terça-feira, novembro 28, 2006

incandescente traço

Desenha-me,
bem junto ao coração,
noites estreladas,
jardins entrançando flores em duro inverno,
um oceano azul espreguiçando brisas
em árido deserto,
e deixa-me sonhar,
sentir-me livre e forte como o mar.

Desenha-me
o amor com as cores do arco-íris,
sem linhas impossíveis, esquivos infinitos,
retoca-o, com mão segura, de luz perene e firme,
salpica-o de rubra chama raiada de poesia,
apaga-lhe a rotina, a inconstância do tempo,
e deixa-o fluir, suavemente,
das tuas mãos para as minhas.

AMS

rio de. rio com.

Decidi não voltar a indignar-me. Pois é. Decidi não voltar a “empanturrar-me” de insignificâncias. Decidi que, a partir de agora, vou terminar com as lamúrias do costume sempre que me deparo com certas historietas de cordel, com certas atitudes bizarras e inexplicáveis, próprias de mentes puerilmente inconsistentes . E vou rir. Rir de tudo o que me magoou. Rir de determinadas ficções, injustificáveis delírios, maquiavélicos pretextos de ocasião. Cansei de ser o grilo maçador sempre pronto a arranjar desculpas para as encruzilhadas e oportunismo de alguns, para a minha cobardia, para a minha estupidez. E vou passar a rir com vontade. Tórridos sorrisos em vez de lágrimas.
Não é uma boa receita? Rir de. Rir com.
Rir faz bem. Alivia a alma. Rejuvenesce. Aquece o coração. Por isso estou a escrever este texto quase que em jeito de homenagem, agradecimento. Acabaram-se os esgares torneados a pincel carmesim. Algumas atitudes, algumas pessoas merecem mais do que isso. Merecem uma boa gargalhada, daquelas que dão um brilho radioso ao olhar. Fico a dever a alguns o final triunfante que encontrei para todo este folhetim que, em lugar de ser um frio e austero "requiem", passou a comédia hilariante, uma espécie de fait-divers.
Hoje, a decepção veio despedir-se. A alegria passará a substituir a tristeza e nada será em vão. Ponto final às recriminações. Ponto final a noites mal dormidas, a lágrimas incontidas. Ponto final ao desencanto. Como o alívio é grande. Saboreio os tempos que hão-de vir com um sorriso aceso e feliz. Sem interesses lusco-fusco . Sem contrapartidas. Talvez até por instinto. O instinto de quem sabe que não tem sabor nenhum viver sozinho, longe dos outros, na iminência adiada de um pouco de ternura. Assim, a vida tem sentido. Deixa de ser um céu azul magoado. Passa a ser o céu azul.
Rio de. Rio com.

AMS

domingo, novembro 26, 2006

lucidaMENTE

Noite. Estrelas errantes
espiam vidas dormentes.
Sussurros
- que imagino -
asfixiam o silêncio, a alma.
O trilho de um cigarro,
duas sombras,
um riso que amortalha a minha boca
em palavras que se negam
ou o orgulho faz calar.

Minuto de mim tão consciente
dos contornos da vida...
que uma lágrima teima chorar.

AMS

Portuguesmente pensando

A viagem ia ser uma seca! - pensou. Aquelas reuniões começavam a ter o estranho condão de a enervar e nem mesmo o facto de viajar de comboio - meio de transporte que sempre a fascinara - conseguia aliviar a tensão que tais culturais - e formativos (?) - eventos lhe provocavam.
Entrou na carruagem. Escolheu um lugar junto da janela e sentou-se. Certificou-se de que não esquecera as revistas do costume, o jornal, o livro que andava a ler e, desencorajada, preparou-se para umas horas de tédio e de meditação.

- Este lugar está livre? Com licença… - ouviu, desinteressada, indagar uma voz de homem.
Abanou a cabeça e nem se deu ao trabalho de reparar na pessoa que se sentara ao seu lado. Olhava através da janela, acossada por nostalgias inexplicáveis. Se ao menos conseguisse adormecer… - embalou-a o pensamento.
- Dá-me licença de pegar no jornal? Entrei já um pouco atrasado e nem tive tempo de comprar um…
Passou-lhe o jornal. Só faltava este para me chatear ainda mais!
- Não pretendo aborrecê-la. Sei que é isso que está a pensar. Não, não sou adivinho. A sua cara falou por si. Mas tem razão. Não estou interessado em ler o jornal… por enquanto. Foi apenas o velho pretexto de entabular conversa. É ridículo, e um desperdício, passar estas horas a ler vezes sem conta o mesmo artigo quando posso estabelecer um diálogo interessante com o vizinho do lado. Bem, neste caso... uma vizinha…
Confusa e surpreendida pela honestidade - jogo? charme? - das palavras que acabara de ouvir, observou o seu interlocutor. Idade indefinida, sorriso irónico mas simpático, postura de quem sabe o que quer… Não, não tinha ar de psicopata. De certeza, porém, que iria revelar-se um Casanova fervoroso, pegajoso e desinteressante. Daqueles que tiram curso intensivo por fascículos sempre subordinados ao mesmo tema - A arte de bem engatar (enganar) as mulheres.
- Sossegue! Prometo que não vou assediá-la. Uma amena cavaqueira é tudo o que lhe peço. Uma forma agradável - tão-só - de encarar estas horas que temos pela frente.
Cada vez mais surpreendida - já com uma pontinha de curiosidade - sorriu . De acordo! - anuiu. Veremos quem será o primeiro a desistir da tertúlia agradável e interessante.
- Aviso-a de que sou um homem culto, inteligente e… modesto!

Ela deu uma gargalhada, deixando atónitos e horrorizados os outros ocupantes da carruagem. O ar reprovador com que a fustigaram incitava, desde logo, a imaginar o filme escabroso que já corria pelas suas mentes. Sentiu que aguçavam ainda mais os olhos e ouvidos para seguirem, minuciosamente, o itinerário daquela - segundo eles - aventura descarada, sem o mínimo recato e moral.
Aquele inesperado companheiro demonstrou ser, efectivamente, um homem assaz culto, interessante e de trato agradável. Um homem com sentido de conveniência, humor e naturalmente polido. Deste modo, o tempo tinha passado rápido, e as revistas e jornal continuavam à espera que leitores amigos lhes tocassem.
À medida que se aproximava o fim da viagem, um ambiente agradável - quase caloroso - tinha-se estabelecido entre os dois. Os comentários e risadas provenientes de diferentes pontos de vista pareciam ter provocado um azedume cada vez mais acentuado nos restantes “espectadores”. Era notório o ar acusatório dos que com eles viajavam. Reservavam-se o direito de delinear, a seu bel-prazer, o “cenário” que tinham imaginado desde o início, dando já como certo o único final que os seus espíritos mesquinhos conseguiam traçar.

- Foi um prazer, acredite. Esperemos que o destinos nos faça encontrar em próximas viagens... - disse ele.
- Agradeço-lhe a companhia. Foi, efectivamente, um prazer! - retribuiu, sincera, abstendo-se, porém, de tecer comentários às últimas palavras.
- Então… até um dia!
- Até um dia!
Olharam-se com a limpidez de quem sabe nada ter a censurar-se. Dirigiram-se para a porta de saída, acenaram um breve adeus e cada um seguiu a sua vida.
- Espere! Por favor, espere!
- Vai estragar tudo... - pensou ela. Ou vai perguntar o nome do hotel ou o número de telemóvel…
- Ainda a apanhei. Esqueceu-se das revistas e do livro. Vão fazer-lhe falta na viagem de retorno. A menos que encontre um homem tão culto, encantador, inteligente e modesto quanto eu.
Sorriram ambos. Ele entregou-lhe as revistas e o livro e retomou, decidido, o percurso inverso ao dela.
Enquanto se dirigia ao hotel, ainda sorrindo, divertida, para espanto do motorista do táxi, ia pensando - Homem de palavra! Culto, inteligente, simpático e… convencido. Não devo fazer mesmo o género dele… Nem a mais leve tentativa para saber quem sou…
E riu, abertamente, perante o olhar deleitado, mas simultaneamente desaprovador e moralista do motorista - Mulheres! O mundo está perdido! Se um tipo não se acautela… Olha-me p'ra esta a atirar-se a mim toda derretida…
Portuguesmente pensando…

AMS

sábado, novembro 25, 2006

quando o amor acontece

Quando chegas, fico entre o início
e o fim da minha vida. Apagam-se
prantos antigos e a tua presença,
sempre outra, sempre nova, acende
dias serenos, plenos. Assim, a vida
deixa de ter passado, deixa de ter futuro,
para ser, apenas, o momento do teu riso
branco e desse olhar onde me perco,
esquecida, em mil desvarios de noites
consumadas em fogo e suor. Há apenas
o momento. Um segundo ilusão? Um segundo
verdade? Um segundo mentira? Que importa?!
É nesse tempo ilusão, verdade, mentira,
é nesse segundo, aquém despedida,
que o amor acontece e a eternidade é vivida.

AMS


... há dias assim...

