andréa! Aquele amor...
AMS
destilar a vida
O dia deu em chuvoso. O sol tão
promissor,
a luz tão esplendidamente
radiosa,
e, subitamente, disformes nuvens, chuva,
escuridão.
Assim a vida. Dias de alvo linho,
risos à solta justificando o
paraíso.
De rompante, gélida neblina, o inverno, o
pranto.
A vida? Uma vista rasgada sobre o mar.
Ventos aprazíveis. Um gesto de
triunfo.
A vida? Coisa pouca, coisa nenhuma.
Vontade deleitada de
ficar.
Vontade magoada de
partir.
Terra sonhada, pico inacessível,
veleiro,
prisão,
meio caminho entre o
abrir,
fechar
o coração.
O sol tão promissor, e o dia deu em chuvoso.
A vida? Frágil fio de espuma escoando-se
por entre a pontualidade inalterável donão ser
e o halo, sempre adiado, de um há-de
ser.
AMS
Do Inferno ao Paraíso... ou quase...
Ao longo de vários anos de ensino, tenho vivido situações de extremo dramatismo e, simultaneamente, da mais bizarra comicidade.
É evidente que a experiência vai ajudando. Contudo, há sempre algo que nos escapa e, creio, faz da nossa vida um filme especial.
Habituada a dar aulas a adultos, resolvi, por motivos pessoais, mudar de escola e optar por um horário diurno. Não contava, porém, que a “taluda” me ofertasse aquele “brinde”. Quando recebo o horário, reparo, entre incrédula e horrorizada, que tinha sido contemplada com uma turma do oitavo ano. Impossível - pensei! Há anos que não lido com alunos desta faixa etária. Além disso, todo o docente que se preze sabe que os oitavos anos são, habitualmente, fonte energética de problemas, stress e depressões.
Debalde tentei que o conselho executivo - na época, conselho directivo - me retirasse aquela bomba.
Até vais gostar! É uma experiência diferente! Tu aprecias desafios… - diziam os colegas mais próximos num tom pouco convincente e, de certa forma, soando a velório. Era fácil, naquele caso, adivinhar quem seria a vítima.
Obrigada, contrariada, furiosa… acabei por me render ao inevitável. Assim, e não querendo ser surpreendida pelo inimigo, resolvi consultar o dossier do director de turma. Eis a sentença - " Vinte alunos. Todos repetentes. Idades compreendidas entre os quinze e dezassete anos. Quatro deficientes auditivos. A maioria não vive com a família. Alunos problemáticos e com antecedentes comportamentais mais ou menos graves" .
Entrei em pânico. Apeteceu-me desistir, ou seja, meter um atestado de longa duração. Afinal, a minha fidelidade àqueles alunos podia ser ad libitum. Acabou por vencer o meu lado masoquista. Como escreveu Miguel Esteves Cardoso, os portugueses têm o culto do sofrimento. Ali estava eu… belo exemplar da sua tese!
Como caracterizar o meu “tête-à-tête” com a turma? Indescritível. O filme “Sementes da Violência” comparado ao que nós - sim, o calvário era comum a todos os professores da turma! - sofremos, não passava de uma comédia ligeira e frívola.
De nada adiantava chamar os funcionários, a presidente do conselho directivo ou o professor de religião - aquele bando de rebeldes tinha decidido exterminar o corpo docente da escola. Quantas vezes dei comigo atónita, gelada de raiva contida, pensando - Isto não está a acontecer. É demasiado tenebroso. Estou a ter um pesadelo!
O pesadelo era, infelizmente, real, persistia, e o meu equilíbrio corria o risco de ficar mais instável do que a torre de Piza.
Uma das cenas mais hilariantes - confesso que, na altura, o meu sentido de humor não me permitiu apreciar devidamente aquele torneio medieval - teve a sua origem a partir deste desastrado sumário - Exercícios de aplicação da Língua. Era óbvio que me referia à Língua Portuguesa! Bem, não foi tão óbvio, pelos vistos… Abstenho-me, por pudor, de relatar os comentários vernáculos que o dito sumário suscitou.
Findas as observações, insinuações e outras adendas afins - tentei fazer-lhes ver os erros mais comuns que os alunos - e não só - cometem ao escrever. Desde o célebre e habitual “concerteza” - já agora, e para os mais esquecidos, deve escrever-se com certeza - até à confusão do “demais” ou “de mais”, passando pelo “porque” e pelo “por que”, nada tinha sido deixado ao acaso - pensava eu…
A parte mais “indigesta” da aula - para mim, claro - teve, todavia, como “protagonista” uma intervenção de um dos alunos. Perante os dois exemplos escritos no quadro - Não sei por que razão o Pedro é tão presunçoso. Talvez, quem sabe, porque pensa que é o maior e... - o João - era o nome do chefe da guerrilha - levantou-se, soltou uma risada e, apontando para o primeiro exemplo, proferiu:
- Mas onde é que bocê foi imbentar isso?! Fogo, nunca bi ninguém escrever porque separado, caraças!
