quinta-feira, junho 29, 2006

saber ouvir o silêncio

Recordo-o com a doçura das coisas boas que passam pela vida. Aliás, creio que fui eu que passei pela dele. Acaso? Destino? Será irrelevante. O importante, aquilo que me levou a escrevinhar estas linhas, é que o pouco tempo que com ele contactei deu-me a fantástica possibilidade de conhecer um homem extremamente íntegro, culto, bondoso, fascinante, de uma sabedoria que só o tempo e o carácter desenvolvem e, acima de tudo, tolerante. Compreendia, como ninguém, que somos humanos e propensos ao erro. Sabia perdoar e esquecer… coisa rara. Talvez a única coisa que o irritasse solenemente fosse o que ele, ironicamente, apelidava de “gente com miolos de passarinho”. Irritava-o que “borboletassem” à sua volta pessoas sem cérebro, daquelas que, raramente, se dão ao trabalho de pensar e que não passam de meros papagaios repetitivos e fastidiosos. Irritava-o a futilidade de alguns, sempre em voos rasantes de artificialismo, vaidade, cegueira e verniz. E, no entanto, percebia-se que a fragilidade do ser humano o comovia.
Foi um avó diferente. Não me recordo que pegasse em mim ao colo, me mimasse ou, atendendo ao facto de eu ser a única neta do sexo feminino, me tratasse de modo menos justo ou mais piegas. Mas a sua presença era atenta e foi a primeira pessoa a colocar-me um livro na mão. Nada lhe escapava, Quantas vezes, sentado no banco de pedra do jardim, vendo-me rondar, sorrateiramente, cofiava o bigode, sorria e acenava para que me aproximasse.
- Está ocupado, avô? - era a pergunta habitual, enquanto me sentava também no banco, aguardando as suas palavras.
- Não, Ana. Estou a sentir a vida. É bom poder parar para observar o que nos cerca , recusando uma visão uniformizante das coisas. Já fizeste os deveres da escola?
- Já, já! - e imitava os seus gestos, a sua observação, o seu recolhimento. Diga-se, em abono da verdade, que a “tal visão uniformizante das coisas” escapava ao meu vocabulário e ao meu parco conhecimento. Havia, contudo, uma cumplicidade que nos aproximava, que nos aproximou sempre e que, ainda hoje, não consigo definir nem explicar.
- Que estás tu a ver, pequena? Diz-me o que vês…
- Os campos, o pomar, o tanque, lá ao fundo, o carreiro que leva às vinhas, o “Zarolho" - era o cão fiel que o acompanhava para todo o lado e cujo nome, na altura, em nada despertava a minha atenção. Mais tarde, vim a saber que o “Zarolho” era afinal um falso zarolho e que fora baptizado com aquele nome “em honra” de um antigo feitor. Esse, sim, cego de um olho, devido a uma rixa com ciganos no arraial de Nossa Senhora dos Remédios.
- Aprende a sentir o cheiro da terra, o murmúrio das folhas, o canto da água que cai no tanque. Aprende a ouvir o silêncio. Sabes ouvir o silêncio das coisas?
Eu cerrava, com toda força, os olhos e tentava, desesperadamente, ouvir o tal silêncio.
- Abre os olhos, menina. A vida é para ser encarada de olhos bem abertos e atentos. Sem indecisões. A linguagem do silêncio é fácil de captar. Basta deixar o coração prendê-lo. Porém, a maioria das pessoas não gosta de o ouvir, porque ele funciona como uma espécie de confessionário, percebes? Raramente, as pessoas gostam de reconhecer-se no que o silêncio lhes diz e preferem atordoar-se com palavras desprovidas de significado e verdade. Mas o tempo encarrega-se, mais cedo ou mais tarde, de lhes mostrar que o silêncio está cheio de surpresas e quanto melhor o percebermos mais expressivo e rigoroso é...
- Avô, tu ficaste mais amigo do silêncio desde que a avó morreu, não foi?
As minhas palavras perturbaram-no. A figura do meu avô estremeceu. “Zarolho”, com a cumplicidade dos velhos companheiros, arrebitou uma orelha e pareceu suspenso da resposta do dono.
- Sim, tens toda a razão. Tornei-me mais amigo do silêncio, porque, desse modo, converso melhor com a avó. Sem lonjuras. Sem achar estranho que a vida continue e os dias passem, inexoravelmente…
- Avô, para onde vão os dias que passam?
Uma gargalhada sonora pôs termo ao silêncio do silêncio.
- Querem ver que me saiu uma neta filósofa?! Hum… para onde vão os dias que passam? Agora é que a menina Ana deixou o avô baralhado. Para onde vão os dias que passam?... Os dias não passam. Os dias repetem-se. Nós é que passamos. Mas como fazer-te entender a efemeridade da vida, menina?! Lembras-te daquela fotografia que está no meu quarto?
- A do seu casamento, avô?
- Essa. De que cor eram os meus cabelos na fotografia?
- Pretos.
- De que cor são agora?
- Brancos.
- Onde está a avó da fotografia?
- Morreu, avô!
- Percebes, agora, o que quis dizer quando te expliquei que somos nós que passamos?!

