terça-feira, outubro 31, 2006

Halloween

Noite de todos os medos, fictícios e verdadeiros,
noite de fantasmas que nos perseguem,
ávidos, rindo às gargalhadas,
pelos becos sem saída de remorsos lacerados.

Noite de espectros, rostos perdidos
escondidos sob máscaras dementes de alegria,
ocultando identidades opacas, almas entrelaçadas
de atávicas, equívocas sombras que recusam dia claro.

Noite de feitiços, de sono da consciência, de bruxos
que oferecem, numa luz petrificada, o fulgor da paixão,
iludindo a triste sina de quem apenas pretende,
acossado entre neblina, mascarar a solidão.

AMS

Hoje

Hoje é a hora de pagar
De cobrar
De tirar dividendos
Ou fechar

Hoje é a hora de fazer balanço
Hora certa de equilíbrio
De nudez
De assumir a pequenez
Num desafio que reclama
Do primeiro ao último dia
O gesto límpido
O sonho lúcido
A eterna chama

Hoje é a hora de cravar a esperança
No ventre da terra
E pedir o céu ao céu.

AMS

segunda-feira, outubro 30, 2006

Madame X

"Entre a verdade que dói um bocadinho e a imitação que distrai um pouco, faz-se da vida uma aventura errante."


Todos nós, de uma forma mais ou menos assumida, mais ou menos masoquista, mais ou menos hilariante, guardamos na memória - e no recôndito mais recôndito da alma - um filme. Um filme? Sim, um filme, ou antes, o filme. Aquela "fita" que marcou, definitiva, irreversivelmente, a nossa vida.
Podia enumerar uma lista infinita de razões que nos levam a sucumbir ao encanto de uma história que se molda em nós de uma forma hipnótica, ajustando-se ao nosso tempo reservado ao sonho. Tempo suspenso que redime e perdoa e seduz e espanta e sorri. Tempo que deixa a lua espreitar pelo rasgão da clarabóia do nosso imaginário.
Voltemos, porém, ao busílis da questão. Também eu, para o bem e para o mal, fui "tocada" por um ou outro filme… com uma magnitude equivalente ao grau 9 da escala de Richter. Uma questão de sensibilidade? Sem dúvida. Mas, sobretudo, um triunfo do coração numa versão "la vie en rose". Claro que o "rose" pode sempre desbotar e o nosso coraçãozinho, esvoaçando sobre o abismo - leia-se tragédia - depara-se, muitas vezes, não com o habitual "e foram felizes para sempre", mas com as águas negras, medonhas e gélidas que engoliram o Titanic e… o Di Caprio.
Filmes há - é uma constatação - que nos fazem soluçar convulsivamente, durante horas, mergulhados na mais abjecta dor, no desespero mais inglório. Quem resiste a uma Inês de Castro sem cabeça? A uma Anna Karenina que, louca de desespero pelo abandono do seu conde Vronsky, se lança, num acto lancinante, para debaixo do comboio? A uma mística e fervorosa Joana d’Arc toda chamuscadinha? À coragem de uma Cleópatra que, "poseuse" e sensual, coloca o braço dentro de um cesto para ser mordida por uma víbora nojenta, completamente alheia ao fogo da paixão - a víbora, entenda-se - ?! Isto, claro, para não falar da destemida Scarlett O’Hara na cena final em que Rhett Butler, indiferente à fragilidade da heroína, sai, deixando a porta aberta…; ou, ainda, da desgraçada Katharine Clifton - O Paciente Inglês - esperando, em vão, pelo sedutor e malogrado Lazlo Almasy… abandonada, esfomeada, cheia de frio, tão cheia de frio, coitada, que enregelou. Não, não há coração que aguente tanto melodrama, tanto sofrimento, tanta tragédia amorosa.

Que me recorde, fui (obrigada a ) ver o filme "Música no Coração"… seis vezes. Duas com a família - a minha mãe deve ter tido receio que uma única sessão não fosse suficiente para absorver músicas, diálogos, enredo… Enfim, as vicissitudes da família Von Trapp, lição de comovente amor e patriotismo; quatro vezes - sim, escrevi quatro - com a tia Eduarda, professora de música, solteirona militante, santa alma, preconceituosa q.b. - mulher sozinha num cinema? Nunca! Assim, e como era eu a sobrinha "mais à mão", lá acompanhava a virtuosa senhora ao cinema, proporcionando-lhe, deste modo, um êxtase pleno. Suponho - e aqui "fala" a minha imaginação - que a minha tia, durante o tempo que durava aquela saga musical, se colocava no papel da preceptora Maria e, num passe de magia, se via saltitando por vales e mais vales, sempre rodeada de sete "canários" esfomeados de carinho.
No final da sessão, tia e sobrinha comentavam o filme. Bem, ela tentava disfarçar o efeito devastador do choro; eu tentava mitigar a sua emoção… entre risos e o respeito que o romantismo da doce criatura exigia. Com efeito, a boa senhora, olhos avermelhados de tanta lágrima, nariz a condizer de tanto fungar, lenço amarrotado de tanto o apertar, entre lágrimas e sorrisos de ventura suprema - afinal, o capitão tinha salvo a sua amada e os sete cachopos das mãos dos nazis - rematava sempre com a habitual frase - Gostaste, Ana? Percebeste tudo, filha? Aquelas freirinhas eram umas santas… Sabias que estive para entrar no convento, mas… blá, blá, blá… Santa tia Eduarda! Nunca se apercebeu que a ânsia e o nervosismo que me denunciavam nada tinham a ver com a doce Maria, o capitão e as freiras. Eram, confesso, fruto da minha enorme vontade de entrar na pastelaria o mais depressa possível. O prémio, o meu prémio consistia - daí a minha disponibilidade "cinematográfica" - na total liberdade de, no final, me empanturrar de bolos e outras iguarias afins. Sim, que, na altura, ainda não havia o MacDonald’s!

Outro dos filmes que deixou eco na minha vida graças à densa emotividade da minha mãe foi - Madame X. Na altura, o cinema do Terço passava os "clássicos dos clássicos", dedicando-lhes uma semana que só não era santa, porque, raramente, coincidia com a Quaresma. Contudo, os sacrifícios que alguns desses filmes me custaram, valeram, e não creio estar a exagerar, por não sei quantos "Ramadão". Se a memória não me atraiçoa, fui "convidada" a ver a malograda madame morrer, pelo menos - e continuo a não exagerar - umas três vezes. A minha mãe, essa, coitada, mal se sentava no lugar indicado no bilhete, tirava um lenço da carteira - os lenços ainda não eram de papel, muito menos as carteiras - aguardando, ansiosa, que as luzes se apagassem. O que se passava depois? Suspiros. Muitos suspiros. Lágrimas teimosas. Mais suspiros.
Eu, sentindo-me numa espécie de velório, mexia-me, remexia-me, olhava para a cara acabrunhada da vizinha da direita, ouvia os ais da fila da frente, olhava para o écran e, em desespero de causa, pedia um milagre - Deus, permite que o realizador mude o guião. Tem pena da minha mãe. Tem pena de mim. Tem pena da desgraçada que acaba sempre por morrer durante o julgamento.
É evidente que Deus estava sempre ocupado com outros milagres bem mais relevantes do que aquele. Resultado: a habitual reprimenda de uma mãe chorosa e incapaz de perceber a frieza da filha perante um drama tão intenso - Porta-te como uma senhora. Já viste o que a pobrezinha está a passar ?! Teria sido inútil explicar-lhe que tudo aquilo não passava de mera ficção. A minha mão só não vestia de luto, nos dias seguintes, porque, como é óbvio, a dor ia resvalando para um riacho de melancolia. E, finalmente, a melancolia dava lugar à lucidez.
À distância - mas ainda sorrindo - revivo a sua tristeza e ouço-me a dizer-lhe, baixinho - Não chore, mãe. Pode ser que, hoje, ela não morra. Quem sabe se não é a sogra que vai ter um ataque súbito de coração?!

Ó mãe, perdoa a minha indiferença. A minha total incapacidade de compreender - em sentida cumplicidade - a tua reacção, a tua palidez, o teu exacerbado sentimentalismo. Juro-te que, se um dia conseguir apanhar a história da tal madame, vou concentrar-me, sublimando as minhas emoções, e vivenciar aquele drama doméstico predestinado à desgraça... por culpa de uma sogra má.
Sem pipocas. Sem Coca-Cola. Sem forretice de lágrimas. Só com lenços de papel!

AMS

O meu herói

Corre, célere, o tempo. Fazes, hoje, um ano. Como cresceste! Quem diria, Rodrigo, que já passaram 365 dias desde a altura em que decidiste, num acto de arrojo e valentia incontidos, juntar-te a todos nós para encheres os olhos de coisas lindas, desconcertantes, novas, desafiando-te à descoberta?! As crianças, flutuando na doçura do frágil, estão sempre impregnadas de luz, maravilhosamente tontas de avidez pelo que estará para vir. E que estará para vir, Rodrigo? A vida. A grandeza dos sonhos que a suportam. Um mundo inteiro de gratificantes surpresas.
Acredito que, no fundo, foi isto que te levou a nascer com apenas cinco meses e meio de gestação. O mistério e o fascínio do que desconhecias… mas pressentias. Talvez, quem sabe, até a nossa indefinida fragilidade. Imbuída de interrogações. Tão comovedora, contudo.
É isto, enfim, que eu desejo para ti. Luz. O fogo das emoções. A beleza das coisas simples. Amor. Muito amor - é tanto o que te cerca! E essa ousadia, esse desejo indomável de viver ateando, permanentemente, o fogo e a graça de que és portador.
Hoje, enquanto dormias, serenamente, no meu colo, não pude reprimir, olhando-te, uma ternura imensa. Tão pequenino. Tão miraculosamente sobrevivente. Tão ousado nessa vontade incrível de experimentar a vertigem da vida.
Rodrigo, tu és o meu herói!

AMS

Barcos à deriva

"Assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração." - (Al Berto, Uma Existência de Papel)



Marulhar humano de um café. O vaivém constante dos que entram e saem. Simbiose multifacetada de ruídos e reflexos. A aparência da vida. Diálogos planando sem bilhete de identidade. Pessoas que conversam, riem, estudam, lêem. Cigarros esquecidos. Olhos vagos a trespassar espirais caprichosas, insondáveis. Horas repetidas. Horas vazias. Dias… meses… anos… A vida que passa.

A mulher - uma qualquer mulher – observa os imensos disfarces que a rodeiam. Disfarces que tentam ocultar a mesma irremediável solidão. Olha em volta e ao mesmo tempo para longe, deambulando o pensamento pelas formas circulares das mesas de vidro. Estava ali. Mas não era dali. Aliás, frequentemente, sentia que não era de lugar nenhum. Não haveria um lugar sem morte diária? Sem o frio contacto de pessoas que se limitavam a dizer-lhe – A tua cara não me é estranha. Viam-na. Não a conheciam, porém.

Continuou a olhar em volta, numa tentativa de afastar de si certos pensamentos, incómodas lembranças. Foi então que reparou no homem. Um qualquer homem. Bebia uma cerveja. Em cima da mesa, três garrafas vazias e um cinzeiro cheio de filtros brancos focavam, nitidamente, os meandros de uma vida. Ele mantinha os cotovelos pousados no bordo da mesa e a cabeça apoiada sobre uma das mãos. De vez em quando, bebia um gole de cerveja e aspirava, sofregamente, o cigarro.
Talvez pelo facto de se sentir observado, exposto, ou por qualquer outra razão, levantou o braço para o empregado, pediu a conta com um pouco perceptível gesto dos lábios, esmagou o cigarro contra o alumínio oxidado do cinzeiro e bebeu, de um só trago, o conteúdo do copo.

Ela desviou o olhar. Não percebia por que razão gestos tão comuns se lhe afiguraram patéticos. Bloqueados. Dramaticamente fechados, sofridos. Aprisionados numa teia, num buraco negro. E sentiu um nó na garganta. Um nó que apertava, esganava.

O homem saiu, com a cabeça baixa e quieta, sem olhar para ela. Evitando-a – pareceu-lhe. Nunca chegando a saber que, naqueles breves minutos em que ela o “adivinhara”, não fora apenas o “outro”. Porque ela também era o “outro”. Todos nós, para os outros, somos apenas o “outro”. Todavia, todos nós esbracejamos no mesmo mar. Como barcos à deriva. Quase sempre sem nos tocarmos.

AMS


“…mas estamos sempre sós… de resto somos assim… sós… e isso não tem remédio… nunca…”

quinta-feira, outubro 26, 2006

Raízes

Não enchas a vida de sonhos de granito
Que o tempo desvanece
Dando o dito pelo não dito.

Aprende a ler a ternura de um gesto
Na nudez simples do afecto
Prenhe de palavras que não digo
Tu não dizes
Mas que criam raízes.

AMS

Fraternidade ( ou um novo ensaio sobre a cegueira)

Só agora compreendo
Como é fácil apregoar,
Num tom de estridente humildade,
Faceira comiseração,
Ramificada verdade,
Encenada doação,
A palavra FRATERNIDADE.