Alguma vez experimentaram este estado de alma? Claro, estar lamecha. Acordar lamecha. Ver o mundo com um olhar lamecha. Idiossincrasias do comportamento das mulheres - arriscarão alguns. Será... Mas é tão terrivelmente deprimente levantarmo-nos e darmos de cara com um céu miseravelmente nublado; a nossa cara, não menos infeliz, nublada; o gato, desafiador, do vizinho - não menos desafiador - nublado… Tudo cinzento. Sem uma risquinha colorida para aquecer a alma e animar o ego. Cinzento absoluto, como se a vida estivesse a declarar falência.
E, assim, dei comigo, esta manhã, ao volante, chorona, ranhosa, cinzentona, pensando: a única coisa que eu quero é ser feliz... snif... snif... Que abjecta tristeza!
Enquanto fazia o percurso habitual para a escola, só me ocorriam ideias agradáveis, positivas: a morte do meu tio Manel, resmas de testes para corrigir, a doença da minha tia Deolinda que, por azar, até pode ser hereditária... Pensamentos chapa-três, certinho. Justamente o que uma lamecha precisa para assegurar a sua beatificação.
Na escola, o cenário tornou-se ainda mais lúgubre. Parecia mesmo uma epidemia, raios.
"Importa-se de passar pela secretaria? Acho que faltou a uma reunião e não meteu artigo... Que cara é essa?! Estás com mau aspecto - tradução: estás horrorosa! Não te importas de fazer aquelas planificação para TTF? Não me dava jeito nenhum vir cá amanhã… já agora podias, também, fazer a acta da reunião de departamento… és uma querida… mas estás mesmo com ar cansado, cuida-te! - tradução: estás boa para saldar. Stôra, trouxe os testes? Stôra, corrigiu os trabalhos? Stôra, o meu pai manda dizer que não concorda com a nota do trabalho. Stôra, como se diz idiossincrasia em francês?"…
Irra! Chega! Tenham pena! Sinto-me lamecha por causa de tudo o que me aconteceu de mau nos últimos... cem anos. Devido ao síndrome pré-menstrual. Porque o empregado do café, hoje - logo hoje - resolveu tratar-me por "minha senhora" e meteu no saco dos piropos indirectos, o directo, mas infalível, "menina". Porque, hoje, dia de S. Valentim, todos resolveram colocar, no blog, cartas, poemas de amor e só faltou mesmo - para eu abrir liquidação total - o habitual coraçãozinho atravessado por setas, tendo como pano de fundo um estúpido Cupido rindo - qual piranha à espera do ataque final - do nosso ar de Ofélias hamletianas. Assumo, estou lamecha! Há dias assim. Queremos colo, um elogio, ou até um desses peluches com focinho de parvo e com uma legenda mais lamecha do que nós - I love you. Do you love me?
Snif... snif... Alguém me empresta um lenço?


Nota: Juro que também tinha uma carta de... amor. Perante o que aqui li, guardo-a para... o Dia de Finados! Um ternurento e lamecha dia de S. Valentim é o que desejo a todos.

AMS

tempo

o dia de hoje
é já o de amanhã

veloz no tempo
com a força do momento

que muda vertiginoso
despedindo os gestos

na hora breve e lassa
de tudo o que passa

AMS

quarta-feira, novembro 22, 2006

luz

quando me olhas com esse sorriso
que me acerta no corpo
e fica inscrito na alma

a tristeza surpreende-se
e imerge na luz do poema


AMS

Quero acreditar

Eu quero acreditar que,
para lá da noite
habitada de medos,
para lá do vazio que escorre
da nossa mísera existência,
para lá do lodo
que envelhece a luz,
há um rio que passa e nos leva,
libertos da escravidão da nossa essência,
- feita de renúncia e cansaço -
a um mar infinito,
regaço de certeza e ligação,
onde tudo nos é contado,
de novo,
e nos ensinam a acreditar
que os homens são bons,
que não é interdito sonhar.

AMS

À Sónia e ao José Almeida

Não fazemos anos! Não comemoramos, hoje, nenhuma evento especial... O que terá passado pela cabeça da Ana? - estarão a pensar os dois visados ao lerem o título deste texto.
É verdade. Não fazem anos. Hoje, nem sequer é o Dia Mundial da Amizade. E, juro, não é nenhuma campanha publicitária para angariar mais leitores para o blog. Então, porquê esta necessidade de me dirigir a vocês?
É simples. Não concordo em absoluto com "agradecimentos póstumos". Depois, sempre defendi a tese de que, se gostamos de alguém - e lhe estamos gratos - não há que ter pudor em manifestar os nossos sentimentos. Não há mistérios do coração - aqui, pelo menos, não há. Há amizade e uma transbordante gratidão.
Começo pelo Zé. Fomos colegas. Confesso - não te zangues - que a tua presença me intimidava um pouco. Eras uma espécie de "catedrático" e, sem qualquer razão real, achava-te demasiado "inacessível". Vou explicar melhor, não vá algum leitor mais "poluído" interpretar mal o significado do adjectivo. A tua fama de homem muito culto, escritor, até as tuas intervenções, sim, até essas, tudo despertava em mim um certo receio. Aos poucos, no entanto, fui dando conta do meu erro. E comecei a "ver" o profissional exemplar, o colega sempre disponível a ajudar, o homem correcto e justo, o amigo pronto a aconselhar, a dar e a... aceitar. Como esquecer, Zé, a tua presença, a da Aurora e a da Raquel, no Rivoli, naquela noite chuvosa, lembras? Sim, podes rir. Nem eu sei como me atrevi a ir substituir o aluno... Adiante! Pois é, como esquecer que tu e a tua família estiveram presentes, quando os que mais próximo de mim se diziam... não compareceram?! Desculparam-se, isso sim, como é da praxe e de bom tom. Como esquecer, amigo, que, quando me saiu na rifa o famoso "horário zero", foste o único - ou quase - que me incentivou a reagir, a não cruzar os braços?! É desta forma que começamos a distinguir os amigos... dos amigalhaços. Sabes, ainda não esqueci as palavras do teu último email. Ainda não consegui esquecer a dor que a tua mãe deve ter passado. Ainda não esqueci estas palavras - "... e no entanto nunca perdeu a sua enorme fé...". Nem imaginas o quanto me ajudaste com a simplicidade das tuas lembranças e o conforto - sem pompa - das tuas palavras. Não vou dizer - seria mentira - que me tornei uma pessoa melhor. Que a minha fé aumentou. Que o que te confidenciei... já não dói. Porém, percebi que urge aproveitar o que temos de bom. Nada serve de desculpa para não aproveitarmos a vida. "Amanhã" - ouso acreditar - as sombras dissipar-se-ão e a luz acabará por brilhar.
Podia enumerar um sem número de outros motivos que me fazem sentir por ti uma amizade especial e sã. Não vou, contudo, fazê-lo. Não quero cair na tentação de transformar este texto numa espécie de fait-divers. Assim, deixo-te um sorriso, um abraço e a minha gratidão.

Passo a dar "tempo de antena" à Sónia. Se pensam que vou escrever que nunca discutimos, que nunca nos zangamos, que é uma amizade "certinha" e sem alguns atritos - enganam-se. Discutimos. Zangamo-nos. Ela diz que sou demasiado emotiva, que reajo sempre a quente, que tenho um feitio igual ao do Makram - se pensavas que te livravas desta, enganaste-te! Eu retribuo com piropos do género - és terrivelmente fria e linear nas tuas apreciações e conclusões. Demoram muito estas zangas? Nunca. O tempo de chegarmos a casa - basta atravessar um jardim - e de mandarmos uma mensagem uma à outra a... desculparmo-nos. Bem, excepto na história da papelaria, claro. Que não vou contar, claro. A minha amiga é defensora acérrima de que, para pessoas mal-educadas e do tipo "gentuça" - como a Sónia adora este termo! - a via diplomática é a melhor maneira de corrigir certos comportamentos; eu, bem, eu acho que, por vezes, um "soco" resolve muita coisa - como se constata, a acusação à minha pessoa de "demasiado emotiva e impulsiva" é gratuita e sem fundamento.
O certo é que, contra ventos e marés, a nossa amizade perdura. Umas vezes, usando a tal via diplomática; outras, usando a lei do "murro".
Sónia, não desesperes. Um dia, amiga, hei-de modificar-me. Hei-de superar as minhas "paixões" despropositadas. Contudo, acredito que já não acharás tanta piada à nossa convivência. Porque, no fundo, o que parece desunir-nos, é o que nos une.
Agradeço-te as zangas, os " vem comigo, que é já ali... a 100 quilómetros!", as tuas histórias que acabam sempre por me pôr de bem comigo e com o mundo, a tua confiança, a tua generosidade e até essa tua preguiça para colocar imagens, sempre camuflada com o habitual - parece que percebi, mas tenho de treinar mais!
Um abraço, um beijinho e ... vá lá, desta vez vou ceder - tens razão, nem sempre um "murro" resolve tudo. Ponto final!

AMS

segunda-feira, novembro 20, 2006

nós e os outros

Quantas e quantas vezes, saindo do elevador, deparo-me com ela. Mulher quase anónima, insignificante aos seus olhos e aos dos outros, um simples, frio, distante rótulo a identifica - a senhora da limpeza.
Balde, esfregona, postura curvada, resignada, olhar posto no chão, numa humildade digna, misto de mágoa e insegurança - eis os elementos que evidenciam aquela classificação por parte dos outros. Maldade? Nem tanto, embora certas pessoas, demonstrando um carácter ignóbil, mesquinho, carregado de frustrações, sintam um prazer mórbido em sufocar o seu semelhante.
Quantas e quantas vezes, limitando-me a um lacónico “bom-dia”, saio para a azáfama caótica do costume, evitando a esfregona, o balde, a mulher. E, no entanto, conheço a sua história. Quem não conhece?! Casara cedo. Engravidara várias vezes. Acostumara-se às migalhas de afecto, não reagindo, desculpando. Resignada. Como quem pede licença para existir. Como quem, à nascença, tivesse sido fadada para uma constante fuga à felicidade.
Depois, bem… depois veio o habitual desfecho. Outras mulheres. Outra mulher. Para trás, esquecida, ficara ela. Ficaram os filhos, a necessidade de os educar, alimentar, vestir, fazendo, simultaneamente, de pai e mãe.
Hoje, porém, a desculpa cómoda do “finge que não vês” foi quebrada. Desci, como habitualmente, até ao hall de entrada. Aparentemente, aguardava-me o mesmo cenário - a esfregona, o balde, a mulher. Afastei-me, ligeiramente, para não sujar o que ela já limpara. Quando me preparava para abrir a porta da rua, ouço:

- A filha da senhora está uma mulherzinha. Faz-me lembrar a minha Teresa. Devem ser quase da mesma idade. Os filhos dão-nos muitos cuidados, minha senhora, mas são a nossa alegria…

Parei. Surpreendida pelo inesperado das palavras, larguei a porta e virei-me para ela.

- Tem razão. Os filhos crescem depressa de mais… Então tem uma Teresa? Nunca a vi por aqui…

- Já a tenho trazido comigo, a senhora é que nem deve ter reparado. Ela ajuda-me, às vezes, quando estou adoentada ou tenho de me apressar para ir à escola dos mais novos… A senhora já a deve ter visto, mas... como anda sempre a correr…

Anda sempre a correr… Tens razão. Sem tempo para a tua história. Até sem tempo para a minha. Fixei-a melhor. Estava a “vê-la” pela primeira vez. Senti-me corar. Sempre a correr… Bom-dia! Boa-noite! É isto a que se resume o contacto com os outros. Por vezes, nem chega ao polido “bom-dia!...