Percebo, avô! Não percebi muito bem na altura, mas percebo, agora. E também percebo como é importante saber ouvir o silêncio. Foi porque o estive a ouvir… que consegui reviver as nossas conversas e escrever este texto.

AMS

quarta-feira, junho 28, 2006

Reportagem interior

Sou eu que, frequentemente, procuro a solidão. Gosto de deixar a mente vaguear, livremente, por paisagens já visitadas ou por trilhos ainda não percorridos, mas sempre sonhados por loucos ou visionários.
Há nesta revisitação/interiorização uma espécie de inocência – ignorância? – e desejo de tornar cristalino o que, em contextos quotidianos, se apresenta complexo e opaco.
Assim, eu e a solidão estamos irremediavelmente comprometidas uma com a outra. Confio nela. Ela é digna dessa confiança. Protege-me, projectando um pouco da sua impermeabilidade a uma certa sensação de exílio que experimento, não raras vezes, no território amorfo dos laços e afectos sociais.
Talvez a minha natureza contenha recessos sombrios que me obrigam a viver a vida postumamente, com um profundo sentimento de renúncia e perda. Talvez, por uma estranha ironia do destino, tente, em vão, retornar às origens devido a uma forte necessidade de amparo que, por vergonha, tento ocultar. A verdade, neste caso, não é propriamente bem-vinda. Sê-lo-á alguma vez?
A minha educação foi sempre direccionada em termos de pecado e castigo, virtude e recompensa. Fui demasiado doutrinada nestes “dogmas” para os poder ignorar ou colocar, deliberadamente, de lado. Gostava de ser imune ao tormento da presença das consciências alheias. Não me basta a minha, fardo pesado, sempre cheia de remorsos, insegura e diminuída?
Digo-me vezes sem conta – tens de te livrar de tudo isso! O que foi jamais voltará. E se aguardas que, por artes mágicas, a prisioneira em que te tornaste encontre a liberdade, uma vida sem instruções, um antídoto que faça desaparecer essa enorme domesticidade… mais vale continuares a condoer-te de ti mesma, admitindo que nunca agirás de outra forma.
Como é difícil reconciliar sentimentos de lealdade, obrigação e gratidão com a angústia proveniente da clara confirmação de que o que temos não é suficiente?
Cerro os olhos para ver melhor. Mas o que vejo, se me ouso a mais divagações, é sempre o retrato do contrário do que pretendo mostrar-me.


AMS

terça-feira, junho 27, 2006

Era uma vez...


Era uma vez... começa assim a história,
Uma princesa, num reino distante...
Era uma vez... acode-me à memória
A lenda, a magia, o fascínio constante.

Era uma vez... relembro com enleio,
Um príncipe audaz, forte, valoroso,
Procurando o amor com persistente anseio,
Por desertos, por sóis, num gesto impetuoso.

E a história continua num eterno divagar...
O príncipe? A princesa? Que mais posso contar,
Presa na teia indefinida da emoção?!

A busca terminou? Não há final feliz?!
Esqueci... ou o relato não nos diz
Que o amor nunca apareceu. Era pura ilusão.

AMS

segunda-feira, junho 26, 2006

Não digas nada

Podia dar-te um amor que fosse do tamanho da lembrança. É mais fácil destruir uma fotografia do que esquecer o rosto que regressa em sonhos.
Podia dar-te a esperança como se fosse a Primavera renovada de um silêncio a dois. É mais fácil destruir os vestígios do passado do que apagar a chama - mais forte que a vontade - sentida no coração.
Mas o amor rende-se à fuga.
Amanhã é outro dia - digo eu. Amanhã não é senão outro dia - dizes tu.
Tão urgente e breve o tempo. E o amor passando tão rente à vida. Tão rente a nós. Equivocando-nos. Desdenhando, obsceno, ao olhar-nos nos olhos. Projectando uma sombra mais nítida do que a da morte.
Sempre que me lembro de ti, recordo mais depressa os pequenos gestos do que os grandes momentos. Quando te lembras de mim, sinto que nunca perdes a venda que usas nos olhos. E o teu amor rende-se ao acaso. Quando o procuro, ele já contorna uma outra dobra do tempo. E os meus olhos rendem-se a um aceno de desgaste, esmorecimento, renúncia. E o meu amor rende-se à sede.
Não digas nada. Eu sei adivinhar. Sê o silêncio. No silêncio, eu ouço o sussurro da tua voz. E ainda que agarrando a inconsistência - sem um olhar, sem uma palavra, sem um abraço, sem um beijjo - a emoção é autêntica e, à força de se repetir, talvez seja, afinal, o teu olhar, o teu abraço, o teu beijo. O teu amor.