Para começar,
E dar um tom plangente,
Um quadro comovente,
Afoga-se a palavra
Em pretextos de amor e compaixão,
Sofrimento a sofrimento,
Lágrima a lágrima,
Consciência a consciência,
Hasteando afecto sazonado
Num bizarro comércio de emoção.

Depois, a receita é fácil.
Abrem-se as cortinas ao mundo,
Apresenta-se a farsa habitual
Da caridade pomposa, volátil,
Ungida em rituais de esquiva intenção,
E só resta aguardar,
Num tom solene de ocasião,
Que aplaudam o abnegado gesto
Com lustrosa veneração.

Em seguida,
Quando até o Universo queda
Mudo, comovido,
O Homem,
Num gesto enfeitado
De acomodada humanidade,
Embrulha a fraternidade,
Devagarinho, bem de mansinho,
Para si, lançando-a, quando convém,
Com inexorável alheamento,
Ao limbo do esquecimento.

AMS

barco de papel

Pegou na folha de papel. Deu-lhe a forma de um barco.

Deu-lhe a ilusão de novas e perfeitas trajectórias. O clarão dos sonhos rente a uma desejada realidade. Noites onde o amor se afoga na febre dos corpos. Na textura das almas. Madrugadas sem charcos de sombra. E o simulacro de pousar no beiral da eternidade.

Deu-lhe medos. Minúsculas verdades. A angústia da posse fracassada. A incerteza cruzando-se com a tristeza nos semáforos dos dias. Um tempo que se infiltra de súbito silêncio. E a dor da mentira.

Tudo isto deu ao barco de papel . Apenas se esqueceu de lhe dar uma bússola de asas abertas com que o barco pudesse navegar virado para a vida.

Na oscilação volátil da luz, extenuado de espera suspensa sobre a dúvida, o frágil barco, ferido pela erosão do nada, deixou-se arrastar pela vertigem da corrente. E, tocado pelo gume das vagas, mergulhou, um a um, todos os seus sonhos, no fundo do mar. Em mil pedacinhos de papel translúcido.

Pegou na folha de papel. Deu-lhe a forma de um barco. Ancorou nele o desalento e o cansaço de um coração.

AMS

Porto de sempre

No meu Porto, esculpido a granito, de luz coada,
suave, inconfundível, há um encantamento que
insiste entrar, sorrateiramente, nos recantos e
margens desta tentativa de poema, serpenteando
por entre as palavras, demorando-se na respiração das
coisas, enredando-se de aveludados, intensos sentires.
Quem pode resistir ao carácter, fascinante e austero,
dos seculares monumentos, ao ícone que é a Ribeira,
à Foz, ao rio que se entrelaça ao mar, aos jardins por
onde passeiam solidões e alegrias salpicadas a verdes e
castanhos, aos cafés onde, no íntimo desprender do
tempo, nascem sonhos molhados na poesia, na recatada
beleza da sempre invicta e leal cidade que persiste,
altiva e serena, em soltar a sua alma pelos caminhos
assombrados de história e pintados de futuro?!

AMS

quarta-feira, outubro 25, 2006

Compromisso final

«Isaac:

Lembras-te quando brincávamos os dois? Lembras-te quando te mostrava mapas e fotos e te dizia onde tinha estado e o que tinha feito? Lembras-te das perguntas que te fazia para te ajudar a seres rápido e para te pôr à prova?
Gostaria de te dar um abraço, irmão. Estive pouco presente.
Mas faço o melhor. Para todos. Para mim.
Vou fazer-te a última pergunta da minha vida. Tens muitos anos para lhe responder Não te esqueças dela. Pensa nela.
Isaac, sabes o que faz um homem com um garfo numa terra de sopas?
Se um dia encontrares a resposta, grita-ma. Ouvir-te-ei. Eu já a conheço, mas enquanto para mim é tarde, para ti ainda não é e nunca será.
Isaac, não sejas demasiado severo quando me julgares.
Lamento-o. Acredita-me. Lamento-o muito mais do que possas imaginar. Não fujo por cobardia. À falta de melhor, faço-o por dignidade, mas nunca por cobardia. Perdoa-me. Não é uma fuga, nem um abandono. Há coisas que, simplesmente, são como são e não as podes mudar. Pela minha memória, por favor, procura ser o melhor jornalista que possas, e também o mais honesto. Neste mundo a honestidade é a única coisa que nos diferencia uns dos outros. Uma pessoa honesta é uma pessoa boa. Gostaria de te dizer mais qualquer coisa, mas não posso. Pelo papá, pela mamá, por ti. Não posso. Não me esqueças, Isaac. Gosto muito de ti».

(…)

- Já sei o que faz um homem com um garfo numa terra de sopas, Chema. – murmurou com algo mais do que terna amargura. – É tão simples que me parece ridículo, mas suponho que todas as grandes verdades são simples – olhou fixamente a lápide e acabou por dizer:- Um homem com um garfo numa terra de sopas, bebe e come com as mãos, porque o garfo não lhe serve para nada nem nunca lhe irá servir. E essas mãos são tudo o que tem, da mesma maneira que o ser humano na vida apenas tem a sua honestidade para a viver. Há muitas terras cheias de sopa, carregadas de cores, convidando-te com cantos de sereia, oportunidades, êxitos, luxos… mas a única colher para apurar a existência reside em nós mesmos. Mãos e coração. Não te esquecerei, prometo-te.
Não precisou de o gritar, como lhe tinha pedido Chema na sua carta póstuma. Sabia que o podia ouvir, do outro lado da lápide ou onde estivesse.
O compromisso final.

Um homem com um garfo numa terra de sopas
Jordi Sierra i Fabra

Orgulho e Preconceito

“Nunca houve dia mais feliz para os sentimentos maternos de mrs. Bennet do que o casamento das duas filhas. Depois falava com orgulho de mrs. Darcy e visitava frequentemente mrs. Bingley.

(…)

Kitty, com grande vantagem para ela, passava a maior parte do tempo com as irmãs mais velhas e, frequentando um meio tão superior, melhorou.

(…)


Mary ficou em casa e, necessariamente, foi obrigada a abandonar um pouco os seus estudos para não deixar mrs. Bennet sozinha, mas como já não era humilhada com comparações com a beleza das irmãs, facilmente se adaptou à mudança.
Quanto a Wickham e Lydia, não mudaram com o casamento das irmãs. Ele resignava-se à ideia de que Elisabeth já sabia tudo quanto antes ignorava, mas, ao mesmo tempo, não perdia a esperança de que Darcy o auxiliasse.”


Orgulho e Preconceito
Jane Austen



Todos nós temos dias sim e dias não. A Eugénia, esta semana, esteve embrulhada em dias não. Tudo a irritava e, ainda por cima, torceu um pé. Tentei impingir-lhe a velha treta de que “há sempre um amanhã”. Em vão. Investir em campanhas contra o pessimismo não resultava. A voz dela ao telefone mais parecia a de uma moribunda a receber, piamente, a extrema-unção. Comecei a ficar intrigada. Até preocupada. Ela costuma meditar. Eu costumo delirar. Ela é determinada. Eu sou mais do género que precisa de um personal trainer do ego. Ela tem por lema - a liberdade é a coragem. Eu sou mais resignada a levar a cruz ao calvário, pregar a cruz no chão e, seraficamente, pregar-me a mim à cruz. Ela dança a vida ao som do jazz. Eu arrasto os pés numa dança indolente e fatalista. Ela é mulher para preparar um eficiente ataque Kamikaze. Eu prefiro suportar torturas zulus, porque sou indecisa, reflectida ou, simplesmente, demasiado tímida para me resolver a enfrentar… fantasmas.
Então, que se passava, afinal, com a minha amiga? Parecia-me psicologicamente anémica, cansada, pálida. Murcha! Cabia-me o papel de optimizar aquela tolerância zero à boa disposição. Se melhor o pensei…

Voilà. Eis-nos no Dolce Vita - a escolha do local foi imposição da sofredora diletante… - a caminho de mais uma versão do clássico “Orgulho e Preconceito”. O que uma historia romântica, uma mãe caricata e desesperada, uma protagonista arisca, um charmoso pedante e uma vontade enorme de exorcizar a tristeza não fazem! Confesso que, no início da sessão, ainda ouvi uns suspiros deprimidos e patéticos saírem das entranhas daquela "dama das camélias" sentada ao meu lado. Confesso que, irritada, ainda me apeteceu mandá-la tomar três Lexotans, assoar definitivamente o nariz e a alma, desligar a melancolia e viver - isto se não adormecesse antes - aquela saga de cinco irmãs com vontade - e que vontade - de arranjar marido.
Não foi preciso chegar a medidas tão extremas. A certa altura do filme - por acaso, e só por acaso, quando entra em cena o orgulhoso e preconceituoso Mr. Darcy - a minha amiga, impelida por algum génio bom - para o caso também é irrelevante - começa a sorrir e lá vai sussurrando - Preferia o actor da outra versão. Hum… mas este Mr. Darcy também não está mal de todo… Queira Deus que esta versão mantenha a cena do banho… Não percebi (?) bem aquela preocupação higiénica. Decididamente, a "Isolda" não estava nos seus melhores dias - pensei. Mas, olhando-a de soslaio, fiquei mais tranquila. A vontade de se suicidar com raticida estava a desaparecer. Um sorriso com a marca “correio do coração” e um brilhozinho nos olhos - as desgraças dão frutos inesperados - começavam a aflorar o rosto da "Ofélia". Havia, todavia, algo - alguém - que nos irmanava. Mr. Darcy, efectivamente, não estava nada mal.
Não estava, não. O amigo, o Bingley, esse, coitado, parecia um pouco atrofiado mental, é certo. O primo das cinco cinderelas, o Collins, além de pigmeu era um misto de abóbora do Halloween e Rosemary Baby. Mr. Darcy? Como descrevê-lo? Pois, Mr. Darcy… Sabem, dá mesmo vontade de escrever - O príncipe chega. Vê a princesa a dormir. Dá-lhe um beijo e… Sim, dá vontade de escrever que ainda há amores verdadeiros, despojados, intensos, triunfais. Ainda que orgulhosos e preconceituosos.

Poderia dar por encerrada a tarde. E a escrita. Aproveito apenas para esclarecer alguns leitores mais facilmente impressionáveis acerca da saúde da "Julieta" que me arrastou para o Dolce Vita - a Eugénia não estava atacada pela gripe das aves. No final, apresentava-se corada - até parecia que o Darcy se tinha declarado a ela - rejuvenescida e cheia de boas intenções. Arrastou-me literalmente para as lojas, obrigando-me a acordar o meu lado consumista. A isto se chama ingratidão. Há os orgulhosamente… sós. Insatisfeitos com a vida. Insatisfeitos com os outros. Satisfeitíssimos com eles. Há os preconceituosos que nos provocam alergias. E há as ingratas que, à força de admirarem orgulhosos preconceituosos, nos atiram, sem dó nem piedade, para os braços de um consumismo que nos flagela a bolsa. Vá lá perceber-se as amigas...
Porém, e para dar um tom moralista à história, acrescento que a tarde terminou na Bertrand. Começámos pelos romances, continuámos na ficção e terminámos na poesia. Saliento que mais uma vez pude apreciar uma certa instabilidade, neste caso, poética, na “bela acordada”. Ora pegava - e aqui é metaforicamente - no Joaquim Pessoa, ora folheava Al Berto, ora auscultava os sentires de Lorca.
Enfim, a tarde não foi - longe disso - uma chatice galáctica. O filme, se para mais não servisse, provou que se pode ser ambicioso e bondoso, inteligente e romântico. E suponho - aqui já sou eu a divagar - que a minha amiga percebeu que somos seres humanos, não somos santos. Que precisamos - todos - de leveza para descobrirmos uma migalhinha de sentido no meio de tanta confusão. E que não adianta substituir a coragem de viver pela cobardia de negar viver. Com ou sem um Mr. Darcy.