- A senhora desculpe se estou a atrasá-la… mas queria perguntar-lhe… desculpe o meu atrevimento… se não teria uma roupita já velha da sua menina… A minha Teresa e ela… são quase da mesma idade… sabe… a vida está tão cara… Desculpe o meu atrevimento… já andava há uns tempos para lhe falar, mas... como a vejo sempre tão ocupada, sempre de um lado para o outro…

Ocupada?! Comodista. Cega. Ponto final. Sem tempo para reparar nos outros, para reparar em ti. Sem tempo para estender a mão. Mostrar um sorriso. Perdida na selva do trabalho, dos problemas existenciais, sociais, políticos… Esquecida da realidade que me cerca. Esquecida dos outros. Esquecida de mim.

- Não me incomodou nada. Fez muito bem em falar. Amanhã, trago-lhe a roupa. Até me faz um favor. Os adolescentes têm a mania de andar sempre com a mesma roupa, enquanto os roupeiros ficam sobrecarregados de excessos…

Excessos?! A balança nem sempre tem o mesmo peso nos dois pratos. Quando há peso a menos num dos pratos… o outro, forçosamente, fica lá em cima. Haverá, algum dia, uma balança com os pratos equilibrados?!

Sorri, disse um “até amanhã” culpado, envergonhado e saí.
São estes pequenos “encontros”, estas conversas reais - tão à margem das dissertações políticas e intelectuais - que nos fazem pensar.
Mas, na verdade, nada se explica fora de nós mesmos.

AMS

canção de embalar o destino

Na quietude da noite,
A mãe embala o filho
Em brisas de ternura,
Qual anjo tutelar
Que envolve de candura
O sono a vigiar.

Às portas do silêncio,
A mãe vela o menino,
Enquanto vai dobando
As linhas do destino
Que imagina tecer
Com a humana ilusão
De, assim, o afastar
De negra perdição.

Mas o menino vai crescer.

E o destino?... Desfazer
As linhas que a mãe tecia,
Enquanto o filho dormia.

AMS

sábado, novembro 18, 2006

sem preço

Costumam dizer, em tom brincalhão, que pico mal me tocam. Sim, sou guiada por impulsos, pelo calor das emoções e, para o bem e para o mal, não desisti ainda de perceber coisas que não entendo. Confronto-me, numa luta quase inglória, é certo, com a lógica dos que procuram sempre a mesma lógica. Suponho que para essas pessoas a minha existência não fará qualquer sentido. Paciência! Não gosto de pantomimas. Abomino truques de feira. Recuso pactuar com a ligeireza conveniente de solúveis verdades. Não vivo em outra dimensão. Contudo, por vezes, dou comigo a acenar a minha perplexidade – e este calafrio de palavras sem resposta - para a plateia que vislumbro à minha frente. Mas a assistência está adormecida e, para que acordasse, seria necessário que a distância que nos separa não desembocasse num rio subterrâneo e turvo, mas numa corrente límpida, transparente, sem águas estereotipadas. Uma corrente graças à qual conseguíssemos, aqui e agora - nunca num algures perpetuamente longínquo - deixar de sentir o peso de um universo onde o normal é sempre apresentar a conta. Eu cobro, tu pagas. Tu cobras, eu pago. O "ideal", porém, será cobrar. Jamais pagar.
O mundo que me/nos coube é, simultaneamente, belo e terrível, corrosivo e fraterno. Nele tudo tem um preço. Sempre algo a pagar. Como se fosse necessário recorrer a um empréstimo para viver. Este mundo já não deveria perturbar-me. Ainda me perturba. Paradoxalmente, sei que não mudará nunca. Nós é que somos detentores da possibilidade de o mudar… ou não.
O que fomos perdendo? Qual a razão de tanto rosto amargo? De tanto gesto delineando rancores, prepotências, cegueiras? Que estranho sortilégio nos impede de sublimar a vida? Que funesta maldição nos impele a deixá-la sempre desvanecer-se? Vivemos enfiados no nosso umbigo e o patético é que poucos – muito poucos - valem o que julgam valer. E tudo, afinal, tão simples! Nós é que complicamos esta passageira eternidade que justifica as nossas vidas. Temos isto. Queremos aquilo. Como se isto e aquilo não fosse a mesma coisa veloz que nos escapa. Como sair ilesos desta encenação? Como assumir a nossa fragilidade sem falaciosas certezas, sem subornáveis penhores? Com erros, claro. E com corações abertos, vastos, sem preço!
No mundo que nos coube nada nos exigimos. Tudo exigimos aos outros. Neste mundo que nos coube parece que, subvertidos à conta do que não damos conta, nós é que não cabemos.

AMS

Toca-se o Amor

Toca-se o amor
Com veios de ternura

Não um amor domesticado, espartilhado,
Delineado por gestos metálicos,
Um amor servil, cego, desnudado
De ingenuidade, opaco, violento
Na sua fome de tudo prender
Com raízes que acabam por apodrecer.

Toca-se o amor
Com veios de ternura

Um amor sólido, delicado,
Que nos dá a mão nos dias de tormenta,
Que ri connosco nos dias de bonança,
Sem artimanhas de vento rasteiro,
Fresco, pulsante como um aguaceiro,
Princípio e sequência em união,
Um todo só, sem contradição,
Despido de artifício, laços desbotados,
Qualquer que seja a direcção.

Toca-se o amor
Com veios de ternura

AMS

quarta-feira, novembro 15, 2006

O papagaio de papel

Pesa-me a minha insignificância. Dói-me esta incapacidade de entender a vida, as pessoas, de me entender. Parece que nunca se chega a lado nenhum e que o desfecho é por demais previsível. Podemos deixar a imaginação galopar, é certo, mas a realidade espera por nós ao dobrar de uma qualquer esquina. Só paredes e muros que nos prendem à modorra de apressados gestos e recalcadas palavras. Onde encontrar a saída certa? Como elevar a banalidade do que somos à grandeza do que gostaríamos de ser?
Acreditamos - presunção ou ingenuidade? - que uma história diferente nos foi destinada. Na nossa história, o papagaio de papel nunca se rompe, o cordel é tão comprido que o eleva às estrelas e, assim, tocamos o céu. E somos livres. E podemos escolher o nosso destino. E as esperas não assustam, porque a esperança é legítima.
Porém, a realidade é a morte na lentidão dos dias. É chão de pedras e pedras. E o cordel acaba sempre por desperdiçar o instante, emaranha-se, enrola-se no nosso descuido. Todo o entusiasmo se afoga na decepção do nada. O papagaio de papel respirou um voo fugaz. Viveu - será que viveu? - um segundo de ousadia. De ilusão. As estrelas estavam longe de mais. Elas atraiçoaram o seu voo. Ou foi a ânsia, paradoxalmente aliada ao cansaço, que atraiçoou o sonho?! Como dói ver a vida passar de qualquer jeito! Como pode ser seco o seu trajecto! E como, não esperando nada, baixando, covardemente, os braços, ajudamos a que seja mais seco ainda!
Quem somos, afinal? Seres cheios de dúvidas e contradições. O cordel, guiado por mãos pouco atentas, prendeu-se, o papagaio rompeu-se e caiu. Falhámos. Essa é a realidade do momento. Mas não podemos ficar prisioneiros de um momento. O tempo é a união de milhares e milhares de momentos. Há que lançar outro papagaio - mais ágil, mais leve, mais persistente - tentando, as vezes que forem necessárias, elevá-lo o mais alto possível, ao invés de lamentar a nossa imperfeição, a nossa pequenez. Talvez que, a cada tentativa fracassada, o longe das estrelas vá encurtando e, mesmo sem lhes tocar, desvendemos a essência do seu brilho. A verdade escondida em cada um de nós.

AMS

Para quem partiu

Só hoje soube da tua “partida”. Numa conversa informal, a notícia apanhou-me assim mesmo - “Sabes, morreu o… “. Não reagi. Não comentei. Creio que nem percebi bem o que estavam a dizer-me. O meu amigo de infância? Era lá possível…! Os amigos de infância são imortais. Sempre tivémos essa noção de imortalidade quando éramos crianças. Os bons nunca morrem! Os bons ganham sempre! – dizias, veementemente, convencido dessa falsa premissa.
Como estavas enganado…
Não consigo chorar. Apenas lembrar com saudade as nossas brincadeiras, as nossas zangas, as nossas tropelias. Tu eras quase sempre o Robin dos Bosques e eu… eu era a miudita franzina de tranças e laçarotes, companheira de sonhos e aventuras.
Recordas quando insisti contigo para que me pintasses as unhas com aquele verniz vermelho vivo que pertencia à tua tia e que eu cobiçava há tanto tempo? Mulheres – pensaste. Mas fizeste-me a vontade. Só que o Robin dos Bosques era bom na defesa dos fracos e oprimidos, manejava, habilmente, o arco e as flechas, mas, para desgraça tua e minha, era um desastrado a pintar as unhas a meninas mimadas e vaidosas. Resultado: um frasco de verniz entornado, deixando a marca do nosso delito sobre uma colcha alvíssima. E lá ficaram os dois criminosos de castigo, sem sobremesa, mas cúmplices, solidários e… de olhares gulosos, seguindo, ávidamente,o percurso de cada fatia de bolo... que ia desaparecendo na boca dos outros. Resistimos estoicamente, sabe-se lá como, embora, em abono da verdade, eu tivesse que ouvir, durante um certo tempo, as queixas de um Robin dos Bosques protector dos pobres e indefesos, mas assaz apreciador de bolo de chocolate.
Depois, bem, depois… crescemos. Tu, mais velho, começaste a trocar a tua lady Marian por outras damas que, ainda que não apreciassem as aventuras do nobre Robin dos Bosques, te aliciavam com outro tipo de aventuras – talvez mais perigosas – mas bem mais sedutoras.
Os anos passaram. Eu também cresci. Víamo-nos de tempos a tempos e ríamos, felizes, em memória das quedas, dos arranhões, das zangas e de uma infância que não mais voltaria.
Hoje, disseram-me que tinhas morrido. Não acreditei. Não acredito.
Um amigo que possuía – mas por que motivo estou eu a empregar o passado?! – que “possui” um coração grande e generoso, não podia ir embora sem se despedir da sua companheira de folguedos com um “até sempre”. A menos, sim, a menos que, com um coração tão infinitamente grande, tão incondicionalmente generoso e grato, ele tenha saltado do teu peito e ande por aí, louco de alegria, a beijar toda a gente.