AMS

(VIVA PORTUGAL!)

domingo, junho 25, 2006

O nada que alicerça a alma

O peso das palavras é tremendo. O dos actos? Esse pode tornar inútil o ar que respiramos. Habituei-me, desde muito cedo, a aprender separação como quem soletra desapego. Ainda não me habituei, contudo, a este cá-para-lá da frieza, da lonjura, do gesto cortante, do fingimento de onde só os acorrentados à mesquinhez regressam incólumes.
No tempo em que as guerras se faziam com pedras – pedra era a luta.
Hoje é o tempo em que as pessoas se tornam esfingícas como pedras – pedra é o vazio. Algemas. Sombras colando-se ao silêncio.
Sei da distância que me separa dos outros. Sei da distância que me separa de mim. Conheço o frio dos afectos desencontrados. Conheço a ponte que une e corta o real do utópico. Funde-me a dor ardendo em memórias feridas. Fundem-me as fissuras de um coração destroçado. Penso no rosto transitório da vida. Acredito que a morte é o lugar mais próximo. A única verdade. A única certeza.
Vergada pela ar poluído da indiferença, da resignação, das águas paradas de consciências adormecidas ou inexistentes, dedilho até à exaustão das lágrimas a minha desfiguração. E, pouco a pouco, sem um laivo de emoção, emerge em mim uma estátua de pedra absorvendo o sopro da vida que eu fui.

Pedra é o nada que cria alicerces na alma.

AMS

sábado, junho 24, 2006

Porto sentido

Uma mancha cinzenta, rendida, cobre a cidade que, sonolenta - ainda presa ao sabor da voragem de vultos tão sem rumo na íntima loucura de debulhar a felicidade, abrindo-se à miragem de infinitas atracções - goza o silêncio merecido, depois de uma noite de euforia, onde a alegria pesou muito e as quimeras foram mais leves do que nuvens.
O Porto jaz, agora, indiferente ao fogo de mil sóis, às labaredas passageiras, aos amores frágeis encontrados à medida da solidão, às estrelas breves, já só lembrança.
A festa acabou. Desvaneceu-se em fumo, perdendo-se na memória da cidade embriagada de volátil ilusão, e onde, mais uma vez, o fascínio de doces enganos captou o sonho, fustigando a realidade.

Parece que só eu estou desperta. Só eu filtro, suspensa de tudo, esta nostalgia imprecisa que me alicia, que nem eu própria compreendo, mas incrivelmente bela, espraiando em poesia isso a que chamam vida.

AMS

Noite(s) do Porto

Mais uma noite com perfume a manjerico. Mais uma noite em que o Porto, desperto, respira com força ao lado das estrelas, embriagando-se de sonhos e ilusões. Há risos, cantares, música e um balão, lá longe, acenando que viver, hoje, é bom. Sê-lo-á amanhã? Para quê preocuparmo-nos? O importante não são as voltas que damos para encontrar o que procuramos. Nem sequer é importante o que encontramos. O segredo está na busca. No teimoso confronto entre o conformismo e os ideais. Por isso o balão sobe com a leveza de quem acrescenta uma outra luz à luz. E é assim que a noite do Porto se enche de grãos dourados polvilhando de alegria e sorrisos as almas que se misturam no espaço acolhedor da tristeza esquecida.
Observo o estremecimento das pequenas nuvens, enquanto, aqui e ali, o clarão do fogo-de-artifício atravessa a curva ilimitada do mistério da cidade que, mergulhada em vida, sobrevive ao deslizar firme do efémero.
Noite que aquieta a solidão. Noite sem clausura. Noite luminosa de um Porto sempre sentido bem no centro do coração das nostalgias e das esperanças.


AMS

quinta-feira, junho 22, 2006

Alguém se espera. Alguém me espera.

Não sei se este momento existe. É a escrita que o cria em termos de necessidade, de urgência, ou é a minha vontade que o persegue, caminho de luz abrindo ilusão, ondulando na vertigem do sonho?

Cada palavra é véspera de um lugar mais próximo. Uma voz palpitando encostada ao absoluto. Por isso, através da escrita, reduzo o infinito a uma espera. Do infinito pouco sei. Mas sei que as esperas se penduram na vida envoltas em nostalgia, desenhando gestos, confundindo-se com eles.

