domingo, janeiro 28, 2007

O Ensaio Geral

Não posso ir ao ensaio, esta noite, com o Clube de Teatro - informei,com ar de quem está a dar as últimas, a minha amiga/colega Maria José, responsável pelo grupo dos amantes - poucos - de teatro.
Amiga, se estás doente, não vás! Eu levo os alunos e tudo se resolve - retorquiu a Zé, plagiando a minha tosse e as minhas lamúrias.
Bonito! Está um frio de gelar os ossos… Esta tosse não anuncia uma noite em beleza… Mas não posso deixá-la ir sozinha… - pensei. Bom, também vou... No caso do ensaio não acabar por volta das 22.30, saio. Pode ser? - inquiri, ansiando sobreviver a tão pesado flagelo.
A minha amiga sorriu, tossiu meia dúzia de vezes - estava, sem dúvida, a imitar-me, a safada - e profetizou : vai ser uma noite bem divertida, o analgésico ideal para gripes, tosse e… vontade de ficar em casa.
Espertinha! Que auspiciosa terapia! - retorqui para os meus botões.
Nove horas da noite. Frio capaz de fazer doer o coração e as gargantas mais debilitadas. Uma alma penada, eu, esperando a chegada da chefe e dos alunos. Ei-los!
O ambiente, no interior do “autocarro,” contrastava com o ar gélido do exterior. Alegria. Risos. Calor. A motorista cantarolava e… tossia.
Rua da Alegria - entoou a bem disposta! Rua da Alegria - repeti, condoída da minha fragilidade tússica.
Não, não é aqui. É mais abaixo, logo a seguir à escola Augusto Gil - informou o porteiro, cronometrando o tempo da informação.
E lá fomos nós, calcorreando a rua da Alegria, à procura da desejada sala de ensaios.
É aqui! - gritou o Zé António, espreitando, imediatamente, pela caixa do correio.
Pois é! - confirmei, espreitando, igualmente, através da dita abertura.
Viste alguém? - perguntou a toda sorridente.
Não. Vi uma secretária, sofás e uma porta de elevador. Será o cenário?!
Vozes. Passos. Abre-se a porta. Cumprimentos da praxe. Beijinhos da praxe. Apresentações: professoras, alunos, actores e encenador.
Sentamo-nos aqui? - indagou a bem-humorada, não reparando no meu olhar atónito. Sim, eu estava em estado de choque. Intoxicada. Gazeada por milhares e milhares de pontas de cigarro colocadas num não menos moribundo cinzeiro.
Não. Vamos subir as escadas e visitar as nossas instalações - elucidou um dos actores.
Afinal, aquilo era o hall!
Esta é a nossa sala de estar! - esclareceu, gentilmente, outro dos actores. Sentem-se enquanto preparamos o ensaio.
Era óbvio que se tratava de uma sala de estar. Copos, bebidas, bolachas, pontas de cigarro - tudo contribuía para dar um ar familiar, intelectual, boémio ao compartimento. Agora já consigo imaginar os esconderijos dos grupos terroristas - esclareci-me, atacada por uma nova área de tosse. A estreia - da tosse, obviamente - tinha sido à entrada, mal o meu nariz, garganta e pulmões deram de caras com o cinzeiro poluidor e a montanha de beatas. As beatas, efectivamente, são pouco fiáveis… dizem.
O ensaio, apenas algumas cenas já que duas das actrizes estão com gripe, vai começar - anunciou, triunfal, o encenador, um sujeito com uma carismática armação Armani - tipo Onassis, topam? - blasé, iluminado q.b., espartilhado nuns jeans justíssimos e muito sugestivos. A peça é, também, da minha autoria. Escrevi-a em três dias, num retiro lá para o norte - explicou o talentoso.
O homem é um génio - murmurou a minha amiga. Dramaturgo e encenador! Vamos, então, assistir ao ensaio.
Fomos. Com um cenário daqueles é que a minha tosse não contava. Mal entrei, deparei-me com um… caixão aberto, tetricamente ornamentado com velas e velinhas. Não podia, realmente, ser uma noite mais divertida! Mortos, clones, namoradas, strippers… nada faltava naquele enredo surrealista e nortenho.
Enquanto os actores representavam - e bem - o senhor encenador dava sonoras gargalhadas, acariciando, lentamente, o peito. O seu alter-ego funcionava às mil maravilhas. Sentia-se, por contágio, o delírio supremo: o criador gozando a sua obra. O escritor escutando, embevecido e maravilhado, as suas próprias palavras nascidas de uma gestação de três gloriosos dias.
No final, e perante o mutismo dos alunos, o criador, quero dizer, o encenador perguntou - que sensações experimentaram perante estas poucas cenas, meus amigos?! Compreenderam que há uma espécie de desdobramento autor/personagens? A vossa opinião é muito importante para todos nós. Claro que o mais apoteótico é o final. Não vou contar-lhes, mas a peça termina com uma espécie de bacanal. Orgia.
Bacanal?! Orgia?! Se o senhor prodígio acreditava na nossa insensibilidade ou estupidez perante a sua obra-prima, enganou-se redondamente. A abelha-mestra falou sabiamente; o Filipe, o João e o Zé mostraram não estar habituados a deixar os seus créditos por mãos alheias e até eu, a vítima lânguida de uma virose desconhecida, ensaiei uns quantos clichés, que pairaram no ar daquele macabro cenário, mas que foram, violentamente, amordaçados por novo ataque de tosse.
Já na rua, críticas e comentários. A palavra “orgia” tinha agradado aos rapazes. A Luísa, que durante o ensaio se mantivera queda e muda, parecia uma borboleta a quem o ar fresco da noite - o eufemismo e a comparação pretendem dar um toque literário a esta croniqueta - fizera sair do casulo.
Entrada para o “autocarro”. Gargalhadas. Alegria . Patrulhamento policial - por muito pouco a nossa condutora não apanhou uma multa por excesso de carga. Paragens. Acompanhamentos domiciliários. Inversões de marcha. Uma noite irreverente, diferente, repleta de bom-humor.
Tinhas razão, Zé, foi, decididamente, um óptimo bálsamo para rouquidões, tosse, constipações e uma dose elevada de preguicite aguda. Recomenda-se.