AMS

querido diário...

Sábado, 11 de Dezembro de 2004

Comida fast-food ingerida hoje
Muita!
Calorias ingeridas
Melhor nem dizer…
Gargalhadas salutares
Muitas!
Chamadas recebidas
Algumas!
Chamadas realizadas
Muitas!
Conclusões a retirar
Se estiver gorda, não vá com a Angel ao cinema!

Como tristezas não pagam dívidas e a nossa amiga Angel é uma fanática adepta deste dito popular, lá me convenceu a ir ver "O Diário de Bridget Jones". “Tu não vês a tua cara? Pareces o Senhor dos Passos… Estás horrorosa!” e, deste modo, com estas frases cálidas e de genuíno conforto - como só uma verdadeira amiga é capaz de dizer, dando-lhes a entoação melódica e insinuante de uma ária cantada por Pavarotti - a zoarem-me ao ouvido, decidi-me e fui. Fomos. A Cris resolveu que um dueto seria algo chato e sem graça e, deste modo, tipo triunvirato para os que gostam de história, a modos que trio Odemira para os apreciadores de "boa" música, lá caminhámos rumo ao Norte Shopping! Já estão a imaginar a cena, presumo. Sábado, época natalícia, a nossa escolha era a opção ideal para um périplo bucólico e calmo. E pronto - não sei bem o motivo, mas de tanto ouvir dizer “prontos"… o meu pronto soa-me mal - quais Reis Magos em busca da Bridget Jones , chegámos, finalmente, à bilheteira. Bem, isso depois de ter ouvido a Angel dizer pela centésima vez que estava com fome e de a ver atender o telemóvel, pelo menos, um milhão de vezes. Como ela fica furibunda quando lhe digo que é uma escrava do “portable”!Comprámos os bilhetes, enquanto, simultaneamente, fomos, seraficamente, informadas de que a Cris ainda se encontrava em casa. Isto, note-se, quando faltavam cerca de 15 minutos para o início da sessão. Havia muito tempo, dizia a optimista Angel. Se ela dizia que sim… eu limitava-me a não opinar. Mas a fome era muita. E 15 minutos, às vezes, esticam, esticam… Assim, só depois de bem artilhada, e isto implicou uma “baguette” colossal, batatas fritas e uma garrafa de água, a esfomeada Angel resolveu entrar na sala de cinema. Contudo, a minha amiga é uma ecologista nata, uma defensora acérrima de produtos naturais. Enquanto ia comendo as batatas fritas, não perdia o seu estatuto de “verde” e informava-me: “Isto está saturado de gorduras! Tem óleos cancerígenos! Faz mesmo mal!”. Confesso que não resisti e, viperinamente, perguntei: “Por que razão as comes, então?” Sábia e divertida Angel! Com o ar mais inocente do mundo respondeu: “Ora, porque são deliciosas!”. Sentámo-nos. Bem, eu sentei-me. A minha sempre imprevisível amiga colocou um saco numa cadeira, a garrafa de água na outra e… foi procurar a atrasada Cris. Voltou, alguns minutos depois, dizendo: “Deixei o bilhete dela na bilheteira, mas temos de lhe guardar o lugar”. E guardámos! Várias pessoas se dirigiam à cadeira, aparentemente, disponível, mas o saco colocado estrategicamente, logo as afastava. Novamente a minha moralista e oportuna amiga advertia: “ Não podemos fazer isto! Mas é que não podemos mesmo… “. Razão tinha o outro - olha para o que digo, não para o que faço.Enfim, chegou a Cris e chegou, também, a desastrada Bridget. Nessa altura, já a Angel ia a meio da “baguette” e debatia-se, mais uma vez, com a preocupação do barulho que a embalagem da "merenda" faria. Noblesse oblige! Se o Padre António Vieira a tivesse conhecido, era certinho que a tinha mandado evangelizar os Tapuias! Do filme nada vou comentar. Uma comédia hilariante que mais hilariante se tornava com as gargalhadas saudáveis da comilona sentada ao meu lado. Verdade seja dita que ver uma heroína de tamanho XL conseguir “agarrar” um pêssego daqueles, é razão mais do que suficiente para levantar o ego da mais desgraçada e infeliz das mulheres. A tarde teria já um remate de "satisfez plenamente". Eu já não estava com cara de Senhor dos Passos - estaria, penso eu, menos roxa interiormente, assim a modos que a fugir para o cor-de-rosa - o apetite desenfreado da Angel parecia ter acalmado, talvez depois de ter assistido ao suplício de uma Bridget Jones dentro de um espartilho digno de figurar entre as mais requintadas torturas, quando novo episódio picaresco veio dar um ar ainda mais anedótico ao nosso final de tarde. Entre relatos de aventuras - e que aventuras! - passadas em Marrocos, risos, promessas sagradas de dietas rigorosas, a não menos hilariante Angel sai-se com esta: “Estou frita! Recebi agora uma mensagem e tenho de ir comprar um frango à Petúlia!". É certo e seguro, quem disse que batatas fritas, frango, heroínas obesas, suspiros de amor e açucarados finais não combinam, devia ter ficado de bico calado. E... "prontos"! Obrigada, Angel! Obrigada, querido diário!

AMS

Dancemos um tango

Indigno-me! Ainda me indigno com os profissionais de rábula comodamente refestelados na sintaxe balofa da demagogia desenfreada e impune. Usam o povo como um cavalo domado e montam-no, descaradamente, para alcançar o poder. Falam, sem dizer nada, nas tribunas burlescas dos comícios e pavoneiam-se na televisão como artistas de circo. Invocam o nome de Portugal, mas não lhe conhecem a História nem os sonhos.
Indigno-me contra a mediocridade triunfante que suga, com felina verocidade, a seiva dos dias, deixando-nos vazios de esperança. Indigno-me! E protesto , desejando levantantar a voz à altura máxima da indignação perante tanta aleivosidade .
Mas fico só, desolada, na praça do meu descontentamento. E calo-me. Quando as palavras são moeda falsa, só o silêncio dá corpo à nossa indignação.
Vivemos num tempo de apagada e vil baixeza. Somos esmagados pelos limites mesquinhos de consciências de renda ilimitada e por um atordoamento que parece mumificado.
Outros dias virão, certamente... Como dizia Torga - "A esperança tem sempre tempo".
No entretanto, que podemos nós fazer? Como diriam certos politicotes: dancemos um tango!

AMS

domingo, novembro 12, 2006

conta-me uma história

Conta-me uma história. Sem cenários de angústia, de solidão, de barcos encalhados e efémeros instantes. Conta-me uma história. De reis, de princesas, de fadas. Vá, começa, estou à espera... "Era uma vez..."
Não, não quero uma história de mágoas... Mágoa é uma palavra triste e arrasta consigo a saudade. E a saudade é uma história, outra, que me contaram há muito tempo... Conta-me uma história. Sem distância, sem portos de partida, sem sonhos perdidos. Uma história que não faça doer o coração, que saiba a doce de mel, a mãos puras de tanto dar e receber, que role o amor numa toada morna... Faz deslizar as palavras devagarinho... deixa-me bebê-las num sopro leve..."Era uma vez..."
E a história adivinha-se perfeita, rasgada de ternura e enluarada de vida incandescente.
Conta-me essa história de ínfimos enigmas, enquanto vou tecendo a evasão de um sorriso...

AMS

"Como chamar-te se não possuis um nome?"

Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura

Alberto Caeiro


A vida prega-nos, frequentemente, surpresas. Agradáveis. Desagradáveis. Um jogo? Um teste? Talvez as duas coisas. Talvez nenhuma das duas. Afinal, será tudo um conjunto de nuances - há quem diga coincidências - que acabam por se resolver a elas próprias?!
No fundo, o que todos procuramos decifrar é o velho enigma da nossa caminhada. Como sobreviver a tortuosas veredas? Ao silêncio profundo e duro? A abismais verdades? A muros espessos de interrogações? Como alcançar a felicidade?
Ah, a miragem doce e ludibriosa da felicidade! Que acaba sempre por nos fintar. Que acaba sempre por nos encurralar em torres de nostalgias exigentes e acusadoras.
Desconfio que a resposta - ou respostas - está, pura e simplesmente, numa realidade singular - andamos todos distraídos. Ocupados. Empanturrados de futilidades. Passamos pela vida como uma espécie de zombies - embaciados, intoxicados, tontos, inconscientes, reduzindo tudo - até os outros, até os afectos que nos ligam a esses outros - à sua expressão mínima. Ou inexistente. Quando, acreditemos ou não, tudo é tão relativo e se traduz num assumir-se por inteiro na plenitude do que nos é dado viver.

Toda esta dissertação a propósito de quê? Tenho o mau hábito de me enrolar no novelo das ideias e acabo sempre por cair num discurso entedioso e, aparentemente, desconexo. A mim, o meu pai ensinou-me a observar. Não que eu seja uma espécie de inspector Maigret. Longe disso. O que ele tentou demonstrar-me é que quem é bonito por dentro não precisa de enfeites nem disfarces para cativar. Pode até estar na sombra, não saber fazer piruetas de vedetismo, não publicitar a sua existência e o seu mérito em panfletos fátuos e cintilantes - “O essencial é invisível aos olhos”! Porque, meus amigos, o nosso valor não depende do que apregoamos; depende do que somos e do que fazemos. Assim sendo, há que estar atento. Há que saber ver com o coração. Há que ter o condão de encontrar a tal felicidade nas coisas simples, submersas a olhos cegos.