Não sei se este momento existe ou se é a última lembrança no espaço do meu tempo. Mas sei que há ausência que cresce presença, colocando a espera no local exacto dos sentimentos felizes, quentes, íntimos.

De que esperas é feito o caminho a percorrer até à plenitude do encontro?

AMS

quarta-feira, junho 21, 2006

Todos temos um rio na lembrança

Temos todos um rio na lembrança
e alguns é um rio inteiro
a sua vida.
Um rio que não seca
e não descansa.
E é uma força perdida
entre montanhas
de desconfiança.

Miguel Torga

segunda-feira, junho 19, 2006

Na "Terra do Nunca"

Umas horas diante do meu velho amigo mar. É o suficiente para apagar o culto das ruínas e a eterna e incessante busca de uma felicidade plastificada. Deixo de pensar no amor por carência, volto a acreditar na abundância de certos sentimentos, desnudo-me do cinismo e incredulidade em que quase todos estamos mergulhados... e vejo-a.

Não a pessoa que, inconscientemente, invento; vejo a mulher real, a que desperta em mim uma vaga melancolia, um desalento perdido num labirinto desordenado de imagens e ideias. Aquela que desleixa, quantas vezes, a voz do coração e, de certa forma, tem medo de viver... ou vive a meio gás. A vida passa, os comboios de "corda" param, mas ela não corre para os apanhar. Não quer? Não pode? Será que as calhas são para ela e não para eles? No fundo, há ainda uma voz que diz - "Corre, tens tempo. Corre!" - mas parece que há sempre um momento em que o tempo fica quieto - ou será ela que não se move? - e o comboio parte. É como se a vida fosse um constante corte de ligações, de razões, uma amputação permanente.
Um dia - já não recorda como, quando, nem a razão de lá ter ido - viajou até à Terra do Nunca. Uma espécie de paraíso da infância que nos afasta da dor, da mesquinhez do mundo, das pequenas lutas quotidianas, decerto difíceis, mas também susceptíveis de conquistas e prazeres reais. Nesse lugar não há tempo. Não há passado, presente... nem futuro. Só miragens. Sonhos. Alucinações. Na Terra do Nunca não interessam as respostas, porque não há perguntas. Não há sofrimento, porque não há vida. Não agimos, não vemos, não amamos. Imaginamos, apenas, que agimos, vemos e amamos. E é tão ténue a diferença, que a alma se deixa enganar, iludir. Estar na Terra do Nunca é estar em todo o lado e em parte alguma; é pensar que se pertence a todos e não pertencer a ninguém. É ver um mundo sem falhas, mas não lhe encontrar qualquer sentido.
E a mulher pensativa, inactiva, atordoada, lá continua sentada, num banco de estação, vendo os comboios partir. Será que ainda terá tempo de repensar o seu erro?


Ouço o som das ondas e aprendo com elas a sabedoria da existência. Como se cada segundo fosse o tempo todo. Aprendo, também, a dimensão do homem e a precaridade da vida. Não há fórmulas mágicas para se ser feliz. Há os momentos que soubermos aproveitar. E há amor. E há dor. Há um mundo de mil e uma imperfeições. E eu. E os outros. Todos amadores. Não vivemos o suficiente para sermos outra coisa, afirmou Charlot. A vida é aprendizagem . Cheia de factores que nos roubam, que nos limitam a capacidade de ver as coisas por si, em si. Que somos nós, então? Quase nada, pois falta-nos a humildade para reconhecer a nossa fragilidade. Quase tudo, porque mantemos a fé numa felicidade possível.
Umas horas diante do meu velho amigo mar. Que murmura que a vida ainda não acabou. Que é preciso dar tempo ao tempo. Reaprender a viver todos os dias. Ainda que cansados e cheios de dúvidas.

AMS

domingo, junho 18, 2006

Ribeira

Gosto da deambular pelo esquecimento
das velhas ruas da velha e sempre
eterna Ribeira, prenhe de vida, cheiro
a comida, palavrões, esplanadas de cerveja,
turistas, casas de pecado apelando ao paraíso,
restaurantes de boa fama para intelectuais baços
e poetas com halo respirando e inspirado-se
no Douro que, indiferente a esta amálgama, trespassa
o coração e os ossos com a sua alada neblina.
A Ribeira conta-nos sempre uma história
diferente: ora sórdida, de amores desencontrados,
enganados; ora dolente, gasta de sonhos por usar.
Gosto de deambular pela lenda sempre viva
da Ribeira e voar, como as gaivotas,
sobre as suas águas cintilantes de tragédia
e história, rosto do velho burgo que navega,
orgulhosamente, num barco rabelo, tendo à
proa a lealdade e nobreza da sua gente.