Meus amigos, o que pensei, o que me apeteceu fazer, naquele momento, só pode ser descrito com um expressivo Piiiiiiiiiiiiii e com a famigerada bolinha = O !
Nota: Como alguém disse - e muito bem - a resolução de um problema passa, frequentemente, por saber encará-lo segundo várias perspectivas. Neste caso, do ponto de vista do "adversário". Um belo dia - ainda há finais felizes! - aquela" santa cruzada" acabou. Passei a ir armada como o exterminador implacável? Não foi preciso chegar a tanto. Bastou ter tido a coragem, astúcia (sensibilidade?) de, ao ouvir uma das alunas da turma queixar-se - Num percebo porque ninguém nos leba a bisitas de estudo. Até parece que metemos medo a alguém… - eu , de imediato, ter respondido:
- Levo-os eu. Levo-os eu! Vamos ao teatro!
Foi como se aqueles adolescentes tivessem sido catapultados para uma outra dimensão. Tudo mudou. Claro que as aulas nem sempre eram o paraíso. Visitámos, algumas vezes, o purgatório. O inferno, contudo, acabara!
AMS
Não há festa... mas há discurso!
FINALMENTE, RODRIGO!
Soube, hoje, da tua saída do hospital. Muito cedo, porque a tia Sónia não cabia em si de feliz e porque toda a família está como sob um enorme encantamento.
Foi uma caminhada longa e difícil. Contudo, por qualquer desígnio que nos é desconhecido, foste vencendo cada obstáculo que te aparecia. Com a garra de um lutador? Sem dúvida. Mas com a vontade mais incrível de viver.
Diz-se que os tempos felizes não têm história. Claro que têm. Este é um momento que todos os que te querem bem vão agarrar e lembrar. Com a força que só o amor dá às histórias que têm futuro.
Como já escrevi uma vez, espero que, daqui a uns anitos, possas ler estes “desabafos” e, sorrindo, escrevas: Bahhhh! Lamechiche de mulheres!!!
Aviso-te, Rodrigo, que o link talvez seja o mesmo. O título do blog é que já deve ter passado de folhasoltas para folhasressequidas - que me perdoem os meus sócios da escrita , mas o tempo corre e… as folhas secam...
De uma coisa podes ter a certeza – o sentimento de contentamento pela tua primeira passeata à rua é colectivo. E não é que sais no Dia da Mulher? Será presságio anunciando que vamos ter mais um D. Juan a estragar, amarrotar e desesperar corações ?! Em última instância, e se não te portares bem, vais recambiado para Marrocos ouvir os conselhos sábios do tio Makram e aturar os “talk-show” da madrinha. E olha que aqueles que eu tenho ouvido são um verdadeiro doutoramento na arte da ascensão rumo à felicidade. Eu é que não tenho sido uma aluna muito aplicada...
Vou deixar-me de tretas. Bebe o leitinho todo. Não chores muito durante a noite. Aprende as canções marroquinas da madrinha e… daqui a uns anos, Rodrigo, tens o futuro garantido. Ah… e não leves os problemas muito a sério (olha quem fala!). Usa truques, usa magia, mas aprende a apreciar o dom maravilhoso que é a vida . Mesmo com uma tia chata! Mesmo que tenhas de ir vinte, trinta, cem vezes até Marrocos… A vida , vais aprender, também tem os seus contratempos. Pura questão de treino.
Um beijinho do tamanho do carinho que sinto por ti.
AMS
Soneto Superdesenvolvido
É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem
Por isso se no verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada
Consola mais assim viver no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada
E ao fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que se gozou
Teria este (se não tivesse outro sentido)
ser natural de um país subdesenvolvido
Ruy Belo
allegro ma non troppo
Isto de ser mulher, meus amigos, tem muito que se lhe diga. Não nos entendem, não reconhecem as nossas capacidades, querem-nos sempre caladas e, se possível, encerradas numa torre - vulgarmente apelidada de cozinha - qual Rapunzel predisposta a viver, eternamente, entre tachos e legumes, ensombrada pelo pressentimento de uma fatalidade inevitável - que, mais dia menos dia, o príncipe dos seus sonhos vire sapo repelente e viscoso.
Desde crianças, somos espartilhadas, voluptuosamente, por ideais conservadores e esclavagistas cujo único objectivo é a defesa dos valores femininos tradicionais, ou seja, o nosso inequívoco reconhecimento e gratidão pelo papel glorioso que nos coube em rifa - o de mães, donas de casa e esposas amantíssimas.