E é aqui que começa a tua história, A-----. Tanta teoria, tanta treta… para chegar a ti. Quando, naquela quarta-feira, entraste na sala de estudo, nada nem ninguém faria prever que, por estranha coincidência - ou talvez não - algo ou alguém se preparava para cruzar os nossos caminhos. Recordo que, mal te vi, pensei – miúdo petulante! Vamos ter problemas! Oxalá seja a R------ a ficar com ele. Não estava destinado que assim fosse. Quase de imediato, entraram mais três alunos e a minha colega sentou-se junto deles. Dirigi-me a ti com a habitual folha-inquérito - alunos que vão para a sala de estudo estão, habitualmente, de “castigo”, porque foram postos fora da sala de aulas - e comecei o “interrogatório”. Nem uma vez olhaste para mim. Respondias quase por monossílabos e, ainda que não chegando à fronteira da má-educação, havia qualquer coisa de aridez provocatória na tua atitude. Quando te perguntei o nome do professor que te tinha enviado para a sala de estudo, ouvi, entre atónita e curiosa – Não sei. Nunca tive interesse em saber o nome dos profs. São-me completamente indiferentes.
Esqueci a folha-inquérito. Sentei-me. Olhei bem para ti. Catorze anos, pensei. Arrogante. Esquivo. Rebelde. Carente. E tão cheio de raiva. E tão cheio de medo. Observei a tua roupa preta – o preto é uma cor muito usada na vossa idade e, naquele momento, não percebi… - tentei captar a tua atenção, mas continuavas a recusar aceitar a minha presença. Era como se eu não existisse. Mas existia, A-----. E, por alguma estranha razão - ou não - decidi tentar perceber. Perceber-te.

Hoje, as pessoas não pensam. Dá trabalho. Queima energias. Ponto final. Mas eu, A-----, para mal dos teus pecados, ainda penso. Penso, dizem, de mais. E só faço ponto final, parágrafo, quando sinto que o melhor é “fechar a loja”, porque entrei/entrámos em falência de tempo e de afecto. E sou teimosa. E sou curiosa. E não sou tão má como rezam as crónicas. E sou muito "modesta"!
Quanto mais me repelias, mais eu me aproximava. Quanto mais te fechavas, mais vontade eu tinha de descobrir o peso que te atormentava. Era, acredita, mais forte do que eu. Pressenti uma mágoa tão resguardada, uma parede tão colossal entre ti e os outros, que se tornou quase obrigatório clarificar a razão pela qual parecia que arrastavas o peso de uma cruz demasiado grande para a tua idade. Foi uma luta de gigantes. Entre avanços e recuos, disseste, a certa altura - Não preciso de ninguém. Só preciso do meu pai.
Quase inconscientemente, rematei - E da tua mãe, suponho…
Perdoa a minha estupidez. Perdoa o não ter sabido compreender com o coração, como me foi ensinado, o acaso ou a não coincidência da tua chegada à minha vida.
A minha mãe morreu com cancro, no final das férias. - balbuciaste.
Uma parte de mim queria fugir dali. Outra, a mais sensata, fez o que o coração exigia. Esqueci a hierarquia professora/aluno. Esqueci o politicamente correcto, e contei-te alguns episódios da minha vida. Entre risos - só meus, porque me preveniste que só rias quando havia humor - e emoções, contei-te uma - várias? - história feita de instantes, feita de imagens passadas e desfocadas, feita de medos, de perdas, de aceitação. Feita de cumplicidade. Não era uma história de fadas, claro. Rapazes de 14 anos preferem outro tipo de relatos. Mas a minha narrativa, como por magia, prendeu-te a atenção. E olhaste para mim. E embora não chorasses - mais dia menos dia vais precisar desse alívio - os teus olhos estavam húmidos. Sombrios e molhados de lágrimas contidas.
A campainha tocou. Como noventa minutos passam céleres quando são ocupados pelo espaço de palavras que entram por todas as janelas e se repercutem nos corredores da alma!
Pegaste nos livros e ias, creio, sair sem um adeus. Eu sou teimosa, A-----, não subestimes os meus créditos, amigo! Olhei para ti - nunca mais esquecerei o teu rosto - e disse-te - O meu nome é A.R.. Podes decorá-lo?
Não! Nunca decoro nomes. Não me fazem falta. - voltaste a repetir.
Estás enganado, A-----. Ninguém pode viver isolado. Ninguém sobrevive sem a mão, a ajuda, a amizade, o amor dos outros. A menos que seja um robot. E até esses, A-----, precisam de manutenção. Chamo-me A.R.. Podes “guardar” o meu nome? - insisti.
Como é possível, pensei, um adolescente, ainda uma criança, poder suportar, sozinho, tanta raiva, tanta revolta, tanta disfarçada sede de “colo”?!
Está bem. Não volto a pedir. Não queres dizer o meu nome… não digas. Sou mais uma prof. da sala de estudo. Mas uma coisa podes anotar, o teu nome ficou comigo. E, aí, tu não podes fazer nada.Então, até um dia destes, A-----. - concluí.
Até um dia destes, professora A.R. - ouvi-te retribuir quase à socapa.

Nota: Nada do que foi escrito pertence ao reino da ficção. Nada foi deturpado. Apenas me abstive de narrar a totalidade da conversa que tive com o A-----.
O episódio não acabou aqui. Fui saber quem ele era. Constatei que apenas a directora de turma conhecia a história daquela vida, porque fora informada por familiares.
Não o voltei a ver. Não pretendo ter a veleidade de acreditar que mudei a existência de alguém. Mas aguardo.Todas as quartas-feiras, espero ver entrar, na sala de estudo, um adolescente vestido de preto.Tenho esperança que ele já não negue o meu nome. No entretanto, de vez em quando, mando-lhe um abraço pela minha colega. Há alguns dias, ela “entregou-me” um abraço do A-----.

AMS

O 5º elemento

Cinco da tarde.
Sonho Dourado.
Os quatro amigos do costume.
Coincidência… Talvez não… Mesa número cinco.

Como um flash, a todos ocorreu a mesma ideia - falta aqui o Roberto! O 5º elemento da mesa cinco. O companheiro de viagem que, sem pacto de sangue, mas com a fidelidade das almas habituadas a usar a palavra como fonte vital do sonho, desejos, quimeras, metas a atingir, acredita que a felicidade não tem idade nem tem hora.
- Me desculpe, Ana, mas como foi que você conheceu o Ro berr tinho? - indagou a Eugénia, plagiando o sotaque brasileiro. Caiu de pára-quedas no folhasoltas? Hum… as probabilidades são mínimas… "Credito" não, amiga!
- Eugénia, o que tu foste perguntar!!! - replicou a sensata e jovial Sónia, sorriso aberto, perspicaz, nada dada a enigmas. Se não lhe cortarmos o pio, vai começar, de imediato, a dissertar sobre a teoria do conhecimento e… népia. Ficas a saber o mesmo.
- É estranho, muito estranho… Não recordo bem… Foi como uma aparição, acreditam? Uma espécie de arco-íris que entrou, devagarinho, nas nossas vidas, quase sem darmos conta… E ficou. Provavelmente… - divagava já a Ana como, "sabiamente", prevenira a bem-humorada Sónia.
- Às favas com as probabilidades, Ana. Tretas! Fazes muitos filmes. - replicou, sorrindo, a sempre pragmática e decidida Eugénia.
- Vocês elaboram cada teoria da conspiração. Damas! O homem escreve, certo? Escreve bem. Isso nos baste! - atalhou, oportuno e certeiro, José Almeida - não fosse o poeta o guru do grupo .
- Mas, afinal, o que é que sabemos dele?! Uma aparição. Partimos daí, ok. Mas já pensaram que até mesmo uma aparição pode ser descrita com contornos mais ou menos definidos? Que sabemos nós acerca dos contornos do RR?! Não há fotos - só poemas; é o chefinho de alguém; não gosta de memorandos; detesta ônibus lotados, xinga os trapaceiros, faz figas a certos políticos… - argumentou Eugénia.
- Sabemos mais, ora. Sabemos que não é alegre nem triste; não é pobre nem rico; nem é feio nem bonito; nem…
- Mas galã é, Ana, tenho a certeza. - afirmou, convictamente, a mais "en avance" do grupo ( a narradora não acha necessário identificar a personagem, visto que o estrangeirismo a denuncia imediatamente) .
- Xiiiiiiiiiiiii! - continuou a "dizela" - Já faltava esta! Estas a desvirtualizar o teu habitual slogan da objectividade. Já viste o homem? Realmente visto? Já? Então, cara Eugénia, só captaste uma leve impressão digital. Foi assim que ele se caracterizou. Tão-somente uma impressão digital. O nosso amigo é muito modesto e … brincalhão. Bem, poder-se-á ainda concluir que é sensível, simpático e romântico. Lembram-se daquela lista de canções que o perseguiam no shopping?
- Já agora, acrescentem outros atributos, meninas armadas em Sherlock Holmes - ironizou, subtilmente, José Almeida. Se estão a basear-se só nos textos, cometem grave erro, já que não devemos confundir autor com narrador. Todavia, e seguindo a vossa linha de pensamento, poder-se-á concluir que o companheiro Roberto Policiano é amante fiel de docerias.
- Sabemos mais! Sabemos mais! - quase gritou a Sónia. Tem muitos amigos: Seu Asdrúbal, Dona Gertrudes, Adamastor, Laércio, Dr. Lucas… Além disso, é primo da Zezé e tem um tio chamado Lalá.
- Parem! Retenham a vossa fértil imaginação, por favor. Aqui e agora, o Roberto Policiano é um AMIGO. Um bom AMIGO. Será campeão de bolinhas de gude? Não sabemos. É, contudo, campeão da simpatia e da afabilidade. Basta repararmos na maneira como nos cativou. Chega de divagações, caríssimas colegas! - rematou, solenemente, o chefe daquela animada "banda".
- Será possivel que, um dia, ele venha a Portugal? No reino do folhasoltas isso é viável. Sê-lo-á no mundo real? - cismava Ana, a pensadora ( a narradora não pretendeu dizer Gabriel...).
- Ôba! Se Maomet não vem à montanha, vai a montanha… a S. Paulo! Deus pode ser brasileiro, mas quem partiu rumo ao Brasil fomos nós, portugueses. Por isso, meus amigos, pés ao caminho e barbatanas à água!
RR, vá colocando champanhe no freezer! Nós estamos chegando.