AMS

sexta-feira, junho 16, 2006

coisas simples


Numa esguia jarra de cristal,
Ergue-se uma rosa vermelha, acetinada,
De um perfume subtil, tão natural,
Que me quedo, junto dela, fascinada.

Não sei como explicar a natureza
Dessa essência que acalma, apazigua,
Como se o mundo se rendesse à singeleza
De uma paz indefinida, simples, nua.

E é tal a graça, tamanha a pureza
Debruando aquela jarra de cristal,
Que a vida parece florir em beleza
Harmónica, perfeita, universal.


AMS

quinta-feira, junho 15, 2006

Ítaca

O relógio bateu as onze horas. O ponteiro - que se movia a cada sexagésima parte do segundo - corria, alegremente. A sala, quase às escuras, de ar parado, parecia indiferente à temperatura amena que se fazia sentir lá fora e ao som de vozes que lhe vinham lembrar que era sábado. Estava, simultameamente, apreensiva e expectante. De vez em quando, ainda que contra a sua vontade, olhava o visor do telemóvel. Eram momentos intermitentes de possibilidade e de improbabilidade. Afinal, nunca se deve afirmar que se conhece alguém muito bem…
Por minutos, a realidade revestia-se de contornos felizes e ela acreditava que ele iria aparecer. Mas, de imediato, o receio tornava-se difícil de controlar.
Chopin fazia ouvir as suas mágoas num prelúdio para piano. Ela começava a sentir as suas. Começava, também, a ficar agitada. Há dois anos que aquela situação se arrastava. Dois anos é muito tempo a tentar encontrar certezas. Estava farta de representar o papel de mulher submissa, burra e cega. Uma presa fácil. Não. Estava a ser injusta. Os seus desencontros eram consequência do conforto desse engano com que ela pretendia vestir-se. Era ela que insistia em alimentar um amor desbotado. Sem força. Era ela que se esforçava por simular. Era ela a máscara.
Um dia acabará tudo – dizia-se uma e outra vez. Como quando era adolescente e sonhava chegar a Ítaca. Içaria as velas e rumaria ao porto de cada emoção, de cada sonho. Nesse tempo, só precisava de uma alma que cobrisse tudo de uma poalha de luz. Nesse tempo… Agora, Ítaca estava cada vez mais longe e inacessível. Um lugar perdido no tempo.
Subitamente, o toque do telemóvel trouxe para a ribalta a realidade. Era uma mensagem - "Queria dar-te os meus parabéns ainda hoje, mas não vou poder chegar a horas. Amanhã, festejaremos. Beijo".
“Amanhã, festejaremos.”… E com estas simples palavras levava com ele o seu presente e o seu futuro.
Em Ítaca, Penélope fechara para sempre o tear. A distância interior acabara por vencer a esperança.

AMS

quarta-feira, junho 14, 2006

Passou o tempo

Já não sei retomar inquieta
O voo inacabado do sonho

Já não sei escrever o teu nome
Nas esquinas impacientes da espera

Já não sei afirmar o desejo
Em metáforas frementes de paixão

Passou o tempo
Do tempo parado
Num poema cansado de esperar-te.

AMS

domingo, junho 11, 2006

Quase morte

O mundo está curvado ao peso de uma mediocridade com toque de tragédia. Estamos todos desassombrados, apáticos, indiferentes ao que nos rodeia. Tanta falta de escrúpulos. Tanta hipocrisia. Tanta falta ao dever e tanta entrega a um marasmo consciente que não oferece futuro. Tanto navegar pelas águas turvas do desencanto. Tanta falta de ternura nos olhos que nos cercam.
Os homens têm falta de sol. Já não sabem florir a vida. Têm medo. Todos têm medo e fogem. E os poetas que não nasceram já morreram, porque em cada rua, em cada olhar a solidão cresce mais confirmada. E o amor foi despejado na sarjeta a que se generalizou chamar lugar-comum.
Viva o egoísmo. O individualismo. Esta existência pacífica - e tão aclamada - que dá vergonha. Condecoremos os que se alimentam das nossas frustrações e da nossa cobardia. Aplaudamos os que, nos seus discursos, defendem o nivelamento da imbecilidade colectiva, anónima e desconsolada.
As crianças morrem de fome. Os adultos defendem-se assistindo a jogos de futebol, recusam o bom-senso e fingem não ver, no escuro, homens esventrando caixotes de lixo. A noite sucede ao dia. A mudança é uma miragem. A esperança não passa de uma metáfora.
Nunca as flores nascerão no cimento ácido da indiferença.