AMS

quinta-feira, janeiro 25, 2007

A casa

Aquela era a sua casa.
Não adiantara partir. O pânico que a invadira, quando percebeu que ninguém está ao abrigo do sofrimento, esfumara-se há muito. Aprendera a conviver com essa certeza, embora, por vezes, ainda estremecesse sempre que a luminosidade do dia passava a dar lugar às sombras misteriosas e densas das horas negras que sempre se avizinham. No fim de cada dia, a noite vem. Com ela traz o sono, um torpor quase involuntário e uma certa febre do passado.
Aquela casa era o seu passado. Paradoxalmente, era, de igual modo, o seu presente.
Quando abriu a porta, receou o silêncio. Tacteou o barulho de vozes, de conversas banais, de risos. Contudo, o silêncio, longe de a reunir ao que a fizera partir, cingia-a à claridade que entrava pelas janelas, rodeando-a de uma estranha sensação de segurança, calor e bem-estar. E ela acreditou - porque queria acreditar - que a casa vibrava, esfusiante de alegria, com o seu regresso.
Houve um dia - ou teria sido uma sucessão de dias, semanas, meses, anos? - em que as paredes da casa lhe sussuraram o vazio da sua existência. Algo chorava há muito dentro de si. Obstinada, tentou esconder essa mágoa, secá-la. Mas o coração da casa estava também, irremediavelmente, ferido. A casa, pouco a pouco, ia perdendo vida e, simultaneamente, ia ficando mais estranha, mais fria, mais anónima. Ela, por seu lado, sentia esse carácter neutro que a casa assumia. Deixara de ser um lugar para viver e compartilhar vida. Deixara de ser a sua casa, o porto seguro. Passara a ser ausência. O confronto de mundos antagónicos.
Partira. Não olhara para trás com medo da penumbra que cercava, avidamente, a casa.
E os dias, as semanas, os meses foram passando. E com eles viajou o melancólico Outono, o duro e agreste Inverno e chegou, finalmente, a força e a vitalidade da Primavera.
Subitamente, sentiu que a casa já não era outrora. Nem receio. Era equilíbrio. Algo que iria sobreviver para além das sombras porque criara raízes.
E resolvera voltar. Sabia que ia tocar no passado. Porém, este, ao invés de a perder, fá-la-ia renascer.
O sol começava a declinar, mas não mais vestiria a pele côncava da fuga.
Abriu a janela, aspirou o ar sereno do entardecer, apoiou o pensamento no visível, interiorizou o não visível e deixou que a realidade, sem trajectórias hesitantes, lhe invadisse a alma.

AMS

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Tragédia num só acto

Cenário: uma das pequenas praias de PortoNovo.

O ritual do costume: descer a rampa que dava acesso à praia, escolher um local a favor do sol, estender a toalha, retirar o pareo, espalhar o protector solar, dar uma vista rápida pela vizinhança, pegar num livro, ler meia dúzia de linhas e sorrir perante o habitual espectáculo - homens, mulheres e crianças passeando, lenta ou apressadamente, à beira-mar. Até ela tinha já aderido a estes passeios higiénicos, e, em idas e vindas, ao longo da pequena praia, cruzava-se, sistematicamente, com "velhos conhecidos", adeptos incondicionais deste périplo .
Enquanto observava, mais ou menos atentamente, mais ou menos curiosamente, os banhistas, pseudo-banhistas e os ditos "maratonistas", deu-se conta de que alguém assentava praça - neste caso toalha - muito perto do seu território. Uma típica família espanhola: pai, mãe e dois rapazinhos travessos habituados, certamente, a fazer o que lhes desse na real gana. O patriarca, cabelo empastado em gel, calções berrantes e curtos, barriga de quem parecia estar no final de gestação e... o famoso fio de ouro ao pescoço; a mãe, cabelo preso por uma mola transparente, impecavelmente pintada, pulseiras e anéis até dizer chega.

A tragédia ia começar.

Entre gritos, grunhidos, "quedate tranquilo", "cariño" para cá e para lá, o chefe de família resolveu ir acalmar, quiçá refrescar a cabeça, junto à beira-mar. Subitamente, ouve-se um grito aflito. Dois. Três... Não fossem os uivos, parecia que o banhista tinha iniciado os primeiros passos da dança da chuva. Os esgares que o acometiam eram terrivelmente engraçados, e ela nem sabia se devia conter o riso ou ir oferecer os seus préstimos - saciando a curiosidade - àquela vítima provável de algum tubarão mais afoito.
Enquanto o homem era levado em braços para junto do posto-socorro, seguido de uma comitiva que fazia lembrar um qualquer cerimonial fúnebre, um dos miúdos disse - " Ha sido una fanequita! ".
Ficou atónita! Uma fanequita?! E todo aquele aparato, todos aqueles ais, queixumes, caretas... por uma simples picadela de uma faneca indefesa?! Realmente, o sexo forte deixava muito a desejar no que dizia respeito a coragem e saber suportar a dor - uma dorzita - com a dignidade de um tarzan... de corrente de ouro ao pescoço.

Algumas horas mais tarde. O mesmo cenário. Tarde quente, mar calmo, os mesmos figurantes da manhã. Exceptuando, claro, o "ferido".

Ela desceu a rampa, escolheu um local a favor do sol, estendeu a toalha, retirou o pareo, espalhou o protector solar, deu uma vista rápida pela vizinhança, pegou num livro , leu meia dúzia de linhas e... desistiu. O calor era sufocante. A areia molhada, junto à água, era um chamariz aliciante. Resolveu iniciar o périplo. Uma volta, duas voltas, três voltas, um sorriso cúmplice aos seus companheiros de trajecto contrário, uma onda mais ousada que a salpicou toda e... ai! Cortei-me num vidro - pensou! Ai! Horror dos horrores, a dor era insuportável e parecia paralisar-lhe a perna toda. Queria conter as lágrimas, mas não conseguia. Deu consigo rodeada de uma multidão sedenta de sofrimento e "ópera". Os ais redobravam de altura. Um compatriota sentenciou - "Foi picada por um peixe-aranha!". Outra voz explicou - " Si, mujer, has tenido poca suerte. Has sido picada por una fanequita".
Só então ela percebeu. Mas já era tarde!

AMS

sábado, janeiro 20, 2007

"Confesso que, até hoje, vivi"

Cara amiga Ana

Não sei nem tenho jeito para a escrita, mas cá vai uma palavra simples que reflecte o que me alvoroça neste momento.

Sei bem o que é estar frustrado, maltratado, ignorado no que toca ao nosso profissionalismo e dedicação do dia-a-dia profissional, etc., etc., etc.. Não será com a " nossa ida ao tapete " que vamos responder de forma eficaz, mas temos que manter a cabeça fria para pensar e sobreviver no meio de tudo isto.

Quando era mais pequeno, julgava conseguir mudar o mundo. Hoje, sei que não consigo porque o Mundo está nas mãos dos assaltantes do poder, enquanto nós não estivermos dispostos a ir para lá cumprir, de forma correcta e melhor, com as nossas obrigações totais. Apesar disto, também não me conformo nem acomodo, mas já tentei dar o meu contributo partidário. É uma mafia total e eu vim embora para não ser igual. Não foi cobardia! Foi seriedade, honestidade, etc..