Nota: Por estranha coincidência, nessa hora, nesse preciso momento, Roberto Policiano escrevia o seguinte email:

Para: Angel, Digoeu, Eugénia, José Almeida e demais amigos

Cc:

Cco:

Assunto:

Estou de partida para Portugal. Pego ponta aérea, esta noite. Chego amanhã à tarde.

Aquele abraço,

Roberto Policiano

AMS

sábado, novembro 11, 2006

um poema

Queria escrever o mais belo poema de amor.
Um poema que não falasse do eu, do tu,
mas dos laços que ligam o eu e o tu.
Um poema que traçasse a percepção
de que só o amor cabe no ocaso sem limites,
um amor imenso, infinito, soberano,
um amor que, na sua vertigem, alastrasse
para além do real, devorado pela pressa de crescer
mais, sempre mais, dentro de nós.
Um amor feito de desejo violento e de densas
clareiras de ternura.
Um amor que não morresse a cada instante
nas margens da rotina, dos preconceitos,
da estreiteza de palavras opacas
pintadas em paredes de cenário.
Um amor sem dedos apontados, culpas,
sorrisos tristes e magoados.
Não sei se tal amor existe ou se é utopia,
fantasia sedenta de encontrar o porquê
de ser-se no outro para além do possível,
para além do indecifrável, para além da sensação
de que o amor é muito mais que tudo isto.
Queria escrever o mais belo poema de amor.
O maior despojamento. A loucura mais completa.
Mas não sei. Não sou capaz. E o poema empalidece.
Que estranha ironia esta de escrever o que
sinto, obstinadamente abraçada à ideia
de que finjo o que escrevo?!

AMS

Fogo-Fátuo

Volto a viajar no tempo. Recuo até uma pequena vila, Britiande, e sinto, como outrora, uma íntima doçura que me preenche de tranquilidade. É verão. Os dias são quentes, abafados. Mas não são imprecisos nem encalhados. São descoberta, brilho, magia. Nós somos muito jovens, ansiosas de vida e carregadas de sonhos. Duas adolescentes começando a vislumbrar o sabor caprichoso do amor. Que amor? O Amor. Estamos naquela idade em que se ama o Amor. Consigo ver, nitidamente, o rosto da minha prima. Esvoaça num universo maravilhoso, cheio de cenários que ainda são novidade e frescura convidativa. Está apaixonada e, ao mesmo tempo, temerosa da figura severa e pouco dada a “romantismos” do meu tio. A outra, fantasiosa, irreverente, tão dolorosamente ingénua e infantil, a outra… sou eu.
Aproximemo-nos. Tentemos, sorrateiramente, ouvir o que dizem.

- Ele vai estar, logo à noite, na Casa do Povo, tenho a certeza. O meu pai nunca nos deixará sair. Que podemos fazer?
- Lai, eu não peço… Acabo sempre castigada, com fama de ser eu a “desencaminhar-te” e… sem proveito nenhum.
- Mas tu costumas ter sempre ideias fantásticas. Pensa, pensa! Dou-te aquela saia que passas a vida a pedir-me emprestada. Se eu não for ao baile, a parvalhona da quinta da Várzea vai pescá-lo, aposto. E eu vou morrer de tristeza e tu de remorsos.
- Dás-me a saia? De certeza? Hum… Deixa-me pensar… A saia e a blusa azul. Senão… hã… não alinho. É muito perigoso e, além disso, é uma chatice ficar a jogar matrecos com o parvo do amigo dele enquanto tu vais namorar.
- És uma oportunista, uma chantagista, sabias?
- Não sou eu que quero ir à festa, sabias? E, pensando bem, o risco não vale a porcaria da blusa.
- A blusa é tua! Satisfeita? Como pensas escapar à vigilância do meu pai?
- Ora, é fácil. Eles deitam-se cedo, não é? Saímos quando estiverem a dormir.
- E os cães, espertinha?
- Eu não disse que saíamos pelo portão, burra. Saltamos da varanda para o terraço e do terraço para a garagem. Depois, é só pular para o carreiro junto ao muro, percebeste?
- Tu és maluca! Ainda nos aleijamos, o senhor teu tio acorda, descobre tudo e estamos desgraçadas.
- Engraçadinha! Para que servem as aulas de ginástica? E se tens medo… desiste. Não sou eu que quero ir até à vila…
- E o cemitério? Já pensaste? Temos de passar pelo cemitério… sozinhas…
- Pois… o cemitério… Dizem que a mulher do Toino da Campina aparece, à noite… Lai, e se ela nos aparece? Acho que preferia dar de caras com o teu pai, apesar de tudo.
- Tu não aprendeste tanto cântico religioso, no colégio? Fazemos assim: passamos a correr e tu cantas “O Senhor é meu salvador…”. De certeza que ela não se atreve a vir ter connosco.
- Cantar não estava no acordo. Quando formos a Lamego, pagas-me um gelado.
- Ainda dizem que tens alma de poeta, minha grande vigarista. Pronto, pago-te o gelado!

Estes périplos - sim, foram alguns - resultaram em pleno. Ninguém desconfiava. A mulher do Toino parecia ignorar as nossas aventuras. Os cânticos religiosos passaram a ter pequenas variantes e assumiram mesmo um estilo que - penso eu - viria a dar origem ao rap. A experiência criou duas mestras na arte de bem saltar, namorar e jogar matrecos. Infelizmente, tudo tem um fim. O nosso - e o das visitas à Casa do Povo - deveu-se a um incidente assaz curioso, mas que, na altura, nos deixou aterrorizadas e sem vontade de repetir as nossas gloriosas, bucólicas e nocturnas façanhas. Num desses sábados, já de retorno a casa, entusiasmadas e desprevenidas - quanto maior a facilidade, menor a atenção e os cuidados - olhámos, involuntariamente, para o lado do cemitério. Devo explicar-lhes que estávamos em pleno Agosto e o calor não abrandara com a chegada da noite. Subitamente, algo nos gelou o corpo e a alma. Faíscas azuladas saíam de uma ou outra campa. Era - veio-nos de rompante à memória - a mulher do Toino! Ia ajustar contas connosco - pensámos. Aos gritos, completamente horrorizadas, corremos, corremos, só parando no quarto. Se entrámos pelo portão, se o trepámos, ou se praticámos alpinismo através das paredes da garagem… não recordo. Recordo - isso sim - que, durante noites, duas almas penadas, imóveis, arregaladas, vigilantes - nós - se penitenciaram dos seus pecados fazendo não sei que bizarras , dolorosas, hilariantes promessas.
Aquele verão chegou ao fim. Voltámos à azáfama das aulas. Contudo, durante muito tempo, fomos cúmplices de um segredo que nos atormentou o sono em forma de pesadelos luminosos. Ambas sabíamos que aquele brilho, aquela luz que parecia dançar sobre as campas era, sem réstia de dúvidas, a mulher do Toino da Campina.
Quem duvidaria?!

Nota: Anos mais tarde, aquele filme de terror, aquele enigma que mais parecia um dos segredos de Fátima - tão bem o guardámos - passou a ter uma explicação. Dados cientifícos confirmavam tratar-se de um fenómeno assaz comum provocado por gás metano expelido de corpos em decomposição, e apelidado de fogo-fátuo.
Talvez…


AMS

tudo perdemos

O que perdemos foi quase nada. A arte de tocar o céu e o universo inteiro.
O desejo delirante, como veios de sentidos de espontânea combustão, desfrutado na raíz da nossa pele.
A emoção de seivas imprevistas que saciava a sede de volúpia que nos ardia na alma.
A magia das noites felinas que norteava as rotas das nossas mãos.
O estar em ti e tu estares em mim.
Como vês, o que perdemos foi quase nada...

Perdemos, apenas, o direito ao amor!

AMS

sexta-feira, novembro 10, 2006

ternura

Bastaria um gesto
Uma simples palavra
Molhada de ternura
Para que do gume da noite
Não mais florescesse
Um dia triste


AMS

sempre tu

és sempre tu que eu vislumbro
no respirar das coisas
adormecidas
sempre a tua presença
nesse momento de serena
quietude
num entardecer que lembra
que o tempo não importa
basta o olhar
em silêncio

AMS

desafio

Apetece-me contar,
Apetece-me sentir
Que não me esgoto em mim
No que sou, no que sonho.
Apetece-me folhear, como brincando,
O livro do destino entreaberto
A quem ousa acreditar
Que a regra se pode subverter,
Que nada nos obriga a ser quem fomos.
Apetece-me acreditar que ainda há tempo
De semear nos olhos de outrora
A força livre de ser,
E que, mesmo que as palavras se esgotem,
A minha alma tece-lhes os sentidos.