Querem-nos doces, amáveis, encantadoras, submissas, burras q.b., placidamente “adormecidas” sexualmente, enfim, umas perfeitas princesas encaixadas, primorosamente, na velha estória do “era uma vez…”.
No guião dessas estórias , inevitavelmente simples, linear e sem nuances, pretende-se que a heroína represente divinamente o papel de uma passiva, mansa e bela fada do lar, afastando a monotonia dos dias e a mais abjecta tristeza com a simples presença do seu senhor ou, mais frequentemente, atafulhando-se de compras e mais compras, armazenando roupas, sapatos e cosméticos como se o Apocalipse estivesse mesmo ali ao virar da esquina e ela fosse uma das poucas sobreviventes.
Por sorte, os tempos mudaram e algumas mentalidades também. As princesas , as tais heroínas românticas, começaram a acordar e, ámen, chegou a época das luzes a submergir a das trevas. A moda das odaliscas já era e a das Butterfly também. Os homens começam, finalmente, a perceber que a lei do dar anda a par com a do receber e que, em matéria de amor, se a palavra “pouco” soa mal aos seus dúbios ouvidos e ao seu sensível coração, soa igualmente mal ao coração, não menos delicado, das suas companheiras.
Ah… é escusado atacarem com o velho slogan do feminismo caduco, da igualdade enganosa, e da emancipação tipo time-sharing. Não é disso que se trata.
Todas nós, mulheres, gostamos de ouvir, de quando em vez, a canção do bandido. Mas é importante que o “bandido” saiba que nós sabemos que a tétrica litania do espírito de sacrifício feminino foi inventada por algum imbecil que, num momento de puro delírio, pensou ter prioridade na arte da desafinação, não contando, porém, com o efeito boomerang. Daí o aparecimento dos coros e seus derivados…
Seja como for, duvido que haja alguma mulher que não prefira um dueto mais ou menos afinado, misto de sortilégio, harmonia e magia, a uma ária cantada a solo por um barítono de grande volume, mas incapaz de arrebatar uma soprano de uma maneira especial… e appassionata.
AMS
Do ver, do ouvir, do sentir
Não vi nada, não ouvi nada! - fora assim, de forma inesperada, que lhe chegara a afirmação. Carregada de rancores. Prenhe de subtilezas. Se descontextualizada, simulava uma frase inocente, inócua, amiga. Inserida num determinado contexto, ocultava atalhos, insinuações, maldade. O branco oferecendo-se transparente? Não. O obscuro que se apresentava branco. E, subitamente, a raiva deflagrando, o pudor desaparecendo, o fruto apodrecendo.
Afinal, que poderia ter visto ou ouvido aquela alma amarga e ressequida? - interrogava-se, incrédula. Entre as várias epidemias que corroem o ser humano, a falta de respeito pelos outros é, sem dúvida, mentor. Com que impune liberdade algumas pessoas, tontas de arrogância e de cegueira, proclamam ambíguas "verdades" veiculadas por palavras que fluem raivas, prepotências, insensatez e um sabor acre pela vida? Que válida razão lhes permite reivindicar o direito de atear mistificações, vexames, juízos trespassados de arrevesadas intenções? Contudo, começava a estar vacinada contra a vocação histérica de alguns. Deixa que formiguem, não é grave - dizia-lhe, sabiamente, uma amiga. Não, não era grave. Era apenas lamentável. Parecia-lhe ouvir as palavras do médico - A escolha é sua: esconder-se num subterrâneo de medos ou desvendar a cor da vida; fechar-se numa teia de cepticismo ou abrir caminho ao desafio. Se algo ou alguém , num crudelíssimo jogo de massacre, tenta empuurrá-la para a quietude negra do nada, resista, lute.
Resistira. Lutara. Apesar das fragilidades inerentes ao ser humano, apesar dos erros - ou por causa deles - optara por cuidar da vida, por merecê-la. Tudo o mais deixara de a magoar, de fazer sentido. Tudo o mais era ruído. Não ver, não ouvir - sobretudo quando não se é cego ou surdo - deve ser uma terrível fatalidade, um enorme vazio - pensava. Não ver a beleza de um sorriso, não ouvir o som de uma palavra impregnada de mil matizes era não pertencer a ninguém, não estar em lugar nenhum. Pobre da autora da frase que não conseguia entender que, frequentemente, o mal que provocamos é bem menor do que aquele que sofremos.
Ainda bem que - compreendendo que também se morre de indecisão e de inércia - ela se propusera sacudir a poeira dos olhos e da alma.
E via. E ouvia. E sentia.
AMS