No meio de tudo o que vejo e no meio da tua " raiva incontida ", que eu compreendo na descrição do teu bom texto, encontro a minha tranquilidade e paz de espírito por forma a ter a certeza de que não devemos perder a nossa lucidez e, muito menos, dar o que temos de melhor pelo egoísmo de alguns energúmenos e assaltantes diversos.

Em tempos, uma amiga dizia-me que " Quando as couves nascem são para todos " e eu, depois de muita conversa, disse-lhe que era verdade, mas com um pequeno acrescento do tipo - " Quando as couves nascem são para todos os que as plantam " . Ficou muito ofendida e foi à vida dela conversar com António Gedeão. Nunca mais disse nada. É pena eu hoje pensar assim. Foram os outros que me " melhoraram " a postura. " Aprendi ".

Fartei-me de plantar couves para os outros e, por vezes, fiquei sem comer. Ninguém se importou. Sem forças, tive que as plantar para mim. Ninguém me ajudou. Aprendi a caminhar no meio da " selva ", pois aprendi a manter a cabeça fria na maior parte das vezes. Só assim consigo controlar esta minha ansiedade como diz o cantor António Variações.

É importante tudo isto para sermos capazes de não nos deixarmos cegar com as fogueiras dos pretensiosismos diversos dos outros. Esses pretensiosismos com que nos tentam queimar.

O tempo é bom conselheiro. Lutemos na vida, mas de olhos abertos. Desafiemos os idiotas e todos os abutres, no dia-a-dia, com a qualidade do nosso trabalho e sem permitir que dela tirem dividendos para si. Esses, terão que ser nosso. Assim venceremos. Não é para nos suplantarmos aos outros, mas para vivermos com a dignidade que os outros nos tentam tirar. Sei que é difícil, porém é bom tentar, pois saborearemos a vitória final.

Lembra-te do seguinte : para mim, a vida é um longo somatório. Quanto melhor for esse somatório, melhor ela será. Elimina os erros e os pontos negativos.

Nunca esqueças que para saborear o sol temos que saber apreciar a chuva. Quanto a esta, usa o guarda-chuva. Quanto ao sol, vai para a praia na sua companhia e deixa-te ser saboreada por ele - na paz do bem e da tranquilidade - na companhia da tua toalha. Só assim conseguirás forças para dar aos teus alunos o que eles esperam e merecem de ti. Isto sim, isto é viver e eu posso dizer-te, como escreveu Pablo Neruda - Confesso que, até hoje, vivi!

Por agora, deste coleccionador, calma. Um beijinho. Continua.

Sempre a considerar,

Alves

cantiga de engano

Chamaste-me mulher,
Mãe, amiga, amante,
Sombra, calmaria, malmequer,
Madrugada, flor agreste, melodia,
Luz secreta que alumia.

Disseste que o meu nome
Cabe numa mão pequena,
E que cheira a açucena,
E que sabe a madrugada
Doce, fresca, orvalhada
Num lençol de ternura germinada.

Mas o meu sorriso não floriu,
Ouvindo a voz que me chegava
Da tua boca gasta, repetida,
Desfolhando noutras bocas o sabor
Desses frutos de seiva ressequida.

Chamaste-me flor,
Luar, calor,
Bálsamo, oração
Do teu altar de extinta devoção.
Só não ouvi ressuscitada,
- Sequer lembrada -
Na tua boca, a palavra amor.

AMS

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Obviamente... demito-me!

A revolução começou! Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Nada disso. O lema, agora, é: Complicar, Desmotivar, Avaliar e… ECONOMIZAR!
Se, no tempo das trevas - sim, porque, presentemente, de tanto rigor, de tanta redundância, de tanta confusão passamos a ser, todos nós, uns iluminados rumo a essa vaga EXCELÊNCIA tão apregoada pelo governo - os alunos conseguiam acabar os seus estudos sem planos de apoio, sem grelhas de observação directa, sem projectos curriculares, sem estratégias de remediação feitas para remediar o impensável, ou seja, a falta de estudo, de trabalho e de motivação; se, no tempo em que éramos todos - os professores, obviamente - uma cambada de néscios, preguiçosos e incompetentes porque ainda tínhamos tempo para preparar aulas, dar atenção aos alunos e, o mais singular, conseguir ter uma vida familiar, a escola era um local de aprendizagem de saberes, competências e valores ( o conceito de escola = parque de estacionamento para as nossas crianças é relativamente recente); se, outrora, e na maior parte dos casos, uma simples chamada de atenção - chamemos-lhe sabedoria caseira - era suficiente para evitar comportamentos e atitudes menos correctos, sem necessidade de desgaste emocional, processos disciplinares graves, gabinetes do aluno, visitas ao gabinete de psicologia - reconheço, actualmente, a sorte que tive, enquanto aluna, já que um ou outro berro, uma ou outra interpelação mais “expressiva” não deixaram em mim vestígios de traumas, fobias e outros desajustes que tais relativamente à escola; enfim, se lográmos todos - alunos de outras gerações - sobreviver a um ensino/aprendizagem que requeria estudo, trabalho e responsabilidade, por que razão, interrogo-me, o insucesso escolar aumenta - ou é, ardilosamente, escamoteado - a ignorância cria raízes, a desresponsabilização prolifera e inequivocamente, os intervenientes de toda esta saga - professores e alunos - se apresentam, cada dia que passa, mais desmotivados e cansados?!
Temo que estejamos a bater no fundo. E o pior, meus amigos, é que todo este leque de erros, perdão, inovações começa a infiltrar-se, tacitamente, em alguns de nós. O bom senso começa a escapar-se das nossas escolas. O medo - não deturpemos as coisas. O medo, sim - e a tal obsessão pela EXCELÊNCIA ganham eco. Entrámos numa nova era - a do fogo-fátuo. Vejo, com apreensão, alguns colegas - seguidores fidedignos do poder - cumprirem, à risca, tudo o que a Senhora Ministra se lembra de fantasiar e os Senhores Inspectores - não menos à risca - se lembram de aconselhar/ordenar.
Comecemos pelos dossiers. Professor que se preze nunca deverá ter uma pasta sem, pelo menos, 5 kg de papelada. Tudo serve: planificações a curto, médio e longo prazo; estratégias relativas ao passado, ao presente e ao futuro dos alunos; planos de apoio - ainda que o aluno não venha a recebê-lo; estratégias a adoptar; remediações para as estratégias adoptadas; plantas, actualizadas, da sala de aulas; plantas, a actualizar, da sala de aulas; grelhas de avaliação; grelhas para avaliar as grelhas de avaliação; gráficos, muitos gráficos; actas controladas ao milímetro; actas medidas ao quilómetro.
Passemos, de seguida, às reuniões. Há de tudo e para todos os gostos. Docente a caminho da excelência deve, no mínimo, reunir todos os dias. Já os professores titulares serão obrigados, digo eu, a reunir todos os dias e... todas as noites. É justo! Um título arrasta consigo responsabilidade, obrigações e... insónias. Ainda se arrastasse tesouros...
Só falta pedirem-nos uma grelha com objectivos, conteúdos, actividades, materiais/suportes - aqui até mesmo a imaginação mais criativa, penso, terá alguma dificuldade de renovação - e calendarização sempre que um de nós necessitar de ir ao WC. Seremos uns sortudos se, na tal grelha, não constar - AVALIAÇÃO!
Perdoem-me o desabafo, mas dá mesmo vontade de perguntar - com tanta papelada, tanta reunião, tanta comissão - é sempre prova de excelência fazer, pelo menos, parte de duas - tanta tolice, tanto desconcerto, onde fica o tempo para sermos, na verdadeira acepção da palavra, professores?!
Alguém saberá, por acaso, responder a esta duvidazita de uma professora não excelente e não titular?