AMS

"Chega-te a mim e deixa-te estar"

Devo começar por confessar que a minha relação com as chamadas acções de formação se resume, ultimamente, a uma necessidade urgente de créditos. A experiência, salvo raras e gratificantes excepções, tem-me provado que a única coisa que a minha memória tem registado neste tipo de formação se resume a um sem número de horas desprovidas de qualquer interesse e a uma vontade imensa de gritar - até sempre!
A verdade, porém, é que a necessidade é mãe de muitos erros, desgraças e outros “eventos” que tais. E, assim, dou por mim, qual peixe mordendo o isco, a inscrever-me nestas modalidades de acesso a um novo escalão, tão cheia de ingenuidade como de perversa intenção. “Erros meus, má fortuna" - do belo soneto de Camões só consegui adaptar este pequeno excerto a esta croniqueta. Julgo que dá para perceber…
Eis-me, pois, inscrita, nestes últimos dias, num destes cursos acelerados. As expectativas eram nulas. A paciência pouca. O sofrimento excessivo. Levantar-me cedo - logo eu que odeio o bucolismo das manhãs, na cidade. Primeiro, porque as ditas… de bucólicas têm pouco; segundo, porque só mesmo a dormir se poderia julgar ouvir o trinar de um passarinho a dar-nos coragem para um dia que mal começou e que, pressentimos, irá acabar mal.
É certo que cada um de nós tem os seus fundamentalismos. Eu abomino estar fechada numa sala, caneta e papel prontos para desenhar, rabiscar ou divagar, olhar estoicamente atento a um palco por onde passam as mais doutas sapiências e uma cara de enjoada capaz de fazer “inveja” à mais incomodativa gravidez.
Há, no entanto, que aguentar. Lá volta a necessidade a fazer das suas… Há que acreditar que aqueles teóricos - sim, que eu gostava mesmo era de os ver a aplicar aquelas teorias na “arena” - se calarão… finalmente. Acreditar que, um dia, seremos todos felizes - alunos, professores e pais.
Hoje, todavia, o destino pregou-me uma partida. E veio provar que qualquer pessoa, quando motivada, adere, entusiasticamente, ao universo superior da cultura. Palavra que não estou a ser irónica. Foi isto mesmo que aconteceu. Depois de ter “ouvido” um padre - professor catedrático, pois - dois psiquiatras, um psicólogo e uma jurista abordarem a temática - Por uma pedagogia diferenciada - dou por mim a seguir, atentamente, as palavras do psicólogo Eduardo Sá. O homem é, efectivamente, um sedutor nato. De plateias, quero dizer. Tem uma voz bem modelada, sorri - criando empatia - fala, aparentemente, sem grandes planificações, gosta de provocar reacções - a favor ou contra o que defende - e, logicamente, conquista a atenção dos ouvintes. Não apresentou receitas - aliás, nenhum dos outros o fez. A grande diferença é que não nos propôs buscar novas “terras”; defendeu, apenas, que deveríamos olhar para aquelas onde vivemos, mas com outros olhos. Simples? O ovo de Colombo também parecia uma ideia linear, não? Mas só ele conseguiu colocá-lo de pé.
Hoje, aprendi um pouco mais. Como professora. Como pessoa. Aprendi que as pessoas se aprendem mutuamente. Aprendi que acreditar na vida e querer ser feliz é mais importante do que saber o que são hipónimos ou resolver equações do 2º ou 3º graus. Aprendi que a vida não tem de ser um mar de insucessos e, sobretudo, que não é razoável que a carreira esteja à frente do que é preponderante - amar. Ganhar outra vida na vida. Aprendi, também, que conhecer é tocar. E que nos tocam sempre que nos dizem - “Chega-te a mim e deixa-te estar”.
Segunda-feira, os meus alunos não terão, com toda a certeza, uma professora mais iluminada. Deparar-se-ão, todavia, com alguém que tentará com toda a convicção privilegiar o seu relacionamento com eles... em português suave - não confundir com "em banho-maria". Com firmeza. Com disponibilidade. E, acima de tudo, fazendo-os sentir sentidos.

AMS

domingo, outubro 22, 2006

Quando era o tempo

Amo-te tanto! - dizias. E eu acreditava.
Não percebendo, na embriaguez subtil da ilusão,
que essa certeza, ritual da presença, fazia com que nunca
me alcançasses, porque nunca me descobriste realmente.
O teu amor - proclamavas - era absoluto. Agora eu penso
que era sufocante. A imagem do próprio desamor.
Uma espécie de cárcere de almas, uma cegueira
do olhar sempre ateada à tua maneira. Insegura.
Centrada em ti como uma etiqueta de identificação.
Nunca te pedi milagres, nem grandes nem profanos,
apenas que me deixasses atingir a sublime simplicidade
de ser eu. Mas tu não conseguias, ou não querias,
distinguir o meu eu do teu eu, como se isso nos
fizesse percorrer, entrelaçados, o caminho um do outro.
Querias-me - ouso acreditar que sim – esquecida
sobre o tempo, o teu tempo, e nunca me pediste
que te explicasse o meu olhar cheio de mágoa
e desamparo. Nem sequer soubeste o que fazer com ele.
E agora faz-se tarde. Já dissemos tudo o que havia de ser
para sempre e, desde então, ficámos sem palavras,
sem gestos, sem silêncios cúmplices. Tudo passou
a ser despropositado e inútl. Faz-se tarde. É inevitável
escrever a palavra fim nesta história já terminada.
Por que esquiva razão não me deixaste amar-te
quando era o tempo? Amei-te tanto!

AMS

A Chuva, o Autocarro, o Telemóvel

Era um fim de tarde invernoso. O trânsito estava caótico. As pessoas fugiam ao fustigar da chuva e ao cinzento frio, duro, inóspito da cidade.
Molhada, irritada, farta de multidões na azáfama de compras e mais compras - era época natalícia – decidi apanhar o primeiro autocarro que aparecesse. Desejava chegar a casa o mais rapidamente possível, tentando, desse modo, escapar a uma gripe e ao consumismo da quadra que atravessávamos.
Caro leitor, já andou de autocarro, na cidade do Porto, em dias de chuva e - preste atenção! - épocas festivas?! Não?! Tem a certeza? Pois não sabe o que perdeu. Não sabe o que perde. É uma experiência inolvidável. O paraíso na terra. O teste supremo à nossa paciência. Enfim, a verdadeira antevisão do apocalipse. Dante, coitado, não teria precisado de descer aos Infernos. Ainda por cima, dizem as más-línguas, chamuscou o cabelo. Bastar-lhe-ia ter andado, por exemplo, no 6 ou no 20 - agora, penso, 203 - e teria, com toda a certeza, desistido de visitar o Céu pela mão da sua amada Beatriz. Mas deixemo-nos de divagações.

Não entrou Dante no 6. Entrei eu. A peregrinação ia começar. Por sorte, destino ou protecção divina, encontrei um lugar e pude gozar as delícias de tão prolongada e hilariante viagem… sentada. Deus, afinal, existe, ó incrédulos!
A chuva ameaçava transformar-se em dilúvio. O autocarro não saía do lugar. Os utentes protestavam. Era a suprema ventura!
Aos poucos, fomo-nos habituando à lentidão daquela marcha fúnebre. O ar estava irrespirável. Contudo, perante a tempestade que se fazia sentir no exterior, começámos, estóicos, resignados, a apreciar o ar quase acolhedor do interior do veículo. Conversas cruzadas. Futebol. Política. A conjugação do verbo comprar em todos os tempos e pessoas. E o autocarro, imóvel, na Rua do Rosário.

Cansada de limpar a janela, cansada de ver tanta água, comecei a reparar na paisagem humana que me rodeava. À minha frente, comodamente sentados, indiferentes ao temporal, dois operários da construção civil. Reparei no objecto que era alvo dos seus envaidecidos, orgulhosos olhares. Um telemóvel! Sim, naquele tempo em que os ditos cujos eram raros e faziam a delícia de quantos se atreviam a comprá-los. Um telemóvel!

Curiosa, comecei a prestar atenção à conversa. Em abono da verdade, o tom das duas vozes era tão alto que a ninguém passaria despercebido o teor do diálogo. Que diabo, sempre era uma maneira de passar o tempo!
- Liga prá tua mãe e pergunta-lhe se não quere ir tomare um pingo. Num demores. Essa maquineta ingole dinheiro.
O mais novo obedeceu à ordem. Marcou, aguardou, falou e passou o telefone ao pai.
- Tou? Oube lá, queres ir tomar um pingo ao café? Tá chovere? Que nobidade! Queres ou num queres? Prontos, espera por nós. Quê? Fala mais alto, mulhere, num t’oiço. Tá aí a Rosa? Quer falar co Quim? Prontos, vou passar-lhe o telefone.

E passou. Escusado será dizer-lhes que, por esta altura, todos os passageiros faziam conjecturas acerca da Rosa. Escusado será dizer-lhes que todos seguíamos, enlevados, aquela cena familiar.
O Quim falou. Falou. Falou. E falou. O amor é uma coisa maravilhosa. Até a chuva parecia ter diminuído. Só o autocarro continuava, persistente, na rua do Rosário.
- Oube lá, bê por quanto ficou a brincadeira? – indagou o prevenido pai.
O filho, depois de carregar em várias teclas, acabou por dizer quase a medo:
- Aqui marca seiscentos paus!
- Fo....... ! Car........! Mais balia termos bindo de táxi, carago! Tira-me essa merda dó pé de mim. Porra! Isso só passa a usar-se aos domingos, oubistes?!

E o autocarro continuava na rua do Rosário...

AMS

O Circo!

"Quando todos fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, será possível ver, construir e criar um mundo diferente, mais justo, mais livre." – Ensaio sobre a cegueira de José Saramago

Viver uma experiência é bom, mas contá-la ainda é melhor. Não bastava a luminosa ideia da mudança da idade da reforma - o futuro apresenta-se velho, caquético, cansado e cheio de frustrações - ainda era preciso obrigar os docentes ( não sei por que motivo ia escrever pacientes) a participar em mais jogos pirotécnicos. Assim, a senhora ministra da educação, que já expressou o seu veemente desejo de trabalhar até aos 70 anos - só espero que não seja a ocupar este cargo político - lançou novas e “gratificantes” medidas, no mercado. A mais surrealista, sem dúvida - até consegue fazer esquecer o congelamento das carreiras - tem a ver com a obrigatoriedade de ocupação plena dos tempos escolares por parte dos professores. Deste modo, e segundo a ministra, extinguir-se-á o insucesso escolar, os pais e encarregados de educação passarão a ter os seus descendentes cativos nas escolas quase todo o dia - desresponsabilizando-se dos seus deveres de pais - os professores - cambada de malandros sempre em férias - aprenderão a saber como elas doem e o engenheiro Sócrates respirará de alívio e poderá, quiçá, dedicar-se a fazer explodir mais umas torres, na companhia de uns tantos pindéricos que, atónitos, encenam, divinamente, o papel de saloios a admirar o lançamento do primeiro foguetão português, à lua. Confesso que tanta demagogia, tanta atrofia mental me comovem. Eu sei que tudo isto, no fundo - e à superfície - não tem piada nenhuma. Mas que pode uma simples professora fazer contra todos estes pequenos deuses que, nos seus gabinetes climatizados, mandam palpites - sem perceberem nada de nada - qual manta de retalhos?! Fugir? Sim, já pensei nisso… A situação que se vive é de tal forma caricata e trágica que, por mais fartos que estejamos, já perdemos toda e qualquer ilusão. Custa apercebermo-nos que, neste país, é mais fácil não ver… os erros; mais penoso, porém, é constatar que há quem olhe, mas finja não ver.
O engraçado de tudo isto é que cada escola entende a lei à sua maneira. Daí, uns professores serem obrigados a cumprir 22 horas, outros 25, outros 26, outros 27 e outros 28. Bizarro, não? Numa coisa, todavia, estão as doutas cabeças de acordo: para a preparação de aulas com a tal excelência exigida - sim, que já não basta ser bom. É obrigatório sermos todos excelentes... - bastam… 7 horas, ou seja, preparar aulas, elaborar e corrigir testes, fichas, etc… tudo isso requer, tão-só, umas míseras 7 horas. Isto, claro, segundo as tais mentes brilhantes. E "excelentes"?!
Eu, pelo sim pelo não, vou cronometrar este tempo (as ditas 7 horas) até ao último segundo. Finalizado este parco período, e ainda que esteja a meio da correcção de uma pergunta, aviso os alunos - Meus amigos, agora só continuo a correcção, na próxima semana. O meu plafond acabou-se.
É nestas alturas, caros leitores, que relembro a talentosa Shirley Maclaine no filme "Flores de Aço". Dizia ela que não era maluca. Apenas andava de mau humor... há dezenas de anos. Eu estou de mau humor e, lúcida e sinceramente, receio ficar maluca. Senão, reparem: na minha escola, estão requisitados para a sala de estudo, em cada bloco de 90 minutos, não sei quantos professores. Cabe na cabeça de alguém tal disparate? Que vão fazer estas brigadas de choque, ao longo do dia? Ingenuamente, ainda ousei opinar, timidamente, numa reunião de departamento, que sempre poderíamos criar um rancho folclórico ou até mesmo um grupo coral - tipo grupo dos “ceguinhos” de Ermesinde, estão a perceber? Ninguém acatou, seriamente, as minhas sugestões, é claro. E é pena. A continuarem, firmes e hirtas, aquelas decisões, receio que o "excelente" Engº Sócrates, a muito curto prazo, se depare com um horripilante problema - a maior parte do corpo docente enlouqueceu ou está em vias de… Sim, eu sei, com a eficácia já demonstrada por este governo, em pouco tempo será lançado um livro com o seguinte título - Terapia de Choque para Professores Traumatizados. A questão, caros amigos, é saber se a terapia irá a tempo de salvar os tais piquetes de professores. Os tais - não, pelos vistos não são os do gostinho especial! - que este governo, habilmente, descobriu serem fonte de todos os malefícios, pestes e pragas que invadiram os portugueses, de há uns anos para cá.
Mas há mais. Não acreditam? Já pensaram no espaço necessário para os ditos “acampamentos”? Pois é… Bem, claro que é sempre possível fazer o que, diabolicamente, engendrou o CE de uma escola cujo nome vou omitir. Faltavam salas? Qual o problema? Foram à biblioteca e dividiram-na ao meio; orgulhosos, visitaram a cantina e… roubaram-lhe uns metros; felicíssimos, repararam num corredor em L e… zás, toca a furtar o L ao corredor. Resultado - 3 novos espaços para salvar os alunos do terrível insucesso escolar. Ainda dizem que não temos arte nem engenho! O que é preciso, na verdade, é narcisismo, imaginação fértil e muita lata. Duvidam?
Portuguesmente pensando - num espontâneo e genuíno brio patriótico - só apetece dizer como o pragmático Dâmaso Salcede - “…eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris…”. Pensando melhor - retiro, portanto, o "portuguesmente" - o ideal era mandar (pirar, raspar) este governo… para o Iraque!
Haja (ainda mais) paciência!