AMS

sábado, junho 10, 2006

busco a luz assumindo a fatalidade da perda

Lamento ter-te desiludido. Lamento não ter correspondido à imagem que inventaste para mim. Os espelhos podem distorcer imagens. Sensações. Promessas. As teias do coração tecem-se nos labirintos do imponderável.
O segredo do amor é não amar. Não ouses amar-me! – dizias. Amar é proibido. É loucura.
Pobre de mim. Prometi-te que não deixaria o coração interferir. Que, se ele ousasse caminhar rumo ao amor, eu teria tempo de fazer um desvio. Desculpa ter-te enganado. Ter-me enganado. O bater ensurdecedor do coração impediu-me de ouvir chegar o amor e, sem saber como, dei-me conta de que a tua imagem vivia comigo. Sem eu a chamar. Que estranho! Só em inesperados momentos se vive a plenitude. Como brisa em dias de incêndio.
Afinal, quando começa a tua história a fundir-se na minha? Talvez as histórias se limitem a seguir a vida que vai surgindo… não sei…
Tentei mandá-la embora, mas ela parecia não ter pressa de partir para onde quer que fosse. Decidira criar, a seu bel-prazer, um pacto que violaria mal eu acreditasse na sua existência.
Por quanto tempo tencionas permanecer em mim? – perguntava-lhe. Não é razoável ficares. E ela acabava sempre por me responder – Buscaste a luz assumindo a fatalidade da perda. Partirei quando te sentires segura da minha existência. Separarmo-nos será inevitável. Mas não há pressa. Tudo pode acontecer e quase nada acontece. Há muito tempo a esperar-nos. E, quando eu partir, tu gritarás – Leva-me contigo, peço-te. Mas eu acabo sempre por ir, sabes? É forçoso acabar uma história e começar outra. Assim me alimento. Claro que não te abandonarei por maldade. Sou assim por natureza. Um fluir contínuo que, aos poucos, se evapora. E lá longe, num horizonte distante, talvez, um dia, encontres na alma de alguém um pouco da minha alma…

Ainda não encontrei.
O segredo do amor é não amar – disseste. Só não me disseste que o amor pode dar-se, mas não se pode pedir.
E, deste modo, fico crescendo por degraus do esquecimento. Desembocando nas praças vazias. Imaginando criar jardins nos cantos envelhecidos dos dias.

AMS

sexta-feira, junho 09, 2006

O Quadro

Sem qualquer razão explicável, parei, subitamente, em frente àquele quadro. Uma paisagem, o mar, um céu muito azul, um barco oscilando, ao longe, um vulto indefinido... Algo, naquela imagem, me atraía e era, simultaneamente, familiar. Fechei os olhos. Encostei o coração à mudez, aparente, da imagem. Tentei decifrar o silêncio do vulto indefinido, mas familiar. Senti o som da água, o grito das gaivotas, o azul liquefeito do firmamento... Só não conseguia identificar aquela figura, como se a intensidade da luz distorcesse a memória ou a quisesse confundir. Sentia-me enclausurada na ondulação límpida das águas. Sentia o apelo de alguém que tentava tocar-me. Via os seus olhos tristes - ou seriam os meus? - porque sabia que nunca chegaria ao gesto, que ficaria, apenas, nessa intenção... Entrei no quadro. Sorvi o salgado do mar, respirei o azul do céu, balancei, suavemente, ao ritmo do pequeno barco, libertei a memória ao compasso do voo das gaivotas e olhei, fixamente, através do vulto de linhas imprecisas, sombreadas de um contacto íntimo, mas já longínquo. A recordação acompanhou a luz frágil do que se dissolvera há muito. Tentei lutar contra a indefinição do esquecimento, o gume dos estilhaços de momentos, aparentemente, já sem ressonância. E vi. Vi-o. Solicitei palavras, um gesto... Olhava-me, sorria levemente, desafiava-me - pedido e oferta. Não sei se era orgulho, ou outro qualquer sentimento, que me impedia de o abraçar, de lhe revelar a solidão de olhos cegos de viver. "O passado é inútil como um trapo" - a beleza terrível destes versos preencheu toda a paisagem. O céu escureceu, o mar revoltava-se em vagas alterosas, a pequena embarcação, exausta, parecia ir entregar-se a cada momento ao sacrifício final. Tentei, num derradeiro esforço, agarrar a mão... inexoravelmente fechada. Porém, o rosto familiar esfumava-se e o vulto era uma amálgama de traços amarrotados de desdém que não viam os meus acenos desesperados nem davam espaço à mais leve tentativa de aproximação. Era o fim... De repente, libertei-me, saí do interior para o exterior. Abri os olhos. Respirei fundo e olhei, receosa, o quadro. Já não ouvi o coração - o meu, o dele. Era apenas um bonito quadro, uma bonita paisagem, numa bonita moldura. Não passara tudo de um sonho? De uma questão de perspectiva? De uma certa forma de olhar? Não sei. A claridade subjacente ao quadro continuava a impressionar-me. A quietude e tranquilidade harmoniosas continuavam a atrair-me. O pequeno bote lá estava, balouçando, indiferente, ao meu olhar ansioso. Só não conseguia descortinar o vulto. Era apenas um ponto que se confundia com o horizonte. Afastei-me. Dei lugar a outros olhares, a outras vidas, a outros sentires. Mas, não sei bem porquê, levava na alma e no rosto um travo a sal e a sensação magoada de ter perdido algo outra vez.