AMS

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Felicidades

Roda de amigos
Sem terem pressa
Junto comigo;
Ver os parentes
Numa conversa
Rindo contentes,
São, na verdade,
Felicidades!

Jantar a mesa,
Uma bebida,
A sobremesa;
Uma canção
Que nos reviva
Uma emoção,
São, na verdade,
Felicidades!

Campos em flores;
Poder do mar;
Mundo de cores;
E, finalmente,
Poder amar
O amor da gente,
São, na verdade,
Felicidades!

Felicidade
Não tem idade
E nem tem hora.
Que tal agora?

Roberto Policiano

domingo, janeiro 14, 2007

Frivolidades... ou talvez não...

Que mulher não gosta de passar umas horas num instituto de beleza, alimentando o ego, desabafando, levedando tricas e dicas e, finalmente, emergindo com uma nova aura, brilhante e auspiciosa?! Todas. O salão de beleza funciona como uma espécie de templo sagrado e não é apenas uma questão de moda, acreditem. Se para os homens o futebol é uma espécie de hiper-ventilador, já para o chamado sexo fraco a passagem pelo cabeleiro ou pela esteticista funciona como um recarregar de energias, um atalho infantil rumo a uma felicidade vaga e fugaz (sim, é como se contássemos a história do bandido a nós mesmas), uma espécie de termas purificadoras, relaxantes, duradouras qb. O certo é que, nestes locais de embelezamento e de fenómenos mais ou menos “metafísicos”, o tempo parece parar. Senão vejamos: entramos apressadas, com hora marcada no dentista, olhando, constante e ansiosamente, para o relógio como se a nossa cidade tivesse um tempo exacto para ser bombardeada e… zás, como por artes magicas - ou contágio fulminante - esquecemos, de imediato, os compromissos, “vestimos os coletes salva-vidas” , descarregamos os nós cegos atravessados na garganta, lemos as fofocas das revistas de coração, confessamo-nos aos profissionais atentos que nos aturam há séculos – a nós, às nossas mães, às nossas filhas, às nossas amigas…. - e, quando nos apercebemos, já passaram três horas - no mínimo - o dentista já era e a cidade poderia ter sido completamente destruída que nada, mesmo nada, nos faria sair daquela terapia a favor da auto-estima. É uma defesa natural, podem crer! Sem ela, está provado cientificamente, o nosso equilíbrio seria minado e tornar-nos-íamos umas psicóticas em regime de voluntariado.
Na última vez que visitei um desses maravilhosos locais, apressadíssima, descontente pelo facto da menina Dolores - prometi que colocava quatro vezes o nome dela, nesta croniqueta, para fins publicitários - ainda não ter“terminado” - não, não disse exterminado - a cliente das 15h, reparei num vulto - outra alma apressada, concluí - que passou, seráfico e fugaz, pela sala de espera. Aquela cara não me é estranha - dei comigo a reflectir. Contudo, nem tive tempo para fazer "sair" o comissário Maigret que existe em todas nós. Pode entrar. Isto hoje atrasou-se. A cliente das 16.30 já está aí - explicou a menina Dolores ( vá lá, ela merece mesmo a publicidade).
Entrei, preparei-me para uma sessão capaz de fazer inveja aos carrascos do Santo Ofício - não entro em pormenores - quando, subitamente, ouço - É ela, pode crer. Também é professora e tem esse nome, sim.
Olho para a porta e… ei-la, a minha amiga e colega. Há quanto tempo! Beijinhos. Que bom ver-te por aqui. Como o mundo é pequeno. Como estás? Onde estás? Já sabias que… Nem me contes… Bem, é escusado tanto blá-blá-blá para se adivinhar a continuação da cena.
Menina Dolores - e já vão três - pode atender a cliente que estava depois de mim. Não me importo. E não me importei mesmo.
A minha amiga - tão apressada quanto eu, pois tinha a filha à espera - passou comigo para uma outra sala e, num curso intensivo, mas altamente profícuo, revivemos tempos passados, familiares, amigos, colegas e tudo o mais que duas mulheres cultas, versáteis - e modestas - são capazes de abranger.
A certa altura, o telemóvel dela tocou. Era a filha, claro. A pobrezinha, cansada de esperar, tentava descobrir o que tinha acontecido. Nada. A mãe vai já. Aliás, já estava de saída. Um “pequenino” atraso.
Beijinhos. Cumprimentos. Adorei ver-te. Que pena estar com pressa. Bem, vou despedir-me da menina Dolores... - e vão quatro!
Resultado: quando a minha amiga saiu, dei-me conta que estava envolta num lençol e… cheia de pressa!


Zé, estou a imaginar a tua cara ao ler este textito. Que frivolidades! Mulheres! - pensarás, abanando três vezes ( sinal de sabedoria, não é assim?) a cabeça. E pensarás bem. Apenas queria acrescentar um pequeno detalhe - a minha amiga, aquela bonita senhora de olhos grandes e esverdeados, fez um levíssimo reparo que talvez te interesse. Passo a citar -“O meu marido, ultimamente, com a mania da Internet, vê lá tu, ainda não arranjou tempo para arrumar a papelada do escritório…”
Será, amigo Zé Almeida, que este desabafo soa um nadinha familiar? Não? De certeza? E se eu acrescentar que ela tem uma filha igualzinha à tua? Não. Decididamente, meu amigo, não é clonagem!
Somos todas iguais, não é o velho slogan? Frívolas! Exageradas! Excêntricas!
Mas temos o encanto da Mary Poppins - digo eu. Se estavam à espera que dissesse que era o encanto da Mona Lisa... enganaram-se! Tornei-me uma céptica compulsiva desde que li que aquele sorriso enigmático e famoso pertencia, afinal, a um homem. O que um instituto de beleza não é capaz de fazer!