AMS

Nunca aprendi a tua alma

Decorei o teu rosto, os teus gestos, a voz e o cheiro que te pertenciam. Aspirava-os através da plenitude da entrega. Sabia de cor os teus traços, o teu sorriso, o voo do teu olhar. Poderia pintá-los com a tinta da ternura e de outras intrusas emoções. Porque, ainda que retida no cais de inglórias ilusões, sentia a claridade do teu sorriso, e o teu olhar - agora de outrora - cercava-me de lumes estonteados de avassaladora loucura.
Nunca se pode ter tudo para sempre. Assim, a memória do que foi presente chegava-me. Era suficiente para matar a sede do meu cansaço sempre que a tua imagem atravessava o meu coração. Ela ancorava dentro dele. Tu vivias dentro dele. Eu ficava sempre no epicentro de um instante que pairava - mas nunca acontecia - e acabava por desaguar em lembranças, nostalgias, silêncios.
Nunca te disse tudo quanto era necessário dizer. Talvez porque o tudo era feito de asas suspensas num sorriso, num olhar, numa expectante palavra jamais consumada.
Decorei o teu rosto. Os teus gestos. A tua voz. O teu cheiro.
Nunca aprendi a tua alma.

AMS


Entre a razão e o coração

A verdade mora em cada coração e devemos deixá-la guiar-nos tal como a vemos e sentimos. Porém, não temos o direito de forçar os outros a actuar segundo a nossa verdade.

Gandhi




Coexistência não é um princípio pacífico e, muito menos, óbvio. Apesar de ser uma necessidade vital. Hoje, creio, mais do que nunca, tal a distância que tende a separar-nos cada vez mais uns dos outros. Coexistência, assumamos, deveria ser sintonizarmo-nos por um conjunto vastíssimo de valores que passassem pelo respeito mútuo, pela aceitação da diferença, pela tolerância, pela ausência de julgamento e preconceito, numa clara convergência ética. Num mundo que parece virado do avesso, ouve-se, insistentemente, falar da importância de ter valores. Não dos que se transaccionam na Bolsa, mas dos outros, daqueles que estruturam a condição humana e que fazem com que a vida não nos saiba a absurda, por absurda que tanta coisa nos pareça. Claro que os valores, como tudo na vida, mudam. Mudam de época para época, de indivíduo para indivíduo. Mudam até em nós próprios, sujeitos que estamos a experiências e aprendizagens. Por isso é vital que cada um de nós possa acreditar em qualquer coisa. Qualquer coisa que estabeleça a diferença entre o que é fundamental e o que é acessório, insignificante. Qualquer coisa, enfim, que dê um sentido à nossa existência, recobrando transviadas esperanças.

Tenho a clara noção de que a história da humanidade nem sempre se rege pela autenticidade, pelo bom senso, pelo equilíbrio, pela interiorização de que é necessário um aperfeiçoamento contínuo e comum. Sei que nem sempre se sai vencedor face a determinadas subtilezas com que a vida faz questão de nos brindar. E como doem as bofetadas que ela nos dá! Coitados de todos nós! Por mais que nos esforcemos, ainda não conseguimos entender que a nossa existência depende, sobretudo, da nossa "presença" num mundo que é, cada vez mais, lugar de ausência.

Bondade gera bondade. Amor gera amor. Um inexplicável desprezo pelos outros - aliado a um delirante egotismo - gera mágoa, revolta, incompreensão, destruindo algo que se torna muito difícil de reparar. É evidente que podemos estar contra determinadas maneiras de viver, determinadas atitudes, determinados argumentos. Mas uma coisa é centrar a nossa raiva ou a nossa convicção nas ideias e outra, bem diferente, é centrá-las na pessoa. Contra a pessoa.
Precisamos de acreditar. Em nós, claro, mas também nos outros. Caso contrário, perdemo-nos e, quando olhamos à volta, não reconhecemos ninguém, não sabemos onde estamos nem para onde vamos, não encontramos referências fiavelmente seguras, deixamo-nos invadir pelo medo, por uma desestruturação que perturba e pode levar à destruição.

Comentava, há dias, numa conversa de café, que, infelizmente, tinha chegado a um estado de quase descrença no ser humano. Já tive a veleidade de acreditar que o homem é um ser naturalmente bom. Fui forçada a abandonar essa opinião. Sinto que a maldade vive connosco. E basta tão pouco para gerar conflitos, desassossegos, subversão total dos valores. É apenas necessário ignorar as consequências dos nossos actos nos outros. Que diferença há entre os gestos com maldade e a essência da própria maldade? Ironicamente, a única diferença é a desculpa que distingue as duas situações. Só isso. A desculpa é uma forma de esperarmos que quem acolheu a nossa falha, acolha, benevolentemente, a nossa culpa. E há pessoas que utilizam permanentemente esta dúbia estratégia - ofendo e depois peço desculpa. Donde, feitas as contas, chegamos sempre a uma posição comodamente conveniente. Somos todos boas pessoas. Às vezes, vítimas dos outros; às vezes, vítimas das circunstâncias. Os "maus da fita" existem, claro. Mas nunca somos nós.Como dizia uma das personagens do filme "Os Imortais" - "Por mais sacanas que sejamos, surpreendentemente, há sempre alguém mais sacana do que nós...". Pelos vistos, esta teoria conforta-nos, desculpabiliza-nos. Podemos dormir tranquilos ...

Sei que não sou perfeita. Longe disso. Sou limitada, insegura, vulnerável. Tenho dificuldade em aceitar os meus pontos fracos. Vou muitas vezes aos empurrões. Tenho a gravosa tendência de fomentar dentro de mim uma certa impulsividade agressiva, mesmo hostil. Todavia, estou plenamente convicta de que sou leal. Aos meus ideais. Aos meus amigos. Até, e por paradoxal que possa parecer, aos meus inimigos. Já me aconteceu estar a falar com alguém, olhos nos olhos, e pensar - por que motivo estás a tentar enganar-me? Não lês nos meus olhos que sei que estas a mentir? Que a minha boca cala, os meus lábios sorriem, mas que os meus olhos estão a tentar dizer-te que não sou a parva, a pacóvia que julgas ludibriar facilmente?! E continuo calada. E fico como que emparedada num misto de humilhação, decepção e mágoa. E continuo a sorrir…

O tempo começa a ser escasso para expressar tudo o que me confunde e me parece contraditório. Acredito num código ético. Daí o parecer estar constantemente em crise existencial. Comigo. Sobretudo comigo. Mas sei que existo. Isso eu sei. E que estou viva. Retrógrada. Vanguardista. Ingenuamente - tolamente - sonhadora. Tão dolorosamente racional. Mas viva!
Só para alguns - poucos - continuo transparente. Contudo, é nesses que me equilibro. É com esses que conto. São esses que me afastam do abismo do irreal, do não-vida, do vazio, do nada. Os momentos que não aproveitarmos ficarão, irremediavelmente, por aproveitar. Esta é a verdade. Mas a verdade não é um estado definível e imutável. A verdade está na cabeça de cada um. Todos somos, ao mesmo tempo, vítimas e responsáveis da nossa própria vida. Para o bem e para o mal, todos os caminhos do impossível estão abertos aos passos do real. O pior é que nem todos somos tão sábios que o compreendamos nem tão audazes que tracemos o nosso itinerário.
Agora preciso que me dês a tua mão. Não para que eu não tenha medo, mas para que tu não o tenhas. Amanhã, pela mesma razão, tu precisarás da minha. Só assim, estou convicta, descobriremos, com um olhar cheio de futuro, o encanto de caminhar sobre oceanos abertos.

Assim, tenho a sensação de que é preciso que alguma coisa aconteça. Não que eu seja apologista de cataclismos e "fins do mundo". Não. Supostamente, já tenho pessimismo q.b., não necessitando, portanto, de mergulhar em presságios horripilantes. Os que tenho... bastam-me. Mas tem de acontecer alguma coisa. Qualquer coisa que derrube os muros no coração dos homens; qualquer coisa que (n)os liberte de uma cegueira quase colectiva. Não estou, evidentemente, a referir-me a um castigo exterminador dos "maus" nem a um prémio que beatifique os "bons". Provavelmente, quase todos faríamos fileira nas duas categorias. Nem sequer falo de vingança. A vingança exige muito esforço e suor - que alguns nem sequer merecem - e talvez lágrimas e, ainda por cima, muita cobardia. Pode parecer estúpido e até simplista, mas a maior vingança, relativamente a certas pessoas e a determinados gestos, é, sem dúvida, ignorá-los. E ser feliz. Mudando a nossa percepção do mundo. Dos outros. De nós próprios. Porque "numa dimensão superior, a única coisa que existe é o amor."

AMS

sábado, outubro 21, 2006

Um comboio directo ao coração

Não percebia por que razão se encontrava ali há tanto tempo. Não compreendia ainda o grande puzzle que é a vida. Queria o pai, queria a mãe, e o seu pequeno coração reafirmava cruelmente - Eles foram-se embora e deixaram-te. Estás sozinha.
O irmão tentava consolá-la, os primos tentavam arrastá-la para as suas brincadeiras – Lu, anda jogar às escondidas! Não sejas piegas! És uma medricas! És uma mimalha! Tens medo do papão!
E ela olhava-os com a tremura e o receio de uma avezinha caída do ninho, mas lá ia atrás deles, enquanto murmurava - Não sou nada! Não sou nada! Só quero a minha mãe! Quero o meu pai! Mãe... Pai...
O afecto que os familiares lhe davam não chegava para atenuar o pavor de não voltar a recuperar as duas pessoas que definiam o seu mundo. A sua desorientação, a sua solidão aumentavam de dia para dia. Sentia-se desamparada, perdida, naquele enviesado labirinto - o quarto escuro onde se metiam os meninos travessos. Que “asneira” teria cometido para ser castigada daquela maneira? Sujara o vestido, descalçara-se - a mãe sempre lhe dizia que as meninas bonitas não se descalçam - correra atrás do “zarolho”, escondera o pão com marmelada dentro do canteiro de flores da tia... Era má! Sim, era má! Por isso os pais a tinham deixado com os tios. Já não a queriam…
E agarrava-se ao irmão, esfomeada de carinho e aconchego, chorando baixinho, despojada de qualquer certeza - Dói-me a barriga, Paulo. Dói-me muito a barriga. Quero ir para casa. Quando vamos para casa? É muito longe? Não me podes levar?
O irmão, quatro anos mais velho, tentava acalmar os seus receios e lá ia dizendo:
- São só três meses, Lu. Conta pelos dedos: um… dois… três… Quando chegares a este dedo, vês, este, o pai e a mãe vêm buscar-nos.
- Demora muito chegar a este dedo? Demora tanto como o Natal demora a chegar, Paulo?
- Em Outubro, eu já tenho escola e vamos embora. Mas, se choras, o tempo custa mais a passar. Vai brincar com a Lai, e eu não conto a ninguém que estavas outras vez a choramingar.
Como ela sonhava todas as noites com esse “Outubro”! Mas ele estava ainda a caminho - como costumava dizer a tia Bárbara. E contava pelos dedos como o irmão lhe ensinara. Mas a distância de um dedo ao outro enegrecia-lhe a alma e acabava sempre por lhe desenhar no coração a única verdade que percebia - os pais tinham-se esquecido dela.
Perdeu o apetite. Os tios começaram a ficar preocupados e, em surdina, comentavam:
- Está cada dia mais calada e franzinita. Quando os adultos não se entendem, as crianças é que pagam! Querem ver que a garota ainda vai adoecer com saudades?! É preciso pô-los ao corrente da situação. Não podemos arcar com o peso desta responsabilidade. E se acontece alguma coisa? Caem-nos em cima, porque não os avisámos.
Algumas horas mais tarde, a tia chamou-a :
- Lu, a tua mãe está ao telefone. Anda falar com ela. Corre, minha patarata.
Correu. Voou até ao escritório do tio, e só afastou aquele aperto que a aprisionava numa espécie de teia de aranha quando ouviu a voz da mãe:
- Vou buscar-te, claro que te vou buscar. Se já não gosto de ti? Tonta, gosto, gosto muito. Lu, a mãe e o pai tinham explicado que era melhor para ti e para o mano ficarem uns tempos com os tios e os primos, recordas? Para a semana vamos buscar-te, sossega.
- Sim, sim, sim… mãe!
- Tenho uma surpresa para ti, mas vais ter de ser uma menina muito boazinha.
- Mãe, eu quero ir embora, hoje. Mãe…
- Ouve, lembras-te de pedir um guarda-chuva igual ao da tia Nené? Pois já tens, aqui, o teu guarda-chuva. Pequenino, como tu, e todo às bolinhas. São só mais uns dias e voltam para casa. Não quero uma filhota chorona. Prometes? Porta-te bem, Lu, já és uma menina crescida. Pronto, não quero mais lágrimas, sim? Um beijinho da mãe e do pai. Vá, agora chama o Paulo. Porta-te bem, filha! Não aborreças os tios...
- Mãe! Mãe…
A lembrança do guarda-chuva às bolinhas fez, de imediato, sociedade com a vontade de ir embora, com a saudade que a minava constantemente e com a inconsciência própria das crianças daquela idade. Era fácil. Bastava ir até à estação e entrar no comboio. Um comboio que a levasse a casa. Ela já tinha andado uma vez de comboio e sabia que para o encontrar bastava ir ao local onde as mulheres vendiam aqueles rebuçados grandes, transparentes e muito doces.
Calçou as sandálias, esgueirou-se pelo portão e, confiante, meteu-se a caminho. Para ela havia um só caminho - o que a levava à estação. E, na estação, havia um só comboio. O que a levaria em direcção a casa, ao guarda-chuva das bolinhas e aos braços da mãe e do pai.