AMS

terça-feira, junho 06, 2006

Que seca!



Se há coisa que eu não suporto

É levantar-me ao toque do despertador,
Que horror,
Entrar no emprego a hora certa,
Trabalhar numa rotina condenada
A objectivos definidos
Por manuais mais ou menos tremidos.
Que seca!

Se há coisas que eu não suporto,
São bibelots de plástico, flores artificiais
Que nos impingem, dizendo ser funcionais,
Mas que demonstram gostos
Pouco naturais.

Se há coisa que eu não suporto,
É o rastejar camuflado dos camaleões,
Em surdina,
Como quem não atina o alvo a alcançar,
A aniquilar,
Com esgares inocentes
De almas penitentes,
Inconsequentes,
De lobos que não parecem ferozes,
Mas que provocam danos atrozes.

Se há coisas que eu não suporto,
São galãs de olhares adocicados,
Meio apimentados,
Abraços fraternais,
Frívolos piropos carinhosos,
Palavras meladas,
Que adoram consolar desconsoladas
Só para entrar na lista dos famosos
Homens de práticas bem intencionadas,
Com vontade de comer tudo
O que é certo, o que é incerto,
O que está longe, o que está perto.

Se há coisas que eu não suporto,
São as regras competitivas do mercado
Exibidas em cartazes cheios de sol,
Fabricados para exportação e exposição
Das pessoas que sorriem para dentro,
Neste país cremado de cinzento.

Se há coisa que eu não suporto,
É esta mania que eu tenho de fazer versos
Mal-humorados, sensaborões,
Chatos, chatérrimos,
De adjectivadas inspirações,
Naftalinadas motivações,
Para embalar consciências estropiadas,
Vulgo reformadas,
Neste jardim à beira-mar plantado,
Onde impera nada nem ninguém,
Como é da praxe, como convém!

Que seca!

AMS

segunda-feira, junho 05, 2006

sempre tu

és sempre tu que eu vislumbro
no respirar das coisas
adormecidas
sempre a tua presença
nesse momento de serena
quietude
num entardecer que lembra
que o tempo não importa
basta o olhar
em silêncio

AMS

sábado, junho 03, 2006

Num café


Vagueio ao sabor do pensamento
por entre ruas
apinhadas de pessoas
olhando, mas não vendo,
o chão fugaz que pisam.
É como uma espécie de
ritual, uma peregrinação
que termina, quase sempre,
numa mesa de um qualquer
café desta cidade que
se chama Porto.
Ao meu lado, alguém discute filosofia,
futebol,
a urgência do amor no tempo, o tempo exacto do
amor...
Vozes confundem-se. Gestos cruzam-se, perdem-se.
Mesas cheias. Mesas vazias. Almas desencontradas.
Pego numa folha de papel e mais uma vez me deixo
guiar pelo pensamento. Por vezes, a escrita dói.
Outras, é a maneira de libertar irreveláveis segredos.
Uma espécie de jogo, onde a tinta escorre, as palavras
acenam,
deixam ficar um adeus e dão lugar a outras
palavras.
De súbito, olho através da vidraça embaciada
do café.
O pó e o tempo sujaram-na, mas descortino
um vulto familiar
que passa, apressado, olhando,
distraidamente,
para as mesas cheias. Para as mesas
vazias.
Não vendo a minha mesa desencontrada.
Eis na minha mão o fio condutor das palavras.
Bastou a passagem indelével daquele perfil delineado
pela lembrança, para a folha de papel se encher
de uma invisível presença, de marcas que ficaram
para sempre humedecidas pelo fascínio do que nunca
chegou a ser, e até mesmo de um sorriso insondável,
seduzido pela percepção daquela sombra fugidia.
Assim nasce a mensagem indizível, nostálgica,
que teima em vaguear pela mesa de um qualquer café
de uma qualquer rua, onde o tédio é interrompido
pela vaga recordação de um qualquer vulto familiar.
Há dias assim...

AMS

sexta-feira, junho 02, 2006

Silêncios


Tempo lento. O dia morrendo.