AMS

"navego em centro aberto, o olhar e o sonho" - Ramos Rosa

Não conseguia distinguir-se dos outros. Bênção? Maldição? Tal estado de não-identidade começara a corroê-la. Acabaria por destroçá-la - estava certa. Sentia-se monocórdica. Vazia. Incapaz de exprimir dor ou mágoa, alegria ou qualquer outro sentimento. Apenas uma tristeza abjecta que a levava a não acreditar na vida. Em si mesma. Forçando-a a reconhecer que não podia chamar de vida àquele estado de letargia, de indiferença, de absoluta renúncia. Primeiro vieram os medos. Depois, o choro que tentava reprimir para não ter de ouvir verdades. Não receava as mentiras, mas temia as verdades. De seguida, a ansiedade infiltrara-se, não a deixando dormir. Noite após noite. Arrastando-a até à exaustão, à incapacidade de suportar o mínimo ruído. Impedindo-a de se agarrar às pequenas coisas que lhe suportavam o escuro onde se deixara cair. A leitura e a escrita deixaram de ser o prazer que, supostamente, deveriam ser. Uma espécie de âncora que alicerçava um pouco o seu constante à deriva. Era estranho pensar que até os amigos tinham deixado de fazer sentido. Ou seria que já não conseguia aperceber-se dos sorrisos e dos (a)braços que a norteavam?!
Ia caindo, lentamente, no fundo. Vivia em função de um único desejo - dormir. Esquecer. Esquecer-se. A vida resumia-se a uma fuga incontrolável ao sentir. Quando a família ou os amigos lhe perguntavam o porquê daquele deserto, a resposta era, invariavelmente, a mesma - só quero dormir. Estar acordada era lembrar. Lembrar, como escrevera Baudelaire, era apenas uma nova forma de sofrer. Mas até o sono, ironicamente, fugia ao seu controlo.
E os dias eram passados numa sonolência que lhe afunilava o real. Que lhe roubava as palavras. Até a vontade de pedir ajuda. As noites, essas, eram de uma lucidez cruel, como se fosse invadida por centenas de objectos cortantes que lhe laceravam o corpo e a alma. Quanto tempo seria possível sobreviver, já que a vida parecia negar-se? - perguntava-se.
Não sabia explicar o como nem o porquê, mas o certo é que se decidira, finalmente, a escrever o tal cartaz com letras garrafais - Preciso de ajuda! Preciso de luz e de espaço. É urgente fugir dos silêncios onde me refugio, voltar a entoar a canção mansa, pacificadora do ser que me habita.
Não tinha sido fácil. Às vezes, ainda tropeçava nas pedras que, inconscientemente, colocava no seu percurso. As conversas com o médico - uma espécie de peregrinação interior que lhe permitira, pouco a pouco, sem truques, descortinar-se no vago e no impreciso; a medicação - tão forte, inicialmente, que ela chegara a rejeitá-la, a receá-la; o apoio permanente da família e dos amigos, mas, sobretudo, a vontade de se definir como pessoa sem o terror constante da perda e do vazio, tudo tinha contribuído para que, milímetro a milímetro, a sua existência se preenchesse, novamente, de sentido. Sem atenuantes . Sem acusações. Sem desculpas retorcidas. Sem virar, cobardemente, as costas. Sem marcha-atrás.
Não, não tinha sido um passe de magia. Experimentara o horror de andar em círculos, não vislumbrando saída daquele enorme labirinto; sentira o torpor que a impedia de agir depois de ter encontrado o que procurava - o regresso a si; quase se desmorenara de tanto selar a alma.
A ideia de que passara pelo inferno, mas não ficara lá - enchia-a de orgulho. Talvez fosse essa a razão que a levava a não omitir a palavra d e p r e s s ã o. Interessava-lhe pouco que os outros se inteirassem da sua fraqueza. Da sua doença - não havia razão para escamotear os factos. O preconceito era prova irrefutável do engano cego e da pequenez de alguns. Era bom voltar a enfrentar-se com a sua vulnerabilidade. A sua força. Vencera. A prova estava ali: enquanto se arranjava ia cantarolando. Há meses - anos? - que perdera esse hábito. Essa confiança descontraída que era, simultaneamente, um desafio. Sabia, agora, que há milhares de ratoeiras ao longo do caminho que ousarmos percorrer. Já não a afligia a ideia de que o equilíbrio pode desajustar-se a qualquer momento - ainda mais se descurámos os seus alicerces. Passara a aceitar, sem desassossego, a certeza de que a segurança nunca é absoluta, mesmo que nos escudemos com todas as precauções. Percebia, finalmente, que desistir é sempre pior do que morrer. É espaço fechado de nada. É olhar-se ao espelho e não se ver. É passar ao lado de lado nenhum.
Ela, porém, ainda não esgotara o sonho de chegar ao lugar que lhe cabia por direito.

AMS

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Encruzilhadas

Voltei a lembrar-me de ti. De nós. Da nossa infância, como se ela pudesse ser vivida e revivida sem fim. Não pode. É apenas uma palavra. Simples. Gasta. De todos os dias.
Que nos aconteceu? Onde , quando, como perdemos o afecto que nos ligava? A humildade e a emoção de saber que podíamos contar um com o outro? Quem foi o primeiro a “matar” o outro? A desligar o que nos unia para o resto das nossas vidas? Não existe virtude na bondade se ela assenta num interesse subjacente. Se ela funciona como moeda de troca, isenta de qualquer preocupação afectiva.
Não, não pretendo excluir-me da culpa que me cabe. Além disso, começo a duvidar cada vez mais das minhas apreciações. Dos meus juízos. Dos meus valores. Dou-te a vantagem de uma perspectiva diferente. Talvez tenhas razão - não podemos falar de decência ao falarmos de coisas. Abaixo os motivos altruístas! Entre o bem e o mal, quando se trata de investimentos materiais, não há parâmetros exactos. Ou, se os há, são puro desperdício. Predadores e vítimas confundem-se. A nossa dignidade é uma coisa extremamente frágil, começo a concordar contigo. Se, outrora, eu pensasse assim, talvez não me tivesses excluído da tua vida, talvez não me sentisse tão empobrecida afectivamente. Talvez não me banhasse nesta tristeza, que nada tem a ver com ciúmes ou inveja, e que é tanto mais íntima quanto universal. Talvez eu pudesse ter esquecido que hoje fazes anos. Não esqueci. Apesar de tudo, ainda não consegui entrar no mecanismo do jogo das relações humanas. Porém, aplicar considerações morais a toda esta situação seria mais um equívoco. Não consigo desculpar o teu comportamento, mas também não consigo entender o meu. Sob todos os ângulos, começo a perceber que a razão do nosso afastamento tem a ver com uma premissa muito simples - não sabemos amar. Não sabemos perdoar. Esquecemos, ambos, o sentido da vida.
Tu continuarás a sentir um orgulho paradoxal na superioridade da tua vontade sobre o coração. A tua vida continuará tão tépida quanto os teus sentimentos. Eu continuarei a entabular comigo mesma o negócio dos arrependimentos, perdida, miseravelmente, num comportamento standartizado, estranho e irrespondível. Ambos nos declaramos o direito de ser e de estar. Sós. Irremediavelmente sós.
Parabéns, Paulo.