AMS

Ela

Enquanto a tarde passeava numa obliquidade entediosa, perguntou-lhe, de rompante, com uma centelha de ironia - "Mas, afinal, que queres tu da vida?!".
Olhou para ele. Sorriu. Talvez surpreendida pela banalidade da pergunta ou pela ratoeira, subtil e sarcástica, que a acompanhava. E se lhe respondesse - guardando o cinismo no bolso - que se contentava em passear, à beira-mar, sorvendo o céu alaranjado de um cair da tarde?! Que já não apreciava antecipar angústias!? Que começava a aprender a não ter pressa, a saber sentar-se à sombra da sua calma numa cumplicidade harmoniosa com o tempo!? Que estava farta das inconsequências da sua vida!? De ter desperdiçado a simplicidade e a ordem natural da existência humana. Dia após dia. Noite após noite. E que até mesmo os ideais - incrivelmente prosaicos, materialistas - de que ele tanto falava e que pareciam preencher, na plenitude, a sua vida - até a esses ela ia dar-se ao luxo de não os querer no seu percurso. Não tinha projectos. Não faria mais planos. Atirá-los-ia à sanita e descarregaria o autoclismo. Jogo perigoso? Talvez. Mas era interessante entregar as cartas ao destino ou ao simples e despreocupante - logo se vê! A sua vida fora, até ali, delineada, imatura, disparatada. Deixara de ter identidade própria. Sabia, agora, que a felicidade se encontra no afecto mútuo. Na vontade de eternizar tudo aquilo que vemos e sentimos. Ou no que não vemos… e sentimos também. Todos sonhamos, amamos, odiamos, rimos, choramos e… morremos.
Adivinhava o que ele estaria a pensar. Mas estava-se nas tintas para o seu paternalismo sensaborão, narcisista, demasiado previsível. Sim, conseguia adivinhar os pensamentos dele - "Esta mulher vai ter um final trágico". Ele fazia-a rir. Talvez por isso ainda não dera meia volta e lhe virara as costas. Não, não andava a ensaiar o seu suicídio com estricnina para o final do terceiro acto. Desapontado?! Acontece… De uma coisa estava certa, "começaria de novo" as vezes que fossem necessárias. Ninguém cresce vazio, por mais que, num olhar de fugida, se sinta assim. A diferença abissal entre as suas vidas era, afinal, uma questão de sensibilidade e de mais ou menos contornos transparentes. Ela acreditava que ainda podia salvar-se. Bastava deixar a vida cumprir-se, revelar-se. Ela ainda conseguia acreditar no que via e naquilo que não via. Ela ainda desenhava uma expectativa de ilusão. Uma trajectória - ainda que vacilante, temerosa - do que queria da vida. Porém, ele, o grande herói, aquele que se orgulhava de gerir bem as emoções - emoções? Coisas de loucos e poetas, segundo a sua opinião - sim, ele ficaria, irremediavelmente, cinzento e mirrado pela sua presunção. Pela sua universal ambição. Um ser perfeito, lúcido, lógico como um matemático. Com uma vidinha certinha, perfeitinha, programada ao milímetro.
Apetecia-lhe gritar - sabes o que penso quando olho para ti, para essa tua vidinha empanturrada de negócios, planos, contradições, incoerências, mundos paralelos, egotismo? É uma merda! Sim, ouviste bem, a tua vida é uma merda. Fica com ela. Não quero fazer parte dessa encenação. Acreditas ser um deus. Encenas com primor esse papel. Agrada-te a comparação? Não deites foguetes antes do tempo. Representas, sem parcimónia, esse papel. Deus. Tu és um deus. Mas um deus menor, daqueles que são feitos de cartão e verniz e que nunca entrarão no Olimpo.
Sou bizarra? Louca? Vá... não poupes esses insultos que tens tentado manter aprisionados há tanto tempo. Serei eu a louca?! Não és tu que achas que é necessário recuar ao Big Bang e repor a ordem do universo?! Todavia, enquanto tu te dedicas à árdua tarefa de tentar salvar o mundo do caos, da loucura, do excesso de sensibilidade e sentimentalismo, se não te importas, vou continuar a passear, à beira-mar, sorvendo o alaranjado do céu, dando livre arbítrio aos meus pensamentos, às minhas emoções, à minha vida. Respirando devagarinho. Sem sobressaltos. Admitindo uma felicidade simples, inocente, inefável. Deixando-te a monumental tarefa e o peso grandíloquo da milenária obsessão de procurar comandar o sentido da vida. Inexplicável. Inalcançável.
E a tarde espraiava-se, enfim, liberta de todo um leque de erros. Ansiosa, frágil, sensível, mas… sobrevivente.

AMS

sexta-feira, novembro 03, 2006

re(verso)

não quero mas penso em ti
num vendaval de sensações
que a toda a hora
me escraviza me amargura me devora

e de tanto rever a tua imagem
gravada no meu peito
presa em mim
em louco e desvairado frenesim

sinto que a mim mesma me condeno
a ter no coração um rosto
que se esfuma
e se transforma sempre em coisa nenhuma

AMS

Beleza

Tento acompanhar o voltear gracioso como se um átomo de infinito adquirisse contornos reais. E aprendo os ciclos naturais da vida - o êxtase do começo, a fugacidade da duração, a sabedoria do fim. Dou-me conta de que um instante pode ser o tempo todo. De que um instante fica ou se perde para sempre.
Este momento está impregnado de magia. É como se a harmonia projectada pela bailarina rodopiando... rodopiando... rodopiando num bailado suspenso no tempo, me envolvesse subtil e profundamente. Olho-a e olho-me. Não há passos indecisos, gestos ocultos, mãos balouçando receios. Há plenitude, serenidade e uma luz quente que acompanha os seus movimentos e me envolve de emoções há muito retidas. Reatadas. Assumidas.
Contemplo, com mágica clarividência, a pequena estatueta. Os deuses, afinal, existem. Quem, senão eles, para atear tanta beleza fluindo, graciosamente, do corpo esguio e etéreo da bailarina?!
Mas o tempo de mágico sortilégio esvai-se... Não se pode forçar a visão sedutora e rara do eterno.
Começo a baixar, lentamente, a tampa da caixa. A música, em surdina, evaporando-se. E a bailarina partindo. Voltando ao segredo grandioso da criação. Qual? Pouco importa. Conhecê-lo seria diluir a face divina que o mistifica. Basta a beleza do que me foi dado perceber. Basta sentir, ainda, a melodia ecoando dentro de mim.

AMS

sei

sei
que em cada lugar que eu esteja
em cada lugar que eu more
em cada lugar ausência
em cada lugar saudade
fechado
guardado
na vertigem do sentir
há a vontade de no tempo me perder
num urgente começar
em qualquer lugar
os sonhos de mim
sem fim

sei
que em cada lugar vivido
conseguido
luz a eterna memória
de haver sido

AMS

quinta-feira, novembro 02, 2006

sem retorno

nos poemas acumulados nas gavetas
para leitura de
ninguém
no sorriso do espelho que nos fita
ironicamente agastado pelo
tempo
nesta música de encontros desencontros
e de amor arrumado em prateleiras
esquecidas
nos momentos de afogadas intenções
de um tempo exacto que não se
viveu
damos conta que tudo acaba num aceno
sem ternura
para enfeitar despedidas
sem retorno

AMS

As aventuras de um sedutor ou a arte de ver estrelas... ao perto

Estava decidido. Hoje desafiaria a sorte. Sentia-se uma espécie de Omar Sharif em Lawrence da Arábia, e os ventos da sorte - acreditava - estavam do seu lado.
Apontou-lhe um sorriso cintilante - daqueles que parecem ter sido polidos com Duraglit - e fustigou-a com um olhar intenso. Mais profundo não podia ser ou corria o risco de trocar os olhos.
Ela encolheu-se no sofá e pôs-se a olhá-lo, de soslaio, entre desconfiada e divertida. Mais divertida do que desconfiada. Aquele corte de cabelo - estilo Eduardo Mãos de Tesoura - aquela pose de star men, tudo, enfim, era deliciosamente hilariante. Que figura caricata! E com tantas flausinas em telepromoção, sedentas de romantismo, lirismo, bucolismo e outras ardentes variações igualmente terminadas em ismo, logo havia de se virar para ela aquele mastim famélico a imitar um xeque árabe... sem poços de petróleo. Aguardou a investida.
O “xeque”, qual ave de rapina ávida de apanhar a indefesa presa, aproximou-se, perigosamente, do sofá. Mas, ao invés de tentar agarrá-la, voltou a presenteá-la com um daqueles sorrisos que trazem anexada a seguinte legenda - Tu és verdadeiramente inacreditável! Melhor, muito melhor do que a Claudia Schiffer ou até mesmo a Bárbara Guimarães…
O mastim afiava os dentes, hã?! Caramba, ia ser difícil livrar-se daquele dobermann que, sem aviso prévio, acometeria mal ela mostrasse a mínima fragilidade. De rompante, levantou-se do sofá. Ele seguiu-a. Ela recuou ainda mais, pensando com algum conforto - Quem pensa que nos faz assustar, mais dia menos dia, faz-nos bocejar.
Ele ia-se aproximando com passadinhas inocentes de hiena esfomeada, pronta a dar o salto, enquanto dizia - Já te sinto tão entusiasmada quanto eu, minha pequerrucha - (pequerrucha?!!!) . Quero encher esse coraçaozinho de felicidade. As almas não mentem, meu anjo, e as nossas dizem que a atracção é recíproca…
Irra! Que notável desfaçatez! Atracção recíproca?! Esqueceu-se do fatal, coitado. Mas, meu caro, há uma certa disparidade de investimento e lucro com a qual é sempre bom contar. Pelo que te toca, meu figurão, a disparidade é altíssima.
- Meu querubim, entrega-te. Desiste dessa luta inglória e mergulha na incandescência amorosa das nossas vontades, do nosso desejo…
O rottweiler não desistia e, pelos vistos, começava a mostrar uma certa tendência para a religião. Hum… um rottweiler com asas não entrava no guião. Ela recua. Recua tanto que as costas param na parede. Alto lá… daqui não passo e se ele continua a aproximar-se mais estarei no epicentro de uma desgraça iminente… ainda que celestial...
- Minha bonequinha tirolesa, não tens saída. Vem a meus braços… vem… vou recitar-te a Ode Triunfal… vem… dá-me a tua mão… deixa-me guiar-te... Far-te-ei ver o sistema solar todo: estrelas, planetas…
Que mania aquela do firmamento. Aquilo já nem com exorcismo passava, livra! Olhou uma última vez para o Adónis que mantinha o sorriso de quem ganhara o jackpot. Quando ele lhe agarrou, sofregamente, a mão, encaixou-lhe, literalmente, um dos quadros da parede, na cabeça. Pum…. O “verinaice” estrebuchou e caiu, redondo, no chão.
Por breves momentos, muito breves, ainda pensou varrer os restos da moldura e da tela. Ora… ele, quando acordasse, que os mandasse reciclar. Por agora, deixava-o “entretido” a ver as tais estrelas * * * * * . Sozinho, claro. Sem a bonequinha tirolesa, pois…
Fechou a porta atrás de si e pensou: quem entra no baile… acaba sempre por dançar... ainda que sozinho!

AMS

não digas para sempre

não digas para sempre
meu amor
quando inquieta por esquiva
verdade nos teus olhos
te pergunto se o
meu amor
em tua mão seguro
se acolheu

para sempre é toda a vida
e toda a vida é o momento suspenso
no que leio nos teus olhos
que soletram desapego
no que em mim pede aconchego

AMS

Porquê?!

Rostos assustados,
Amputados de sonho e futuro,
Olhares perdidos, vidrados,
Tão frágeis ante o absurdo macabro
Do que não compreendem.

E vós, os poderosos,
Os das mãos pesadas de sangue,
Vós que não contabilizais vidas,
Apenas balanços rigorosos do petróleo,
Vós, senhores da vaidade e da arrogância,

Sim, vós!