AMS

Palavras

Há palavras que pesam menos que nada.
Outras há, as que arrastam consigo as
direcções várias do amor, do desengano,
da incerteza, da esperança, da alegria,
do perdão, que encerram em si o peso de
uma vida, a perpétua herança que, aos poucos,
marca cada viajante até à branca colina,
zénite de cada viagem.

Há palavras que morrem à nascença, contaminadas
pela indiferença corrosiva do abandono e
do esquecimento.
Há palavras que jazem adormecidas, imaturas,
temendo o tempo que veio e o que há-de vir,
nunca chegando a viver.
Há palavras generosas que estremecem o universo,
e despertam em nós os sonhos soterrados por
outras palavras daninhas, estéreis, sufocantes.

Há palavras que desenhamos com paixão,
que nos forram a alma com tons de coral
quente, ternos vínculos que nos prendem
e se deixam prender. Outras, as mais
audazes, desenham-se a si próprias, ateando
momentos que mostram o que elas escondem.
Há, ainda, as que sustêm madrugadas perfeitas,
esplêndidas, onduladas de pureza e infinito.

Há palavras onde é bom repousar para sempre.

AMS

Despertares

Feliz aniversário!
Nunca te passará pela cabeça que me lembrei desta data; muito menos que me lembrei de ti. Lembrei. Quantos anos já passaram? Uma eternidade! Não vou escrever a tua idade. Sim, eu sei que a maioria dos homens não liga a essa história de revelar a idade real. Esse hábito de omitir ou deturpar o ano de nascimento - já quase um dogma - costuma pertencer ao reino feminino. Claro que há sempre excepções. Não creio que seja o teu caso. A razão é outra. Simples. O homem que tu és presentemente, a idade que tens, as mudanças que o tempo - logicamente - provocou em ti - o certo é que provoca em todos… Pobres dos que estão convencidos que são imutáveis… - tudo isso pouco me diz. Ou nada.
Lembrei-me simplesmente do dia de aniversário do meu amigo de infância. Do meu primeiro amor. Sim, foste o meu príncipe encantado naquela idade em que é possível acreditar em contos de fadas. Só muito mais tarde, creio, te apercebeste do meu encantamento por ti. Nessa altura, ironicamente, eu já tinha deixado de acreditar em estórias de princesas e de príncipes que lutam com dragões para as conquistar.
Nunca reparaste, quando as nossas famílias se juntavam em época de praia, na miúda que não tirava os olhos do teu rosto, dos teus gestos, te seguia para todo o lado como uma sombra, e que, ingenuamente, confessava à mãe - “Quando crescer, vou casar com o …” . A minha mãe achava piada e dizia habitualmente - “ És uma tonta! Querem ver que a formiga já…”. E ia, célere e divertida, contar a “anedota” ao meu pai que, mais sensível a essas coisas do coração, dizia - “ A vida dá muitas voltas, filha. Mas não seria melhor pensares em casar com um homem mais novo? Quando tiveres idade para casar, já ele será avô”. Só agora reparo no exagero das suas palavras e na sua ânsia - já nessa altura - de me proteger, evitando-me desilusões.
Também nunca soubeste - e nunca saberás, já que nunca lerás este texto - que havia uma adolescente magricela e feiosa que, impreterivelmente, às duas da tarde, se colava à janela… apenas para te ver passar. Agora sei que o amor, mesmo que não haja “um depois”, começa sempre desse modo. Não nos é dado escolher o momento do seu aparecimento. Ele surge sem ser convidado. E era assim mesmo. Perdia-me nos teus olhos. Perdia-me no teu sorriso branco. Amuava com as tuas “gracinhas” relativas ao meu crescimento, aos meus pretendentes, aos meus segredos, e não fazia a menor ideia que a tudo isso se chamava amor.
Recordarás o dia em que festejei os meus quinze anos? Duvido. Estavam todos reunidos - como depois esses momentos foram rareando… - familiares e amigos, caprichando em tornar aquele dia inesquecível à aniversariante. Só que a “rainha da festa”, eu, apenas teve a percepção de que era o centro de todos os que ali se encontravam quando tu, o centro do meu limitado mundo, apareceste, fugazmente, para me dar um beijo e uma caixa de chocolates. Foste o mais belo presente daquele dia. Aliás, nessa altura, esta tua amiga, gulosa compulsiva, jurou, nunca por nunca, tocar na caixa de bombons que lhe tinhas oferecido. Desgraçadamente, o irmão, espírito bem mais prosaico, decidiu profanar a sagrada relíquia, chamando-lhe “um figo”.
Nesse dia memorável - disse-me o meu sexto sentido de menina quase mulher - “viste-me” pela primeira vez. “ Estás muito bonita! Vais precisar de um guarda-costas para te defender…” - disseste, rindo, fingindo não reparar no meu rubor de felicidade. Posso dizer, e não estarei muito longe da verdade, que foi, nesse momento, que senti a minha primeira arritmia.
Contigo o amor deixou de ser uma miragem. Encontrei-o pela primeira vez. E sonhei. E suspirei. E sorri. E fui feliz. E chorei.
Quando soube da tua partida para Inglaterra, o meu mundo desmoronou-se. A miúda deu, definitivamente, lugar à mulher. A minha tristeza exteriorizou-se de tal forma que, acredito, tu te apercebeste, finalmente, da minha paixão. Do meu amor. Criancices! Ilusões de adolescente - explicaste com a lógica tão falta de lógica dos homens. E partiste.
O rio do tempo arrastou-nos no seu caudal. Aos poucos, a tua imagem foi-se desvanecendo e deu lugar a outras imagens. Nunca percebi por que razão nunca casaste. Houve um tempo em que me agradava pensar - desculpa a maldade - que nunca tinhas encontrado alguém que se perdesse no teu olhar… Fantasias de mulher!
De quando em vez, tinha notícias tuas. Solteirão convicto. Mulherengo assumido e… irrecuperável. E eu cismava, recordando a miúda da praia. Aquela que dizia - “Quando crescer, vou casar com o…”!
De tudo isto me lembrei, hoje. Porque é o dia do teu aniversário. Porque, de certa forma, foi contigo que descobri que o amor é o tal “fogo que arde…”. Porque não há nostalgia sombria nestas recordações - só uma luz quente que se derrama sobre as palavras e as inunda para sempre da beleza única, intensa e mística do primeiro amor.

AMS

Visita Inesperada

Sem motivo,
Nem sequer a noção
De qualquer recôndita poalha
Acenando, encarcerada,
Hoje, lembrei-me de ti.
E, por uma qualquer oculta razão,
Permaneceste em mim,
Como se o amor me viesse visitar,
Forte como um destino,
Breve no seu resplendor,
Mas talhado de tão rara perfeição,
Tão pleno de luz que o faz regar
Metáforas de sol nos meus sentidos,
Que ainda bebo, nesta hora,
A emoção de me lembrar de ti,
Aqui e agora.

AMS

Apenas um ligeiro desconforto...

Acalme-se. Vá lá, isso são pieguices de mulher grávida. Não notei nada de especial no exame. Colo do útero fechado, não sangra… Já sei, vai voltar a repetir que essa dor na perna quase não a deixa andar. Já pensou que pode ser da coluna? O peso aumentou e as descalcificações são normais no seu estado. Nem sequer vejo necessidade de recorrer à ecografia, prova de que estou absolutamente convicto do que afirmo. Mais alguma dúvida?

Ela olhava para o médico, incrédula, assustada, atordoada, amarrada a emoções profundas, marcantes, não conseguindo dizer uma palavra que fosse. A certeza dele era a sua dúvida. Estúpido! Tu não vês que já não estou grávida?! Não sentes isso? Sim, é loucura. Esta barriga é real, existe, e, no entanto, como fazer-te entender que está vazia?! Como?! Tu és médico, a ciência está do teu lado. Mas nunca foste mãe. Não compreendes a diferença. Eu falava, ele entendia. Mexia-se. Eu falo, só sinto o silêncio, o nada. E este elo quebrado que não sei explicar-te. Entende-me! Não há nada cá dentro! Já não há nada...

Vou receitar-lhe um calmante e quero que descanse. O nervosismo está a prejudicá-la. Tem de pensar no bebé. Como já lhe repeti dezenas de vezes, não vejo qualquer sintoma que me leva a tomar outras medidas. Quero falar com os familiares que a acompanham. Fique tranquila. Isso é mimo!
Mimo?! Que estava aquele idiota a dizer-lhe? Mimo?! A dor na perna era cada vez mais insuportável e ele dizia-lhe que, por mimo, tinha dado entrada na urgência do hospital?!
Faça-me uma ecografia, doutor. Faça-a! Eu sei que algo não está bem. Não me pergunte porquê, mas sei. Chame o chefe de serviço, chame quem quiser, mas não saio daqui sem ter feito uma ecografia!
O desespero era tanto que não a deixava chorar. Queria gritar. Pedir ajuda. Rezar a esse Deus que dizem infinitamente bom. Porém, no fundo, já sabia que era inútil. Estava ligada ao irremediável. Como é difícil descrever o que nos corrói lentamente quando pressentimos que a ilusão do que se quis passa a ser, apenas, a nostalgia do que não se teve.
Por ser familiar de um colega, vou fazer o que me pede - resmungou, contrariado. Está a pôr em causa o meu profissionalismo? Não havia, não há necessidade. As grávidas viciam-se em ecografias. Acompanhe-me.

Os corredores enormes do hospital, a noite chuvosa e escura, a luz ludibriosa, apática e desnuda das lâmpadas, as figuras que lhe pareciam fantasmas arrastando-se lenta e resignadamente, enfim, todo aquele cenário lhe apertava ainda mais o coração e a arrastava, inexoravelmente, para o fim que já pressentia.
Dispa-se. Deite-se. Aguarde a chegada da enfermeira de serviço.
O frio cortante das palavras, a quase indiferença e a pressa de quem está com vontade de arrumar de vez com a situação, as paredes altas, nuas, brancas, parecendo aumentar a pressão que a esmagava, a dor que não passava, a certeza… a certeza… De súbito, a cabeça começou a andar à roda, a girar num espaço sem consciência, talvez a antecâmara entre a vida e a morte… Ainda ouviu uma voz distante que gritava - Enfermeira! Enfermeira! A paciente desmaiou. Chame o Dr…

Que susto nos pregou. Acorde… Está melhor? Essa tensão é que está muito alta. Vamos fazer-lhe a sonografia. Descontraia-se. Vai "ver" o seu bebé, está contente? É só o tempo de espalhar o gel na barriga… Pronto… O rapazote vai dar-nos um ar da sua graça. Bem zangado estará com a mãe que, esta noite, resolveu não o deixa dormir…
Ela fixou fundo as pupilas do médico mais velho. Nem se atrevia o olhar o monitor. Estava atenta à mínima reacção, ao mínimo sussurro, ao gesto mais contido. Por momentos, ainda esperou um milagre. O instante mágico da vida. Um instante… Eles é que tinham razão - era uma mimalha. Não havia motivo para alarme. A cara do médico estava mais pálida ou era impressão sua? Por que motivo não apanhava o bater do pequeno coração? Que o levava a olhar, estranhamente, para o colega? Falem! Falem! Digam que ele está bem. Suplico-lhes. Digam-me que o meu filho está bem!
O médico que a atendera, inicialmente, aproximou-se do seu superior. Começaram a dar-lhe pequenos murros na barriga… Observavam, atentamente, o monitor. Olhavam um para o outro. Não a fitavam, receando, talvez, a voragem do caos que a tomava.
Uma voz que não identificou como sendo sua, mas que saiu algures dela, sentenciou – Está morto. Está morto, não é verdade? O meu filho está morto.