AMS

terça-feira, janeiro 09, 2007

Na ilha Tartaruga

A praia que descobri tem um fundo azul! É lá longe, na ilha Tartaruga, mas não está deserta! Está cheia de palavras, palavras simples e frondosas, palavras que servem para aquecer os rostos da monotonia, da vida, quem sabe? Sento-me (imagino...) na cadeira improvisada, feita de ramos esquecidos pelas ondas da praia e olho à minha volta, olho o horizonte e não vejo o barco salvador, nem ouço o ruído da aeronave que me procura ( julga que estou perdido!!!). Só vejo rostos, só vejo palavras sobre o fundo azul, só vejo os amigos, é tudo o que tenho, é tudo o que preciso, lá longe na Ilha Tartaruga!!! Bom ano 2007!

MC (Eudevolta)

nada é

tudo é cruelmente curto
a vida o amor
até a noite
que se escapa
sonâmbula de sombras
mas o amor e a vida
vivem a ilusória mentira
de que o tempo é longo

AMS

segunda-feira, janeiro 08, 2007

O Estranho Caso do Corvo Desaparecido

Como estamos em época de Carnaval e ninguém leva a mal - digo eu… - resolvi vestir-me de Agatha Christie. Que me perdoem os admiradores da grande escritora. Pelo menos, segui uma das suas grandes regras: o narrador - neste caso narradora - não é o assassino.
Por que motivo escolhi o grande, o empedernido - e vaidoso - Hercule Poirot em vez de dar protagonismo a Miss Marple, a perspicaz e mexeriqueira velhinha? Elementar, caros leitores, elementar … Porque sou contra as cotas. Refiro-me às leis das cotas, claro.

Monsieur Poirot detestava ser interrompido às refeições. Monsieur Poirot tinha tanto de arguto, inteligente e intuitivo… como de amante da boa mesa. A sua gula era quase proporcional à sua inteligência.
Enquanto se deleitava com um “frugal” pequeno-almoço, ia deixando as suas preciosas células cinzentas analisarem o insólito facto ocorrido, na noite anterior.
O caso era realmente bizarro. O corvo da Senhora Vicente - um animal raríssimo, atendendo à sua cor azul - esfumara-se misteriosamente. A dona, uma excêntrica milionária, estava desolada, quase em estado de choque. A ave era a sua coqueluche, uma espécie de petit-ami e o seu desaparecimento tornara-se um verdadeiro enigma, uma catástrofe semelhante ao naufrágio do Titanic.
M. Poirot tinha interrogado os criados, o motorista e, finalmente, o cônjuge - um homem tímido, baixo, lacónico como um espartano - e, aparentemente, nada concluira. O mordomo escapara à investigação, dado que a narradora decidiu mandá-lo de férias para uma colónia do Inatel a fim de evitar que os leigos leitores de literatura policial tropeçassem, logo após as primeiras linhas, na habitual e errónea premissa - o mordomo é sempre o criminoso! Excluída a hipótese de rapto ou roubo - não é normal os ladrões/raptores “apaixonarem-se” por necrófagos - restava-lhe deduzir que se tratara de um crime violento... quiçá passional. Aliás, o seu instinto apurado de “caçador”, dava-lhe a quase certeza de que o corvídeo fora alvo de um ódio feroz.
Quem cometera o crime?
Hercule Poirot ia analisando os factos enquanto se deliciava com uma tarte de queijo e ananás cujo molho, de quando em vez, vinha acariciar o seu famoso bigode.

1 – Segundo o depoimento dos criados, o corvo grasnava toda a noite, e o que soava a maviosa sinfonia aos ouvidos da dona, começava a tornar-se um verdadeiro suplício de Tântalo para os restantes habitantes da casa.

2 – Era intrigante o facto de ter encontrado, no escritório do marido, tanto material relacionado com corvos. A citar: o filme “The Births” de Hitchcok; o filme “The Crow” de Edward R. Pressmam; a obra “The Raven” de Edgar A. Poe e o livro “Livre-se dos Corvos” do professor Marins.

3 – A dona da casa tinha recebido, nos últimos tempos, vários e-mails. Todos continham a seguinte mensagem: “Cuidado! O vingador está perto! As bruxas como tu perpetuam a sua imagem com um corvo. O teu está, estrategicamente, colocado para tudo espiar, tudo observar, mas Satanás não vencerá”.

4 – O senhor Vicente adquirira o hábito de passar horas e horas ligado à net. Fuga ao grasnar do corvo? Fuga ao grasnar da mulher?

5 – As respostas reservadas do marido tinham, no entanto, levado o grande Hercule a mais duas eventuais culpadas. De acordo com as declarações do senhor Vicente, as horas gastas no pc - nada de política, certo? O Jerónimo de Sousa não entra nesta história! - eram motivadas pela sua paixão recente por línguas. Assim, andava a aprender chinês com uma lisboeta e já ia arranhando um pouco de russo graças aos ensinamentos de uma nativa do norte.

6 – O macabro achado encontrado num livro de poesia, na biblioteca - uma pena de um negro azulado - marcando esta citação - “ Estão todos mortos, só ainda não sabem!”.