Que sabeis do desespero,
Da cicatriz da morte passeando-se
No silêncio aflitivo da alma,
Das esperanças cimentadas,
Dos gemidos carbonizados,
Da angústia esquelética,
Das lágrimas metralhadas
Das crianças que, inocentes dos vossos erros,
Vítimas da vossa moral
Obscena de equívocos e simulações,
Experimentam o sabor negro da morte
Que as cerca, que as abraça com as armas
Egocêntricas da vossa cegueira?

Que sabeis dos seres indefesos,
Atados à vossa ambição
E à vossa nefasta loucura?
Com que repulsivas palavras,
Senhores, ireis amordaçar o peso
Insustentável do seu

Porquê?!

AMS

quarta-feira, novembro 01, 2006

SPA - Sanus Per Aqua

As mulheres, meus amigos, podem ser os seres mais solidários do mundo - algumas, note-se! A sua terapia de grupo de apoio funciona às mil maravilhas. Elas sabem dizer aos outros - algumas, volto a frisar - o que gostariam que lhes dissessem. Logo, e seguindo esta linha de pensamento, quatro amigas - Ana, Carla, Eugénia, Manuela - resolveram aderir ao que apelidarei de “terapia da limonada”. Artificial - a limonada, pois!
Chorar baba e ranho em “comunidade", caros leitores, dá confiança, acaba com os egos destrutivos, extermina os chamados buracos - de ozono?! Não! - na garganta e na alma. Enfim, recupera-se a auto-estima, canalizam-se os desgostos para o Iraque, aprende-se um curso acelerado de corte e costura, e só não se é feliz para sempre porque, nesse caso, lá se acabava a terapia de grupo e de apoio. E, sobretudo - desgraça das desgraças - lá se ia a limonada. Sintética!

Sexta-feira, 8 de Julho de 2005. Quatro amigas - nenhuma de Peniche - dirigem-se a Melres - que, por acaso, estava a arder - num sinal inquestionável de amizade, partilha e cumplicidade. Quem leu Os Três Mosqueteiros - na realidade eram quatro - compreenderá este tipo de união. Uma por todas, todas por uma! Lindo! A verdade é que as “termas” da Carla são uma quase perfeita imitação do SPA da Givenchy das Maurícias, mas do tipo "caseiro" e com menos glamour, topam? Mesmo assim, a chegada foi triunfante. Entre o rasar dos helicópteros, faúlhas, cheiro a queimado, bombeiros disponíveis - e aqui interpretem como quiserem - o Douro, ao fundo - sem piranhas - ei-lo que se abre. Quem?! Bem, não é quem, suas mentes perversas, é o quê?! O portão, claro. Um misto de construção manuelina, barroca e… bem, não sei se diga, nem sei se pense... um estilo assim a modos que um bispo sem mitra, estão a visionar? (Carla, isto é tudo a brincar, porque adorei o jardim, as cinco portas que não percebi se eram só décor - ou seriam quatro? - o Douro e… os limoeiros!) .
Continuemos. Ah… apenas um “piqueno” pormenor - como sempre a 4M chegou atrasada. Noblesse oblige! Porém, devo salientar que a sua entrada triunfal - não, não quis dizer Ode Triunfal - foi ao som da Nina Simone - My baby just cares for me - com que a Eugénia, sempre uma caixinha de surpresas, resolveu presentear-nos. Para criar ambiente e lagrimitas mais plangentes, presumo. O Douro, o fogo, os helicópteros e… blues! Que cocktail explosivo e, por que não dizê-lo, com muita classe! Será isto o chamado charme discreto da burguesia?! Depois desta interrogação retórica, a narradora pára para meditar...
De A a Z nada nos escapou. Até de si falámos, pode crer. Sim, não core, de si! Um curso intensivo e multifacetado: música, poesia, amor, zoologia, morfologia e… sintaxe!
O lanche? Nem lhes conto… A limonada, ai a limonada… Divina! De cada vez que a Carla saía para o jardim, imaginava-a qual camponesa - igual à do Rui Veloso, estão a ver a cena?! - a trepar aos limoeiros - sem imposturas tolas, mas também sem o tal ramalhete rubro das papoulas e sem o burrico… - a arrancar os limões que, de imediato, transformava num néctar delicioso. A sorte é que, para já, os limões não têm álcool. Ou aqueles teriam?! Outra interrogação retórica que deixa a narradora num estado de reflexão tibetana.
Incidentes? Nada que quatro amigas solidárias não resolvessem. Aparte a alça do top da Manuela - sempre muito discreta, diga-se - que teimava em cair, os telefonemas - vários - que recebeu, trocando, estranhamente, a identificação de quem lhe telefonava, sms pululando - misteriosamente - para o telomóvel da Eugénia, o rubor da Carla sempre que elogiávamos a limonada e a minha atracção fatal pelo… Douro, poder-se-á dizer que a tarde foi agradabilíssima, recheada de gargalhadas, croissants, fumo e limonada… sintética.
Desculpa, Carla, mas agora vou mesmo contar! Não é que a limonada cristalina, saudável, sem corantes nem conservantes era - ó desgraçada! - pura gasosa com casca de limão ressequido e congelado?! Esta, anota, ninguém te perdoa.
Y punto, que é como quem diz, fim… ou quase! Os agradecimentos da praxe, os beijinhos habituais, a solene promessa de repetir a “dose” - mas não a limonada - em cada segunda sexta-feira de cada mês e … novamente o portão. Como eu adorei aquele portão! E as colunas, e as esfinges e os vasos de sardinheiras?!
Ah… ia esquecendo. Enquanto as despedidas decorriam, a Eugénia percorria as termas de Melres em busca - não, não era da esmeralda perdida! - do melhor local para tirar uma foto ao Douro. No entretanto, as cinzas salpicavam o ar numa chuva de prata e fogo (que pena a ex abelha-mestra não ter estado connosco!)... A minha amiga é uma bucólica nata, não haja dúvida! A Manuela ia, simultaneamente, preparando os “soins de beauté” para um jantar de gala - gente fina é outra coisa! Quando saiu, aproximando-se do portão, apetecia mesmo dizer - antes e depois! Não, está tranquila que omito os detalhes, ó "glamorosa"!
E aqui acaba a descrição de uma tarde bastante (de)formativa - atenção aos mais precipitados - (de) formativa porque a tertúlia girou à volta (de) quatro formadoras. Linearmente óbvio.

Um abraço - sentido, muito sentido - às minhas três amigas: Carla, Eugénia e Manuela!


Nota: Os espíritos mais elevados - não é o meu caso - que traduzam este pequeno excerto:


"Sanus homo, qui et bene valet et suae spontis est, nullis obligare se legibus debet, ac neque medico neque iatroalipta egere. Hunc oportet varium habere vitae genus: modo ruri esse, modo in urbe, saepiusque in agro; navigare, venari, quiescere interdum, sed frequentius se exercere, siquidem ignavia corpus hebetat, labor firmat, illa maturam senectutem, hic longam adulescentiam reddit."

AMS

"Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta..." - José Tolentino Mendonça

o pano desceu
não há aplausos
apenas um súbito deserto
sulcado no ciciar célere da ilusão
como gesto gasto pelo tempo
sonho queimado pela vida

o espectáculo terminou
a farsa deu lugar à realidade
os actores retiram as máscaras
já não há palavras embebidas em éter
o silêncio silva como um chicote
rente aos lábios e ao coração
de rostos cerrados e parados
sem verdade e sem beleza

apenas um vulto quedou no palco
indiferente à mistificação do cenário
arrumando os papeis da vida
declamados por quem se limita a encenar
a evidência do fim em cantos de mil fogos
voos desordenados e entontecidos
na busca agonizante de um ser real e livre

o corpo pesa-lhe
o gesto é lento
a cabeça inclina-se para a frente
uma lágrima arrastada pelo desencanto
cai no sítio exacto
onde a vida e a morte se misturam
em liberdade definitiva

de repente
num desafiante frente a frente
com a sua grandeza e a sua pequenez
farto de uma existência sonâmbula
coloca num saco de viagem
a fuga aos homens repartidos e distantes
os sonhos maiores e os sonhos menores
a crença de que o território virgem do por haver
valerá mais do que a voragem do havido
apaga a luz e fecha a porta

AMS

A viagem

Era o tempo de arrumar gavetas, remexer memórias, afectos adormecidos pelo tempo. Sorver a poeira do que já foi, mas que, ainda que invisível, persiste. Como uma espécie de desejo realizado que comportasse o fim da solidão e do desencanto.
Folheou livros, releu cartas, viajou através de fotografias que marcaram, e ainda marcam, ciclos importantes da vida. Rendeu-se ao encanto de acreditar que ainda não era altura de dar um fim à história. Que ainda havia a possibilidade de ela se desenrolar sob a promessa de um céu sem nuvens.
Mas, estranhamente, tudo parecia reflectir a certeza da nossa efemeridade. Uma quase inevitabilidade exigindo, de certa forma, a nossa aquiescência.
Observou, atentamente, as fotos mais antigas, tentando fixar esse já inacessível instante, numa vã tentativa de prolongar a revisitação dos sentires para além do tempo.
O tempo, porém, ria-se, escorrendo-lhe pelos dedos. Lenta, inexoravelmente...
(Que poder tinham aqueles objectos que a transportavam a uma história já perdida, inelutável, como se, rendida, ela acabasse por se afeiçoar ao exílio da sua própria vida?!
Sempre uma ânsia dolorosa de tentar penetrar o segredo da ausência e do esquecimento. Sempre a recusa obstinada de erradicar a intrusa sensação volteando, ininterruptamente, da incerteza sem remédio do que virá. Sempre uma desalinhada (ir)realidade das nostalgias. Sempre o desejo universal de um final feliz.)
Arrumou, novamente, nas gavetas, aqueles desenraizados - tão perto e tão distantes - pedaços de vida. Ficou o vazio do cenário onde, outrora, tudo soou a encantamento, esplendor, emoção. Restou pouca coisa. Apenas gavetas fechadas. A falaciosa cumplicidade de um tempo irrecuperável. E o princípio e o fim dos dias a viver. Ainda a viver.

AMS