Ouvia, ao longe, o arrastar de uma maca. Uma porta que se fechava. Ouvia o bater descompassado do ser coração. A dor, fina e acutilante, da perna passara - ou era ela que já nem a sentia. A dor que se agigantava no seu interior era avassaladora: rasgava, dilacerava a alma. Ninguém aguenta muito tempo isto - pensou. Talvez eu não resista também…
Lamentamos, acredite que lamentamos, mas o feto está desvitalizado. Já não pode sair daqui. Essa dor na perna é provocada por um começo de infecção. Vamos induzir o parto. Não vai ter dores, creia. Apenas um ligeiro desconforto. Vou mandar chamar os seus familiares… Não se culpe. Isto, infelizmente, acontece todos os dias.

Não respondeu. Olhou somente para o primeiro médico, detentora da certeza do irreversível. O que ele viu naquele olhar deve ter sido tão tragicamente humano, tão terrivelmente laminado de incompreensão que, cabisbaixo, preso à sua sapiência, à sua pequenez, saiu precipitadamente.
Iam evitar-lhe a dor. Sentiria apenas um ligeiro desconforto…




Quando pensamos fintar o destino e nos agarramos a bolinhas de sabão, é quando ele mais se recusa a acudir ao nosso apelo. Somos, todos, tão improváveis de nós mesmos. - Casimiro de Brito

AMS

sexta-feira, outubro 20, 2006

Era suposto escrever o amor

Era suposto escrever o amor. Uma ode transbordando felicidade. Vivências de exaltação sublime e envolvente. Silêncios que se tocassem num espaço de emoções e de afectos. Mãos que só existissem para tocar outras mãos. Conduzindo-as até ao fim.
Mas as ideias esquivam-se, recusam alinhar no trilho fácil da ilusão e são sugadas pela vertigem de uma acutilante, esmagadora realidade. Onde se sente perdida, atormentada com as suas imperfeições e insuficiências. Onde a lucidez é a coragem de clarificar que se é ou não se é. Amada. Que se tem ou não se tem. Amor.
Escreve. Tenta dar um rumo às palavras. Todavia, elas surgem intempestivamente. Indesmentíveis no que sentem. Virão do fundo mais recôndito da alma ou de um ponto indefinido que cobre os olhos de sombras? Enquanto se deixa embalar pela escrita, sente-se segura. O amor passa a ter muitas leituras. O que podemos prever não nos emociona, dizem... Queria poder evitar certos lugares-comuns, certos sentimentos, algum desencanto, algumas pessoas. Queria fechar os olhos, evitar certas lembranças que nos tornam tão vulneráveis, criar o vazio e, por escassos segundos, regressar a um estado total de ingenuidade confiante, inquebrável. Como se mergulhasse na grandeza maior de quem nos criou.
Às vezes, pesa-lhe a vida. Pesa-lhe a rotina em que se instalou, essa falsa coerência que não passa de um mergulhar nas águas emudecidas de trilhos sem sentido. Pesa-lhe o que sente e não diz. Pesa-lhe o que diz e não sente. Pesam-lhe os ponteiros da sua existência, avisando-a, ironicamente, de que sempre chega demasiado tarde. Ao encontro de si mesma. Ao encontro com os outros.
Não passará, afinal, o amor de uma sombra inquieta, fugidia, sublimação de miragens que não existem senão na nossa necessidade de não nos sentirmos abandonados no deserto que nos cerca?! Como se pode falar de amor sem marcas do desamor, sem gestos adivinhando solidão? Como se pode construir um amor do que não nos podem dar? Do que de nós já desistiu? Que mentiras teremos de consentir nos labirintos onde ele se esconde? Misterioso. Ambíguo. Indefinido. Incerto de si mesmo.
A folha de papel está cansada de interrogações. Farta de análises que a contaminam de contradições. Farta de palavras que se encontram, desencontram, cruzam, acercam, separam. Assim o amor.
Era suposto escrever o amor. Era suposto as palavras fluirem num cântico poético que modificasse os domínios do real, recriando um tear de emoções profundamente sentidas. Abraçadas umas às outras. Sem equívocos. Era suposto o amor não se perder nos labirintos obscuros do inquestionável. Era suposto poder escolher o caminho oposto à dor. Era suposto o amor ter asas, mas nunca fugir.
Só não era suposto que essa fraqueza, que nela já só grita renúncia, estranhamente, seja - ainda e sempre - a força que lhe alimenta a vida.

AMS

perfeito imperfeito

Não gosto do pretérito perfeito.
(Eu amei, tu amaste...)
Soa-me a passado liquefeito
Na aridez desgastante do tempo.
Ecoa como destino desfeito,
Sem presente, sem futuro, sem sustento.

(Eu amei, tu amaste…
Eu errei, tu erraste...)

Ambos diluídos em sonhos separados,
Capítulos por nós descurados
Da gramática imprevista da vida,
Que urgia aprender, sentir, partilhar,
Para assim, em modal sintonia,
Conjugarmos a intemporal melodia
Do perfeito imperfeito verbo amar.

(Tu amaste, eu amei...
Tu mudaste, eu mudei…)

Vamos recomeçar a lição,
Dando voz iterativa ao coração?

AMS

Sem Final?!

É aqui que começa a história.
Uma história simples. Não podia ser de outra maneira.
A história de um homem e de uma mulher que se cruzam, um dia, mas não chegam a encontrar-se. Passarão um pelo outro, perto, muito perto, mas as suas histórias não se cruzarão. A vida é puro acaso, dizem. Todavia, experimentarão a subtil sensação de um quase olhar, de um quase toque, de um quase fundir de silêncios que chegasse ao coração um do outro. Quase tudo. Quase nada. Culpa da autora, certamente, que os delineou seres ocasionais. Este erro fechá-los-á na linha de um eterno equívoco. Eles vão passar um pelo outro, é certo, mas não se reconhecerão. Seres anónimos. Sem ódio. Sem amor. Sem saudade nem desejo.
Será possível mudar o rumo à história? Toda a gente gosta de romance…
Vamos por tentativas. E se a disfarçasse de Julieta e a ele de Romeu? Não. O final seria, indubitavelmente, trágico. E o leitor gosta de vida, de uma história de amor - pequenina que seja.
Ele e ela. Com a distância a separá-los e a intimidade dos seus pensamentos à espera que a autora - senhora dos seus destinos - se decida a mudar-lhes o percurso das suas vidas.
Por que motivo esperam eles? Por que motivo esperamos todos? Talvez só lhes/nos reste mesmo a espera. O resto é um enigma. O resto, aliás, pode nunca vir a acontecer. Pode haver demasiadas ampulhetas e muito pouco tempo. Mas nada disto os preocupa. São verdades comuns. Verdades que não negam a verdade do coração. E é por isso que nenhum deles resolveu, ainda, atravessar a rua.
Que se há-de narrar nesta história? Que, um dia, alguém, por capricho de quem resolve brincar aos escritores - seres poderosos que podem ziguezaguar a vida… dos outros - entrou, por acaso - debilidade ou ousadia - na história de um outro alguém e que, contra a vontade de quem o criou, rasgou o guião e se escreveu a si próprio?
Às vezes, precisamos de um fim diferente. De uma história com um final convocando momentos de felicidade. Precária, embora. Fugidia. Como um encontro inesperado, num local imprevisto, num fim de tarde igual a tantos outros.
E aqui começa, novamente, a história. Um homem. Uma mulher. Ambos atravessam uma qualquer rua em direcções opostas. De repente, no momento em que se cruzam, olham-se. Nada faz prever que estejam a comportar-se diferentemente do costume. Nem um pequeno sinal que possa permitir aos observadores, mesmo aos mais atentos, afirmar que alguma coisa se vai passar. Apenas um homem e uma mulher que se cruzam e se olham.
A história passa a pertencer ao leitor. E a eles. Que irá passar-se? Que se terá passado? E ter-se-á passado alguma coisa para além do que deveria passar-se?!

AMS

esta

esta

não a que os outros projectam
num reflexo pessoal
conveniente
de mil imagens distorcidas
por espelhos ora côncavos
ora convexos

esta

não a das verdades pequeninas
angulosas
de claridade baça
que apagam o possível que somos
e riscam o impossível em nós

esta

maré vaza
maré cheia
metade ternura
metade amargura
mulher luta
mulher medo
livro pintado de água
arco-íris de alegria
amada
cansada
erguendo o desprezo
oferecendo a mão

esta

sou eu

AMS

Quero que saibas

Quero que saibas que, hoje, soltei todos os sonhos - ausentes de mim e tão em mim - o eco estrangulado do sentir, a vontade que me obriguei a calar.

Quero que saibas que, hoje, acordei, uma a uma, todas as letras do alfabeto, parti com elas, voltei com elas, e decifrei-te na claridade exacta das palavras.

Quero que saibas que não é de tristeza o palpitar dessas palavras, mas de serena respiração, de ternura súbita a abrir caminho, acordando outras palavras ocultas, agora livres de dúvidas, de atalhos, de esperas alastradas em manchas de interrogação.

Quero que saibas que, cansada de repousar no ontem, neguei a solidão, espalhando as suas cinzas em tudo o que a ausência espelha.

Quero que saibas que tive medo, que já não é medo, e que encontrei, enfim, outra margem de mim que me diz – a dor escoou. O sonho sobreviveu.

Quero, ainda, que saibas que tenho já no olhar a certeza da chegada, que o longínquo profundo da memória flutua sem sobressaltos, sem tropeçar numa lágrima perdida na clareira íntima da saudade.

Quero, finalmente, que saibas que, mesmo sentindo o teu silêncio e nele a minha lonjura, é para ti que escrevo. Sempre.