Hercule Poirot levantou-se da mesa (não sem antes ter refrescado e retocado o inestimável bigode), pegou no chapéu e dirigiu-se à mansão dos Vicente. Enquanto subia a escadaria de mármore, as suas células faiscavam. Desvendara o mistério. Já sabia quem era o assassino. A sua argúcia, a sua acutilante inteligência tinham encontrado a solução para o caso do corvo desaparecido.
A verdade estivera sempre à sua frente. O instinto nunca o enganava. O que é, afinal, o instinto? - dissertava o mestre do crime, maldizendo os cem degraus da escadaria e a sua proeminente barriga. O Instinto era, tão-somente, a inteligência natural e inata que nele brotava de nascente fértil. Quando o alarme tocou pela primeira vez, no seu cérebro, a dúvida instalara-se. Mas monsieur Poirot sabia que era um erro capital teorizar antes da obtenção de dados (aqui a narradora está a meter água, pois parece que quem pensava deste modo era Sherlock Holmes. Adiante...). Na noite anterior, quando percorria a casa onde habitara o malogrado corvo, reparara, ao entrar, por engano, na cozinha, que havia restos de ossos de ave na baixela de prata. A cozinheira tentara, imediatamente, ocultar as sobras do jantar, mas o seu olhar vivo e penetrante de águia - águia no sentido generalizado, caro leitor. Não sonhe… Até podia ser um olhar de leão, mas a narradora, mais uma vez, demonstra ser outra nulidade em questões de aves e felinos … - não deixara escapar aquela indício.
Quem matara o corvo? Linearmente simples. Elementar. Elementar ( lá volta a narradora a dar prova de uma ignorância total sobre detectives). A cozinheira! Sim, a cozinheira! Farta de preparar, três vezes ao dia, ovos, caracóis e cereais para o bicho; receosa - atendendo à fama de trapaceiro e fofoqueiro - do grasnar vigilante e soturno do animal; temerosa, tendo em conta a má reputação da ave, que esta, por artes demoníacas, contasse à patroa as suas visitas frequentes à garrafeira, resolvera, num acto de desespero e sobrevivência, imolar o corvo. Para evitar suspeitas e fazer desaparecer o mínimo vestígio do desgraçado, depenara-o, temperara-o e fizera um assado divinal que todos elogiaram e deglutiram ( talvez o verbo “deglutir” não seja o mais apropriado. Contudo, mais uma vez se constata a incompetência da narradora que não encontrou outro mais apropriado para “rimar” com baixela de prata e escadaria em mármore).
É o que se chama - pensou Hercule Poirot, no cimo da majestosa escadaria - comer corvo à frango na púcara!

Nota: A autora dedica este primeiro - e último - conto policial a todos os corvos do mundo, em especial aos azuis, mais raros e valiosos.
Agradece, também, ao professor Marins os preciosos conhecimentos adquiridos na sua famosíssima obra “ Livre-se dos Corvos”.
A todos - pausa para verter uma lagrimita - um abraço do tamanho do tempo que demorou a escrever esta “pérola” da literatura universal.

AMS

O prazer é todo meu

A escolha era simples: abrir ou não o abrir o cartão. A intuição - e a experiência - diziam-lhe que mandasse às urtigas aquelas melosas palavra, jogando pelo seguro. A curiosidade, porém, parecia que, a qualquer momento, cederia às investidas do imprevisto. Ninguém é perfeito, ora.
Voltou a reler a mensagem. Se fosse ela a escrevê-la, pensou, teria evitado o barroquismo das repetições, não recomendaria o “você”, substituiria o tom dramático por qualquer coisa de mais actual - um texto rap? - e, acima de tudo, não menosprezaria a inteligência do alvo a abater.
Mais tarde ou mais cedo, seria obrigada a decidir-se. Adorava enigmas anémicos, daqueles que precisam de um pouco de mar e de sol, mas, por outro lado, o peso da desfaçatez pesava muito. Tolerância zero, recomendava a sua intuição feminina. A vida precisa de velocidade, não de pacatas resignações ordenava-lhe a curiosidade, inscrita, certamente, numa qualquer sociedade recreativa. Venceu a intuição.
Num cantinho do seu coração - um tanto murcho - sentia a amarga decepção da renúncia. Não abrir a “carta” era um tormento intolerável para o seu ego. Um buraco demasiado estreito para o seu tédio cósmico. Mas, pensando bem, as grandes comédias também nascem assim - com uma grande e sofrida dor artística.
Ou comigo ou contra mim, recitou - em jeito de salmo fúnebre - enquanto o rato se dirigia, pesarosamente, rumo a “excluir”.
Já não há apaixonados como os de antigamente: lira debaixo do braço e voz de querubim envenenado com raticida.

AMS

sábado, janeiro 06, 2007

A doçura do frágil

Entrar num hospital, onde, por vezes, Deus parece demasiado alto e ausente, é uma espécie de encontro com as linhas da vida e da morte. Tão subjectiva e ilusória a fronteira que as separa. Tão pouca a distância entre esperanças e descrenças, dúvidas e certezas. Tão frágil o fio que nos sustenta. Tão supérfluos os temores, o fogo-fátuo, a crueza do gesto, os rios de silêncio face ao que nos transcende.
Confrontei-me, ontem, ao visitá-la, com um emaranhado de dúvidas, interrogações, debilidades latentes que me confrangem e desnorteiam. Não é possível repetir o irrepetível, sei-o. Contudo, essa atitude face a uma doença que, inexoravelmente, a condena, essa serena lucidez perante o confronto - que cremos sempre antecipado - com a morte, desconcertaram-me. Confesso, com alguma amargura, que receio não ter essa íntima e plena certeza quando me confrontar com as brumas que ateiam a ausência, o esquecimento, o nada. Não possuo essa grandeza maior perante o destino que deve cumprir-me. Essa capacidade de me elevar, assumindo a minha pequenez. Essa tranquila disponibilidade para a verdade única de que somos detentores.
Seja o que Deus quiser! - disse-me, no final da visita. Vão operar-me, terça-feira, e só tenho um pedido a fazer-lhe - reze por mim!
Rezarei, Fátima.

AMS

quinta-feira, janeiro 04, 2007

melhor do que acordar... é voltar a adormecer

Este texto foi escrito em 2002. Precisamente, no final do ano. Achei piada colocá-lo aqui por duas razões:

1º Não cumpri praticamente nada do que me propus fazer!

2º As relíquias costumam ser valiosas, não?

Assim sendo, eis o "testamento", mas com algumas alterações. É difícil ser razoavelmente coerente...

MELHOR DO QUE DESPERTAR... É VOLTAR A ADORMECER!

Acordei cheia de boas intenções.
De vez em quando sou atacada por uma virose do tipo "boa samaritana" e... zás, sinto-me uma nova versão da Madre Teresa.
É pena ser sol que pouco dure. Mas com o frio ( no texto inicial era chuva) que nos "acaricia", as boas intenções dão, rapidamente, "às de Vila Diogo".
Continuando com os doces pensamentos que me invadem na macieza quente da cama - maldito frio que me faz lembrar, viperinamente, o artigo 102 - resolvo pôr em prática uma data de decisões que irão mudar, radicalmente, a minha vida e a dos outros.
E começo a lista - bem longa - e que passo a citar:

-Poupar mais e não desperdiçar dinheiro.
-Ser mais confiante.
-Ser mais simpática e ajudar sempre os outros.
-Levantar-me cedo.
-Ir mais vezes ao ginásio.
-Resistir, estoicamente, a todo o tipo de tentações.