Uma mulher vestindo de negro, num banco de um jardim. Um olhar perturbado. Ausente.
Um céu sombrio. A noite chegando.
A mulher parece inerte. Traços vincados. Lágrimas clandestinas. Sem ver. Sem ouvir. Abafando a dor. Amarrada de pés e mãos a um passado que não voltará. A um passado onde havia outra pessoa que a morte arrebatara. Como viver sozinha, quando se viveu a dois durante tanto tempo? Como preencher aquele vazio enorme, confuso, ilógico? Como a morte era traiçoeira! Imoral!
A fixidez do olhar navega, interiormente, de pequeno nada em pequeno nada. O pensamento carimba o que já não existe. O absurdo da perda. O recuo impossível.
Alguém caminha perto. Um vulto aproxima-se. É um homem. Os olhares críticos defini-lo-iam com uma só palavra – pedinte. Ou, ponto de referência obrigatório – vagabundo.
Surpreendido, olha a figura amarrotada, encolhida, dobrada sobre si mesma. Ainda que inconsciente do drama por ela vivido, pára.
- É noite, minha senhora. Sente-se bem? Que aconteceu?
A voz que lhe responde é neutra, maquinal.
- Recordo… é isso… recordo…
Um sentimento de desconforto e, simultaneamente, de partilha, leva-o a insistir.
- Quer que a acompanhe a algum lado? Que chame alguém?
- Não quero nada. Já não vale a pena… Deus esqueceu-se de mim…
Ele não responde. Também sente, às vezes, que Deus se deixa adormecer em momentos cruciais. Ou, então, nem se dá conta da existência de alguns…
Delicadamente, senta-se ao lado da mulher.
E ali ficam os dois, num banco de um jardim, olhos abertos na escuridão, tentando entender por que motivo não obtêm resposta desse Deus de todos, quando suplicam – Estou a precisar de Ti. Lembra-te de mim.
Ainda lá devem estar…

AMS

quinta-feira, junho 01, 2006

O longe que nos habita

Rezei para encontrar a minha infância;
Ela voltou, e sinto que é tão dura
Como antigamente
E que de nada me serviu envelhecer.

Rainer-Maria Rilke


Uma sonora bofetada listrou-lhe a face!
Doeu-lhe a bofetada. Doeu-lhe, desoladamente, a injustiça.
- Ainda não percebeste que tens a obrigação de aproveitar o que recebes gratuitamente? Achas que podes dar-te ao luxo de desperdiçar o pão que recebes?
- Eu…
- Cala-te!
Humilhado com aquela inesperada atitude da madrasta, o rapazito encolheu-se. Precisava de chorar até lavar a alma de toda a indignação e raiva que a invadiam. Mas não ali. Nunca diante daquela mulher. Daquela estranha.
Como o pai mudara drasticamente – constatou – desde que resolvera voltar a casar-se. Estava, aos poucos, a desligar-se dele. Isso era evidente. E triste. Muito triste.
Nada tinha contra a madrasta, mas não conseguia ver nela quaisquer afinidades com a mãe. Ela não passava, aliás, de um esboço cinzento e grosseiro que o pai, inicialmente, pintara a cores.
Estava com dez anos. A mãe morrera há três. Às vezes – não dizem que tudo é possível? – desejava que a realidade se transformasse num simples pesadelo, na esperança de que, ao acordar, pudesse voltar a recuperar a mãe. O seu rosto, o seu cheiro, o seu abraço quente e seguro. A sua voz - Gosto muito de ti. Gosto muito de ti.
- Vai para o teu quarto e não voltes a sair de lá enquanto não pedires desculpa à Madalena – gritou o pai. Estou cada dia mais desiludido contigo.
Dirigiu-se lentamente para o quarto. O olhar carregado de cólera do pai, a satisfação visível nos olhos e sorriso da madrasta pareciam tolher-lhe os passos. Transpõe as escadas arrastando, penosamente, os pés. Onde ficara o universo maravilhoso do garoto de outrora? Porquê aquele formigueiro constante na cabeça? Aquele nariz sempre a fungar? Aquela morrinha sombria nos olhos? Aquele aperto que o paralisava?
Queria correr. Fugir. Escapar-se para os braços da mãe. Todavia, nunca conseguia alcançá-los. Corria. Corria sempre. Já quase a não poder respirar. Inútil. O rosto da mãe acabava por esfumar-se e ele era obrigado a “regressar” para junto do riso estridente da madrasta e do afecto distante do pai.
Já no quarto, pega no retrato da mãe. Aperta-o, e, estendido na cama, fica a olhar para enormes pontos de interrogação suspensos no tecto.
Onde estaria o seu refúgio?

AMS