AMS

Os animais são nossos amigos

Às vezes, a vida fica-me atravessada na garganta. Ou serão as pessoas?! Não consigo, decididamente, perceber o motivo que nos leva a complicar tudo e a transformar a nossa existência num caos. Numa chatice. Num inferno. Por isso, e em certas ocasiões, prefiro o contacto pacífico, amistoso - sem neurastenias - com os chamados animais irracionais.
Quando olho para trás - e tenho tempo para pensar, o que se torna difícil atendendo a estes novos horários escolares - revejo os animaizinhos que já passaram pela minha vida. Desde gatos, hamsters, tartarugas, peixes… houve de tudo. Muitos - quase todos - já partiram, é certo, mas o afecto prolonga-se até hoje. Ficaram boas lembranças per saecula saeculorum. Não entrámos em litígios. O tempo não branqueou o que nos uniu e o amor não virou ódio. Em suma, aconselho-os vivamente a experimentarem partilhar o vosso quotidiano com um "não-falante". Garanto-lhes que não será preciso repetir-lhe constantemente - Não me trates mal… que eu preciso muito de afecto. Eles sabem. Eles adivinham. Eles têm poderes balsâmicos. Eles não exigem que sejamos bonitas, boas - a língua portuguesa é, efectivamente, muito traiçoeira - caladas e burras.
Assim sendo, e em homenagem a todos esses adoráveis bichinhos que fizeram com que a minha vida fosse uma eterna época natalícia, passo a relembrar alguns dos episódios mais marcantes que vivi com eles.
Comecemos pelos hamsters - Tristão e Isolda. Em abono da verdade - que me perdoem as almas mais sensíveis - o nosso relacionamento - o meu e o deles, é claro - não foi propriamente o chamado amor à primeira vista. Nem à segunda. Nem à terceira. Na realidade, detesto ratos. A minha sogra - sempre atenta a estes detalhes, penso eu - resolveu, pois, mimosear a minha filha com dois - sempre a mania das grandezas - destes deliciosos roedores. Por pura ironia do destino - não existiu intencionalidade, acreditem - a primeira vez que peguei num deles, horror dos horrores, deixei-o cair num balde com detergente. Perante mil olhares acusadores - como me senti monstruosa! - quase me vi impelida a fazer uma repulsiva respiração boca-a-boca. Valeu-me a vontade de viver do Tristão que, contrariando a história trágica dos dois desgraçados amantes, resolveu sobreviver, dar-me uma dentada e lamber, histericamente, o pêlo. Não deve ter ficado traumatizado. Mal o meti na gaiola, rolou, rolou e rolou. Bem, nem sempre rolou. Algum tempo depois, em lugar de dois “fofinhos” tinha… nove.
Seguiu-se a fase dos anfíbios. Com direito a palmeira e a duas tartarugas minúsculas e, aparentemente, afáveis. Aparentemente. Subitamente, vejo-me em casa com uma nova versão do respeitável Dr. Jekyll e do diabólico Edward Hyde. Recusavam a comida enlatada. Exigiam fiambre e mortadela.Cresciam a olhos vistos e, novamente, o meu dedo se viu acariciado por um daqueles querubins. As minhas noites transformaram-se num tormento. Estava a criar dois canibais sôfregos e assustadores. Valeu-me a ideia brilhante - não, não é só o eng. Sócrates que é um iluminado - de presentear os meus sobrinhos com aquelas pestes carnívoras. Em troca, veio o Jardel. O jogador? Não, o gato. Foram tempos deliciosos. Ele resolveu alargar os seus domínios até às camas. Eu resolvi assumir, firmemente, a minha posição de proprietária. A luta foi titânica. Várias vezes os "edredons" foram para lavar a seco. Várias vezes o insolente Jardel se deparou com a raiva em pessoa atrás dele. Exceptuando esta luta pelo poder, a nossa relação era cordial e, frequentemente, cheia de cedências da minha parte. No fundo, eu adorava o snobismo, a arrogância, o orgulho e a desobediência do bichano. Para desgosto de todos, todavia, a alergia da minha filha ao pêlo do felino obrigou-me, mais uma vez, a ofertar um amigo e a acenar, novamente, um sentido adeus.
O luto nunca mais passava. O Jardel tinha deixado marcas por tudo quanto era sofá e, sobretudo, nos nossos corações. Que fazer? Como mitigar tamanha dor? A resposta não tardou. Peixes. Peixinhos. Coloridos. Vivos. Inofensivos. E, de novo, a alegria reinava nos nossos corações. Montámos o aquário. Comprámos plantas; produtos para a água; objectos decorativos e, finalmente, os ansiados peixinhos. Alguns peixões. Termómetro. Filtro. Vitaminas. Mais variedade de vitaminas. Maternidade. Enfim, era o paraíso. Ou quase. Rara era a semana que não nos presenteava com um funeral. Lágrimas. Culpas não assumidas. Em contrapartida, quando havia nascimentos - e até com peixes se trata de um momento mágico - era um delírio. Bem, isto quando alguma mãe - sem instinto maternal ou receando a depressão pós-parto - não resolvia engolir os filhotes…
Porém, e repetindo velhos dramas, o fim foi trágico. No final de umas férias, ao entrar em casa, deparei-me com um cenário dantesco. Os peixes estavam literalmente cozidos. O termostato tinha avariado e, consequentemente, uma terrível chacina atingira todos os habitantes marítimos. Chorei. Continuei a chorar, jurando que nunca mais queria animais em casa. Excepto o Mike. O Mike? Sim, um peixinho vermelho que não faz outra coisa senão circular. Como circular é viver, pensei, este vai viver uns bons anos. Vá lá uma pessoa fiar-se em slogans ! Não é que o Mike esteve para ir até ao céu dos peixes, esta semana?! Como?! Imaginem a cena: uma mãe chata - chatérrima - que, insistentemente, pergunta - Já deste de comer ao peixe? Será que ele ainda está no aquário? Porquê?! A água está tão turva que nem sei se saiu … Deste-lhe de comer… ontem???!!! Tu não comes todos os dias?! Mas, afinal, de quem é o peixe?! Continuem a imaginar, por favor. De súbito - Mãeeeeeeeeee, mãeeeeeeee, o peixe morreu! Morreu?! Ele estava bem vivo até eu te mandar mudar-lhe a água… Que foi que aconteceu? Não sei. Ele ficou branco e deixou de mexer. Branco?! Querem ver que lhe deu um A.V.C.?!Ó meu Deus, onde andas tu com a cabeça, I...? A água está a ferver, porra! Não admira a palidez do desgraçado. Não morras! Não morras, por favor. Agora é que tu pareces o Michael Jackson… todo branco. Água fria! Põe a torneira na água fria! Não morras… Prometo que te compro um aquário rectangular. Deixas de circular, fica combinado.
Uffff…. Não morreu! Ficou branco que nem cal, é certo. Mas ressuscitou e ainda continua a circular. A culpa é da ministra da educação que não me dá uma tarde livre para poder ir às compras. Entendido?
Caros leitores, sigam o meu conselho - adoptem ou comprem um animal. Afinal, os animais são os nossos melhores amigos. Estão sempre do nosso lado… mesmo quando se preparam para nos morder o dedo. Adoram-nos - apesar dos nossos defeitos. E há tanta variedade… Se não gostam de gatos, comprem um cão; se não querem tartarugas, comprem uma iguana; se detestam a bonomia dos peixes, comprem um papagaio; se têm espírito aventureiro, adoptem um lobo, um crocodilo, uma anaconda… Não interessa a classe. Levem um animal para casa. Vão ver que vale a pena repensar prioridades. Porque, caros amigos, ele vai gostar sempre de vós. Porquê? Porque sim, ora!

AMS

quinta-feira, outubro 19, 2006

este querer encalhado

este querer encalhado
no esboço oculto de ti
faz-me sentir de algum modo
que parto para nenhum lado
- doendo por ser nenhum -
laminada passo a passo
pela certeza
que o amor passou por nós
disfarçado de o não ser
afagando levemente
como um indício de história
que se escapa da memória
tão perto já de perder-se
no gume do esquecimento

este querer encalhado
no esboço oculto de ti
é já rota de cansaço
sentido de além aqui
em toda a parte de mim

AMS

Testamento

Aos meus amigos, àqueles que, na minha vida, do amor fizeram a seiva mais doce que alguém pode partilhar, deixo uma ilha de palavras desenhando a beleza minuciosa da amizade, o meu porto de abrigo, e tudo aquilo que soube sentir, mas não consegui dizer.
Deixo, ainda, um coração descompassado, rebelde, imperfeito, quantas vezes magoado, a quem lavei a tristeza nas dobras do sonho e em memórias que não sei dizer se foram saudade ou apenas o rumor da minha ansiedade.

Aos meus não amigos, àqueles que, no logro dos artifícios e no crepitar de desatentos, secos gestos, de mim sempre se ocultaram, deixo a entrega deste instante e a minha errante fuga; fuga de uns olhos com medo de ver o afastamento; fuga de um abraço que temeu tocar o apenas visível; fuga de uma alma com medo de se desnudar.
Deixo-lhes, também, um céu muito azul, uma noite estival perfeita de luz e a luminosa precisão dos caminhos que os levem sempre até aos outros ainda que na contraluz do silêncio.

A ti, que me ensinaste que precisamos de ser amados, deixo as palavras que nunca pude arrancar de mim. Deixo-te o aconchego desta ternura de sol poente, esta nascente infinda de bem querer-te e o fogo da emoção com que a minha alma te sabe e sente.

AMS

Folhas

Flores vermelhas, insinuantemente ornamentadas de folhas verdes, estão por todo o lado. Chamejantes, atractivas, sem nada para perder ou para ganhar a não ser o brilho fugaz de uma beleza caprichosa e inglória. Quais flores de plástico que nunca morrem, é certo, mas que nunca poderão apreciar o contacto de uma borboleta pousando, delicadamente, nas suas pétalas, porque são incapazes de sentir a leveza de uma carícia, o aroma indecifrável de uma gota de chuva ou de uma lágrima. Se tiverem um bocadinho de tempo e de paciência, vou tentar contar-lhes a história de uma folha. De uma folha?!... Não seria mais interessante uma história de flores? - dirão os mais exigentes. Talvez... Só que essas histórias requerem uma arte que não possuo, uma espécie de insolação discursiva, como diria certo escritor. Rendo-me, pois, à história da folha. Uma folha de árvore. Uma folha que tem, teimosamente, persistentemente - tolamente ? - resistido ao calor sufocante e abrasador dos verões, ao frio gélido dos invernos, aos ventos imprevisíveis - mas fortes e violentos - que passam, em lutas quotidianas, sobre a sua árvore. Só que uma folha não pode aguentar-se eternamente presa a uma árvore. Não pode... nem quer. Ela vê as outras folhas esvoaçarem agilmente, douradas, acastanhadas, soltas, e também sonha desprender-se do ramo protector e, simultaneamente, carcereiro, que a sustém. Por outro lado, também vê as folhas caídas, calcadas, espezinhadas por pés indiferentes. E tem medo. O Outono chegará brevemente. Ela oscila, oscila... mas ainda não teve coragem para se deixar cair. Às vezes, naqueles momentos de hesitação, ela pergunta-se - "Porque estou aqui? Eu não posso morrer. Já morri demasiadas vezes... De que tenho medo?". Pobre folha. Não sabe que o que a prende é, tão-somente, o que receia. Que o que a guarda é a fragilidade. E oscila, oscila... Esta história acaba aqui, ou antes, não acaba.A folha lá continua suspensa na árvore, vendo a vida timidamente escurecer por nuvens carregadas de uma certeza que não é possível ludibriar. Perdoem, mas não consigo dar um fim à história. Não pretendo o chamado" final feliz" - demasiado banal - e que não condiz com folhas frágeis e oscilantes. Também não desejo para a folha uma tragédia; muito menos o epílogo mais previsível - que seque, que o dourado desapareça... sem que sinta jamais a sensação inebriante de voar por um segundo que seja. Encantada. Ainda que desencantada.
O que irá acontecer a esta folha?!

AMS

Escrever...

Que interesse têm as minhas palavras se, ao invés de nelas me encontrar, nelas me perco? Por que motivo escrevo? - interrogo-me frequentemente. Qual o porquê desta ânsia de encontrar respostas se a vida se resume a pontos de interrogação?
Vamos por tentativas. Como é óbvio, não busco a fama. Muito menos a imortalidade. Tenho perfeita consciência de que não habita em mim aquela chama que molda as grandes almas destinadas à duradoura glória de jamais serem esquecidas. Apenas sentimento e este desejo pueril de valer pelo que sou - eis o que há em mim. Não me iludo. Como eu… há milhares de amantes da escrita. Sim, é esse o rótulo adequado. Será, porventura, por uma questão de solidão (in)voluntária? Uma fuga para não me sentir tão desnorteada nesta nossa efémera passagem? Ai o tempo! Tão serenamente apressado! Tão atentamente indiferente!
Será - quem sabe? - a estratégia que encontrei ao meu alcance para captar a atenção dos distraídos da vida? Tão absortos! Tão alheios ao que os rodeia. Aos que os rodeiam.Tão esquecidos dos outros. Até deles.
Por que razão escrevo, então? Para não me alhear? Para não me resignar, quero dizer, para não perder a ousadia de me revoltar? Para quebrar rotinas - ainda que, paradoxalmente, escrever possa parecer uma rotina? Para não limitar a história da minha vida ao subtil - e contínuo - deslizar diário de vinte e quatro horas?
Escrever será um acto exibicionista? Talvez... De certa forma - não o nego - o acto da escrita implica expor a alma. Todos temos fraquezas. Uns exibem o corpo. Outros desnudam a alma. Sim, sei o que estão a pensar. Em ambos os casos persiste o desejo de tocar de algum modo os outros. Atraindo-os? Chocando-os? Irrelevante. Em ambos os casos há, sobretudo, uma enorme vulnerabilidade. Daí o desapreço. A incompreensão. No fundo, ao falar de mim - ainda que pareça estranho - estou a falar dos outros. Ao falar dos outros... acabo por falar de mim.
Escrever para quê? Não sei. Sei, isso me basta, que as palavras acendem o gesto do que não ouso. Que através delas respiro, simultaneamente, a erosão da realidade e a textura delicada do sonho que me ajuda a sorrir, a acreditar, a não desistir.

AMS

"que nome te resta se eu já aí não estou para te chamar" - Al Berto

Já tentei apagar cem, mil vezes o teu nome. Em vão. Não sei se está preso no meu coração ou se é o coração que está algemado a ele. Não sei de onde veio, como veio, mas arrasta consigo mistérios de tristeza funda e as emoções mais virgens do gesto.
Como um estranho sortilégio, respira comigo, navega em mim, etéreo e insondável, gritando o silêncio arrastado pela nostalgia de algo não vivido. Mas sentido.
E esse nome, o teu nome, a única coisa que nos une, sobrevive sempre à minha lucidez, à minha vontade, à distância infinda - intransponível - de mim a ti, de ti a mim.
O teu maior defeito - costumam dizer-me - é deixares o coração render-se ao sonho - sempre perto, sempre longe - ao voo, ao impulso da imaginação. O meu maior defeito - digo eu - é este permanente desejo de abalar ao encontro de um nome e ter os pés atados à soleira da porta.
Às vezes - quantas vezes - zangada com o meu coração, ralho-lhe - Não te dás conta, doido, que a vida é um jogo perigoso? Corações iguais a ti, que sentes e bates num canto qualquer de mim, estão condenados a nada se ajustar à emoção que deles emana. Lembra-te das borboletas que rodopiam, estonteadas de luz, à volta do brilho e da chama das candeias. Qual o seu fim? Esvoaçam, esvoaçam em círculos cada vez mais apertados, deslumbradas pela luz que as cega, pelo calor que as entorpece, e acabam, exaustas, por se render ao ritual da entrega definitiva.
E o coração responde-me invariavelmente - Não terá valido a pena o sacrifício? Um momento, um só momento de luz não compensará esse último voo? O calor derradeiro não ofuscará a vertigem do frio do medo?
Louco! Louco coração! Vivendo de desvairadas quimeras, esquivas miragens. Escuta a razão, louco! A candeia é o abismo. O fascínio é a dor disfarçada de prazer. O prazer que é, afinal, a dor, conduz, impreterivelmente, à morte. Quantas vezes morreste já?
E ele, inconsciente de cegueira, aceso de sonhos, insiste - Talvez eu seja imortal… Se já morri tantas vezes e tu sempre dizes que te dói o coração… Perdoa-me. Condeno-me, condenando-te.
Insano coração! Sempre que morre, renasce, fortalecido, na dor. Por isso me dói. Dói-me quando tento riscar-lhe o teu nome; dói-me quando tento exilar-te para lugares recônditos do esquecimento; dói-me quando, no espaço da ferida aberta, o teu rosto surge, de novo, brincalhão, trocista, apelativo, e me impele a desejar dizer-te - Dói-te o coração, amor? Fui eu que morri.