E a lista continua longa...
Ora bolas! Enquanto preparava a minha entrada no céu, esqueci-me completamente das horas. Lá se vai a primeira manhã de trabalho de um novo ano...
Uh! Não consigo enfrentar a ideia de recomeçar a trabalhar. Como é errado e injusto que o período natalício com os seus desgastantes e sedutores desafios financeiros, as suas luzes diáfanas, o seu doce e melódico espírito de paz e cálida suavidade, primeiro, nos seja quase imposto e, depois, nos seja arrancado à bruta, logo quando começamos a alinhar.
O melhor disto tudo é que amanhã - isto é outra das sábias decisões tomadas neste início do ano 2003 - vou começar um novo regime espartano de saúde e beleza. E emergirei, qual fénix, com uma figura bela e purificadora, tipo Michelle Pfeiffer.
Como ser mulher é complicado. Ora vejamos: pernas a depilar, pele a exfoliar e hidratar, borbulhas a limpar, abdominais a exercitar... Com tudo isto, ainda acham que é para admirar que sejamos tão inseguras!!!
Melhor ir à cozinha e comer uma fatia de bolo - afinal, a dieta só começa amanhã...
Irra! Agora é a campainha da porta que não pára de tocar. Apetece-me dizer um palavrão, mas limito-me a fingir que não estou e que, qual abelha trabalhadora e cumpridora, já há muito me encontro na azáfama do meu trabalho.
Decididamente, com tanto frio, o mais lógico e aprazível é aceitar o convite do "102" e voltar para os braços de Morfeu (disse Morfeu, a figura mitológica... pois...).
Grrr... Espero mesmo não sonhar com as decisões grandiosas que irei tomar no próximo ano...

AMS

quarta-feira, janeiro 03, 2007

A Senhora Directora

Será melhor esclarecer, a priori, que vamos entrar no reino da ficção. A personagem que vou descrever não existe (pelo menos que eu saiba) e qualquer semelhança com a realidade, bem, é isso mesmo… mera semelhança, pura coincidência.
Partindo, pois, desta premissa - a de tudo a fingir - resvalemos para o campo da descrição. Há que dar um corpo e uma alma a esta heroína, que essa treta de geometria - perdão, protagonista! - no espaço é apenas para mentes brilhantes. Estatura média, cabelo ruivo-alaranjado (por que motivo a partir dos quarenta as mulheres ficam quase todas ruivas ou louras?! ), roliça (gorda é um adjectivo pouco acolhedor), estrábica (longe de ser um defeito é algo dinâmico e enigmático) esperta (aqui merecia letras maiúsculas), inteligente q.b., narcísica, mentirosa compulsiva (ai dos desprevenidos!), simpática até dizer chega ( como é difícil distinguir simpatia e hipocrisia), enfim, quase perfeita, muito in, muito bem, muito tudo.
Adora falar dos filhos. Isso não é mau, dirão. Não, não é. O problema é conseguirmos chegar à conclusão de que está a falar deles. Quem, por mais “olho de lince” que seja, consegue identificar as personagens deste discurso? - “O senhor doutor até foi convidado para membro do governo (grande coisa, ora! Íamos sendo todos, não?!); a senhora engenheira (de minas, pois então…) obteve (?) uma bolsa para estagiar nos Estados Unidos ( pacóvia! Ela devia era ir estagiar para o Iraque!); vou emprestar-lhe o manual (diga-se sebenta ) do senhor doutor… mas tenha cuidado, contém apontamentos exclusivos (Armani? Dior? É o que apetece, de imediato, perguntar).
Não há pachorra! Nem sequer tendo como coordenadas de tempo e de espaço o reino da fantasia. Dá vontade de assassinar a senhora directora pedagógica logo no inicio do ano lectivo, quero dizer, do primeiro capítulo - relembro que tudo isto é pura ficção.
Frenética, turbulenta (tomará “red bull”?), é a personificação do próprio trabalho (ou do que a palavra significa em Portugal, é bom de ver), exceptuando os seis os sete intervalos que faz para tomar café (juntamente com a secretária/assessora. Directora que se preze tem, pelo menos, uma) e que duram, em média, cerca de vinte a trinta minutos… Sim, que isto de ser directora pedagógica tem muito que se lhe diga, requer muito perfil e , sobretudo, uma grande lata… de protecção contra línguas viperinas como a minha (mais vale prevenir, porque pode mesmo existir uma qualquer directora pedagógica igualzinha a esta e…).
Enfim, sua excelência é a imagem ideal para tentar perceber o que deve acontecer no parlamento e nos gabinetes em S. Bento. Pelo menos, daquilo que eu imagino ser o trivial nesses locais, visto que, (in)felizmente, nunca tive um desses gabinetes, sou assessora de mim mesma e, a continuar a escrever croniquetas iguais a esta, plenas de heresias, a palavra nunca é o que prevejo para o meu futuro, sem precisar de carta astral.
Ela sai, entra, abre a porta, fecha a porta, pede “linha”, empata o “povo”, sorri, sorri muito, dá uma palavra a este, sorri, interrompe, dá outra palavra àquele, interrompe, sorri, atende uma chamada, vai dando ordens no entretanto - tempo é dinheiro - faz, desfaz, diz, contradiz, sorri, sorri muito, sorri sempre, e, orgulhosamente só, pensa - sem mim, seria a derrocada, o dilúvio, o apocalipse. Adorem-me. Venerem-me. Não, não é preciso rastejar… tanto… eu sou uma pessoa muito simples, muito frugal, muito EU!
A que propósito vem todo este paleio? Sei lá… Estava a reler “A Queda de um Anjo”, deliciando-me com as aventuras de um adorável e humano Calisto Elói, morgado da Agra, e da sua “donzela” e insípida Teodora, quando, subitamente, numa ambivalência de sugestão e imaginação, me vejo projectada para a folha de papel e, sem qualquer explicação lógica, pertinente, dou comigo a escrevinhar este texto, talvez com o único objectivo de provar que se pode escrever verdade a mentir.
Peço desculpa se, por ironia fatal do destino, as minhas palavras deixaram filtrar uma qualquer mesquinha e rancorosa intenção de visar um alvo em particular. Longe disso. A culpa deve-se a esta mísera e decrépita inspiração que me leva a inventar atrocidades tais.
Deus abençoe, com longa e próspera vida, as senhoras directoras pedagógicas do nosso país e… arredores.

AMS