AMS

quarta-feira, outubro 18, 2006

algodão doce

Saiu. Estremeceu ao imaginar, mais do que sentir, a porta fechar-se. Hesitou por breves segundos. Atrás dela ficaram anos, vivências, amigos, afectos, meros conhecidos – poucos, muito poucos nunca ultrapassaram o degrau de um relacionamento assinalado com a etiqueta “polidamente correcto”. Dirigiu-se ao elevador. Enquanto esperava, pensava que nada daquilo que damos como certo… o é. Tudo é emprestado. Até a vida. Que pena que alguns a atravessem como se de propriedade privada se tratasse. Tão cheios de certezas, tão cheios de contradições, incapazes, muitas vezes, de tentar solucionar uma miopia elevada e crescente.A porta do elevador abriu-se. Entrou. Um gesto quase mecânico dado o hábito de anos e anos. Ainda olhou para a outra porta fechada, e um novo pensamento a assaltou - às vezes, perder é uma libertação. Viva a falência, então! Sorriu, carregando no botão que dava acesso ao átrio da entrada. Enquanto o elevador descia, reparou no espelho. Observou-se. Voltou a sorrir. Só agora, ao fim de tantos anos, reparava, verdadeiramente, naquele bocado de vidro. Honestamente, só agora reparava bem nela. Não gostou do que viu. Um rosto publicitando niilismo em segunda mão. Porra! Estava mesmo com cara de sofredora diletante. Ensaiou novo sorriso. Queria sentir-se de bem com o mundo, sobretudo, de bem com ela. Ponto final a essa treta do “é tarde de mais”! Nunca é tarde para recomeçar. Que sabem os outros de nós? Nada. Imaginam, petulantemente, saber. Provavelmente, todos jogamos com essa variante, ou seja, todos acreditamos conhecer os outros como a nós mesmos. O problema está aí! Sabemos identificar perfeitamente os defeitos dos outros, as suas fraquezas, os seus erros. Saberemos identificar os nossos? Duvidava. Apontar defeitos a terceiros funciona no ser humano, salvo raras excepções, como uma válvula de escape, uma projecção. Uma espécie de analgésico para consciências. A porta do elevador abriu-se novamente. Chegara ao fim da viagem, daquela viagem . Mas não era o fim. É importante vencermos os nossos medos, sem bluff, sem obsessões, sem amarras. Saiu. Já não havia vestígios de hesitação nos passos decididos rumo à porta da rua. O barulho dos carros, as pessoas apressadas nos passeios, a vida, enfim, estava ali. Nós - novamente a filosofia a fluir - sim, nós é que temos o condão de exacerbar o sentimento, dito hostil, da “mudança”. Temos, forçosamente, de lhe dar o sinónimo de “perda”. Ela não sentia que o estava a acontecer fosse uma perda. Fora apenas nova mudança de rumo. E se a alma aponta a hora certa, os pés têm asas. Assim, num rebuliço mental, juntou as vivências , os amigos, os afectos, em dezenas e dezenas de balões. Olhou , sem nostalgia patética, os balões multicolores, transportando-se até eles, transportando-os até ela. Soltou o cordel que os unia e libertou-os rumo ao espaço. Não são necessários laços quando as almas estão em sintonia plena. Nada incomodada com os olhares espantados dos transeuntes, olhou para o céu, acenou e mandou um beijo. Não um beijo amarrotado, artificial, amargo. Um beijo a saber a algodão doce.

AMS

Mãe, conta-me uma história

- Mãe, conta-me uma história de princesas...
(Um sorriso sereno e enigmático emoldurou o rosto da mãe que, quase em murmúrio, tentou satisfazer o pedido da pequerrucha).
- Era uma vez uma menina...
- Não, eu disse uma história de princesas. Essa menina era uma princesa?
- A seu modo era. Era a princesa dos sonhos... mas também era uma menina... como tu...
- E vivia num palácio com a madrasta e as irmãs más?
- Não, não vivia com a madrasta. Esta era uma princesa muito singular. Vivia com a família e era feliz.
- Ora, assim não tem piada. Não há príncipes... nem bruxas... nem dragões...
- Ouve, esta história não é assim tão simples quanto isso. É verdade que não há dragões, bruxas e, muito menos, maçãs envenenadas... mas há uma coisa bem pior, bem mais terrível...
- O que é, mãe? Ela encontrou um feiticeiro? Foi encantada?
- Claro que não. A princesa dos sonhos cresceu e , um dia, deu-se conta de que não sabia, não podia sonhar. Ela bem fechava os olhos com força, muita força... mas era inútil. Os sonhos não chegavam até ela e, mesmo os que passavam a barreira do real, esfumavam-se... Ela bem tentava agarrá-los... mas só ficava com fumo nas mãos. E, assim, a princesa começou a sentir-se muito só... muito triste...
- E era bonita a princesa dos sonhos?
- Já não recordo bem. Li esta história há muito tempo... Sei que tinha os olhos verdes, de um verde cor-de-ervilha. Não é engraçado?
- Como os teus, mãe? O pai dizia sempre que os teus olhos tinham a cor das ervilhas.
- Talvez... Não, eram mais bonitos, mais límpidos, mais confiantes...
- Mãe, e o que foi que aconteceu à princesa dos sonhos? Morreu? Se ela estava tão triste...
- Não, não morreu. Desapareceu. Um dia, não se sabe bem como, a princesa tinha desaparecido. Na sua cama já não havia uma menina com olhos cor-de-ervilha. Só havia uma mulher.
- Má?
- Não, não era má. Só não acreditava em sonhos e por isso não conseguia ver a beleza da vida - o céu azul, as estrelas, o mar intenso, o amor...
- E o que aconteceu à mulher? Foi presa e castigada?
- Sim. Diz-se que ainda hoje está presa. Foi acusada de ter feito desaparecer a princesa dos sonhos.
- Mãe, estás a chorar? Porquê?
- Tolinha... não estou a chorar. É a luz do candeeiro que me incomoda. As mães não choram quando contam histórias de princesas às filhas.
- Tenho sono... Olha, a princesa nunca mais apareceu? Nunca mais ninguém a viu?
- Ainda deve andar, algures por aí, à procura dos seus sonhos. Mas não fiques triste... a princesa, agora, és tu.
Bons e lindos sonhos, meu amor.

AMS

retrato inacabado

Não cheguei a acabar o teu retrato.
Faltou-me a transparência. Não soube definir
a imagem que de ti sonhei, nem adivinhar o momento
de ela ser verdadeira, ter forma e reflexos,
transformar-se em algo vivo, rasgando os véus
da não-realidade. Os traços saíram hesitantes,
vagos, indefinidos, desenhando contornos de nada,
num espaço vazio, imenso, prisioneiro de cores
cansadas, trespassadas pelas garras do desencanto.
Olho para a tela e para as linhas duras, frias,
que a mancham de solidão inevitável, e não te
reconheço, nem me reconheço. Tentei recriar-te,
dar-te o momento exacto do tempo dos afectos,
traçar a linha que delineasse a tua alma,
o ressurgir da luz. Mas o sonho está gasto.
Olho para o retrato e sei que algo não foi
captado. Há como que uma imagem vestida de
ausência, algo inacabado, reminiscência do
que não conheço, já não me é. Observo o teu
rosto, analisando feição a feição: olhos,
nariz, boca, o todo, numa total abstracção.
Inútil. Esse vazio no olhar, essa expressão
parada num gesto esquecido - não é nada!
O branco do papel gera mais frio, o teu rosto parece
desfocado, imperfeito, e, fatigada, a minha mão
queda em suspenso, petrificada, perante a dura
verdade: não consegui exprimir a claridade da rota
de um amor quase tocável, quase possível. Quase.
Observo o teu retrato e vejo apenas névoa!

AMS

fico serena

da tua boca sorvo
palavras chama
que enlaçam
fogo desejo
na noite calma

das tuas mãos febris
meu corpo clama
carícias de maré plena
brisa ternura
na noite amena

da tua alma alvorada
dos meus anseios
cristal ternura da minha pena
respiro teu pomo lume
fico serena

AMS

terça-feira, outubro 17, 2006

procuro-te

procuro-te

nos gestos fecundos de ternura
na paixão transpondo o limiar da entrega
na bendição herege da loucura
na ilusão que arde e que nos cega

na urgência inquieta de um só querer
no fogo perturbador de um olhar
na claridade de um amanhã a nascer
no exílio de afagos a soltar

procuro-te

nos contornos de um tempo pressentido
no frágil casco de um sonho a aportar
no gume ardente do pensamento proibido
na palavra indómita que teima em respirar

mas quando finalmente te encontro
no eco ou ressonância do sentir
não consigo transpor a distância
do que nunca se chega a cumprir

AMS

simbiose

Um homem e uma mulher
Acenam o tempo dos desejos floridos
Dos abraços em sequiosa busca
Dos enleios que perpassam na alma
E percorrem a nudez suplicante dos corpos

Um homem e uma mulher
Em simbiose
Bailando pelas voluptuosas praias do desejo
São a harmonia plena

AMS

A culpa é dos genes

Pois é. Tudo mudou e nada mudou. A culpa é dos genes, claro. E da sobrevivência da espécie, ora pois.
A teoria é velha e quase juraria que a minha bisavó a conhecia, muito embora ignorasse a existência dos invisíveis - mas poderosos e influentes - genes. Para o caso tanto faz. Até porque a minha bisavó já morreu. Só não morreu a tal diferença ditada pela diferença. O problema é que parece que a dita vai manter-se hereditária ou até mesmo eterna.
As voltas que a vida dá. Dará? Vou tentar explicar o meu ponto de vista. Isto, está claro, se me for concedido tempo de antena. Porque a diferença pesa...
Sabem, realmente, onde reside a tal diferença? Não, não é só aí... O cerne da questão é muito mais complexo e, como é óbvio, reside nos genes, como, sabiamente, explicam os doutos cientistas. Senão vejamos: os dos homens estão programados para domarem a "ferazinha" que há em todas nós, mulheres; já os das mulheres - sorte a nossa em nos consentirem ter genes - estão permanentemente a ser reciclados no sentido de compreenderem a tal questão da sobrevivência da espécie. E não só. É através deles que nos é permitido descobrir, sempre com paciência, carinho e toneladas de compreensão o... coraçãozinho gentil e ternurento que há em cada homem. E há sempre. Só que as coisas nem sempre são o que parecem. Aliás, basta o clube do seu contentamento lhes ofertar uma grandiosa derrota, logo o coraçãozinho fervilha de raiva, revelando o lado oculto, mas sempre pronto a despertar, do "caramelo": violento, narcísico, manipulador, machista, radical, imaturo e, sobretudo, com um retorcido sentido de justiça.
Não quero com isto afirmar que todas as mulheres sejam inocentes "Belas Adormecidas". Longe disso. Não é por acaso que, cada vez mais, o sexo fraco se debate com problemas de sono e o hábito de contar carneiros se tornou uma espécie de ritual – ainda que de um tédio cósmico. Mas, enquanto houver “Madames Butterfly” dispostas a deixarem-se levar na cantiga - do Pinkerton? Qual quê! Esse, já todas sabemos que foi comprar cigarros e só voltou ao fim de vários anos… - dos genes e da sobrevivência da espécie, haverá sempre “Rodolfos”, com palavras cheias de açúcar, poemas em que coração rima com meu torrão e outras tisanas de igual teor balzaquiano, convidando-as para uma valsa indolente e em que, assumida e naturalmente, controlam os passos, voltas e reviravoltas, já que as ditas “sonolentas”, segundo relata a história, se encontram em estado de pura letargia.
A este embalar – muitas vezes descompassado - mas sempre sob ordem de comando, diria a minha bisavó - se fosse viva - tratar-se do famigerado e obsoleto machismo. Os homems, esses, dirão, tratar-se de um acto abnegado de pura protecção/orientação… para com os mais fracos e desprotegidos. Eticamente manipulado? Talvez… Mas quem nos manda a nós, mulheres, tentar dissertar sobre o genoma humano?!

AMS